domingo, 31 de agosto de 2025

História do Futuro - António Vieira, uma espécie de bolchevique dos jesuitas do século XVII

História do Futuro é um livro escrito pelo padre português António Vieira (1608-1697) no século XVII.

Segundo o escritor Roberto de Sousa Causo, trata-se da primeira narrativa utópica escrita em português, onde o autor buscou reavivar o mito milenarista do Quinto Império, um império cristão e português a dominar o mundo, sucedendo os 4 célebres impérios da Antiguidadeassíriopersagrego e romano.[1] Para ele, havia uma nítida repetição dos ciclos da História, e agora caberia a Portugal a liderança do mundo civilizado. Sua escrita iniciou-se em 1649, segundo Sorel, ou em torno de 1665, segundo Bosi, mas só foi publicado postumamente em Lisboa em 1718, e mesmo sendo apenas um fragmento inacabado, despertou grande interesse - e também a suspeita de heresia.[2][3][4] Vítor Amaral de Oliveira a considera, junto com as Trovas, de Bandarra, um dos dois mais importantes textos do sebastianismo.[5]

Referências

  1.  Causo, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil, 1875 a 1950. Editora UFMG, 2003, p. 59
  2.  Priore, Mary Del e Venâncio, Renato Pinto. O livro de ouro da História do Brasil. Ediouro Publicações, 2001, p. 128
  3.  Bosi, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. Cultrix, 1997, p. 44
  4.  Sorel, Andrés. José Saramago: Una mirada triste y lúcida. EDAF, 2007, p. 93
  5.  Oliveira, Vítor Amaral de. Sebástica: bibliografia geral sobre D. Sebastião. Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 2002, p. xxx.

 

sábado, 30 de agosto de 2025

O Brasil nas capas da The Economist - Marcelo Guterman

O Brasil nas capas da The Economist

Mais uma capa da The Economist sobre o Brasil causou furor. É sempre assim: as capas da revista mais prestigiada do mundo nunca são neutras, sempre procuram provocar discussão. Com essa não foi diferente, ao propor que a democracia brasileira poderia ser um exemplo para a americana. Como disse meu amigo Victor H M Loyola, parece mais uma capa provocando Trump do que propriamente sobre Bolsonaro.

Fiquei curioso em saber quantas vezes o Brasil foi capa da The Economist nos últimos anos. Os arquivos da revista retroagem somente até 1997 (pelo menos contendo as edições completas semanais). Desde 1997, foram 13 capas dedicadas ao Brasil, ou 0,9% do total. Essa é a medida da relevância brasileira.

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A primeira foi em 16/01/1999, sobre a desvalorização cambial, que fazia parte de uma série de capas sobre a grave crise financeira que vinha se abatendo sobre os mercados emergentes.

As duas próximas, em 05/10/2002 e 30/09/2006, focariam em Lula. A primeira comenta a primeira eleição de Lula, enquanto a segunda, vejam só, coloca Hugo Chavez como uma possível ameaça à liderança de Lula na América Latina, dado que o presidente brasileiro vinha sofrendo com o Mensalão e uma economia que andava de lado.

Três anos depois, temos talvez a capa mais icônica sobre o Brasil, com o famoso Cristo Redentor decolando, em 14/11/2009. Era a época do milagre econômico brasileiro.

Mas o otimismo deu lugar a três capas em que a The Economist descreve a espetacular queda do Brasil no governo Dilma. A primeira, de 28/09/2013, é um contraponto ao Cristo decolando, a segunda, às vésperas da eleição de 2014, pede a mudança do governo, e a terceira, em 28/02/2015, descreve o pântano econômico em que o País estava metido.

Em 2016, algo inusitado: 3 capas em 4 meses, sobre a queda de Dilma. A primeira (02/01/2016) prevê um ano horrível para Dilma, a segunda (26/03/2016) pede a saída de Dilma e a terceira, logo após a votação do impeachment (23/04/2016), comenta todo esse processo.

Finalmente, as três últimas capas trazem Bolsonaro. A primeira, em 22/09/2018, coloca Bolsonaro como uma nova ameaça populista na América Latina às vésperas das eleições, a segunda (22/09/2022), também às vésperas das eleições, chama a atenção para a alegação de fraude nas urnas (a mesma que Trump havia usado dois anos antes) e, finalmente, a desta semana, às vésperas do julgamento de Bolsonaro. Com essa última capa, Bolsonaro passa a ser o político brasileiro com mais aparições na capa da The Economist, pelo menos desde 1997.

Como podemos observar, a revista não alivia para ninguém. Sempre haverá quem comemore e quem torça o nariz, a depender das simpatias políticas. Enquanto isso, a The Economist continua sendo uma referência no debate público global.

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Um momento expletivo: usando o bravo capitão Haddock contra um capitão criminoso, golpista e negacionista

 

Hora de atualizar os impropérios mais adequados para aplicar ao objeto mais asqueroso de um processo que pode até não estar errado, o da tentativa de golpe, mas que vem tarde, com respeito ao processo que deveria ter sido iniciado desde o momento em que o capitão genocida e o seu general criminoso foram responsáveis por milhares de mortes de brasileiros durante a pandemia.

Atualizando o CV-ENG, Paulo Roberto de Almeida

Atualizando o CV-Eng, 2025

PAULO ROBERTO DE ALMEIDA
Paulo Roberto de Almeida (born in São Paulo, 1949) is Ph.D. in Social Sciences (Free University of Brussels, 1984), Master in Economic Planning (College for Developing Countries, State University of Antwerp, 1977), has graduated in Social Sciences (Brussels, 1975), and a Brazilian career diplomat between 1977 and 2021. From August 2016 to March 2019 served as Director of the International Relations Research Institute, of the Brazilian Ministry of External Relations (Funag). Acted as professor of International Political Economy at the Master and Doctoral Law programs at the University Center of Brasília (Uniceub), from 2004 to 2021; former professor at the Brazilian Diplomatic Academy (Instituto Rio Branco) and at graduate studies in Sociology at the University of Brasília.
Served as Minister-Counselor at the Brazilian Embassy in Washington (1999-2003) and Special Advisor to the head of the Strategic Affairs Unit of the Brazilian Presidency, in Brasilia (2003-2007). Previous assignments include Brazilian embassies in Paris, Bern and Beograd, and delegations to international organizations in Geneva (GATT and other UNO organizations) and Latin American Integration Association, in Montevideo, finally deputy consul at the Brazilian General Consulate in Hartford (2013-2015). At the Ministry of Foreign Affairs, was head of the Financial Policy and Development Division (1996-1999).
Has been invited regularly to give courses in universities (Brazilian and foreign). Has researched in many fields, such as international relations, economic history, political sociology, and comparative development, and has experience in negotiations in trade and integration, intellectual property, financial affairs and technological development.


Published books:

Vidas Paralelas: Rubens Ricupero e Celso Lafer nas relações internacionais do Brasil (2025); Intelectuais na Diplomacia Brasileira: a cultura a serviço da nação (org., 2025); Treze ideias fora do lugar nas relações internacionais do Brasil: argumentos contrarianistas sobre a política externa e a diplomacia (2024); O Brasil no contexto regional e mundial: artigos sobre nossa dimensão internacional (2023); Marxismo e socialismo: trajetória de duas parábolas na era contemporânea (2023); A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira (2022); Construtores da Nação: projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior (2022); Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira (2021); O Itamaraty Sequestrado: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo, 2018-2021 (2021); Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira (2020); A ordem econômica mundial e a América Latina: ensaios sobre dois séculos de história econômica (2020); O Mercosul e o regionalismo latino-americano: ensaios selecionados, 1989-2020 (2020); O Itamaraty num labirinto de sombras: ensaios de política externa e de diplomacia brasileira (2020); Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019); Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do
Brasil (2019); A Constituição Contra o Brasil: ensaios de Roberto Campos sobre a Constituinte e a Constituição de 1988 (2018); O Homem que Pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos (2017); Formação da diplomacia econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (2017; 2005; 2001); Nunca Antes na Diplomacia: a política externa brasileira em tempos não convencionais (2016; 2014); Révolutions bourgeoises et modernisation capitaliste: démocratie et autoritarisme au Brésil (2015); Integração Regional: uma introdução (2013); Relações Internacionais e Política Externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização (2012); Globalizando: ensaios sobre a globalização e a antiglobalização (2011); Guia dos Arquivos Americanos sobre o Brasil (2010); O Moderno Príncipe: Maquiavel revisitado (2009); O estudo das relações internacionais do Brasil (2006); Relações Brasil-Estados Unidos: assimetrias e convergências (2005); Envisioning Brazil: a Guide to Brazilian Studies in the United States (2005); Relações internacionais e política externa do Brasil (1998; 2004); Une Histoire du Brésil: pour comprendre le Brésil contemporain (2002); Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas (2002); Le Mercosud: un marché commun pour l’Amérique du Sud (2000); O Brasil e o multilateralismo econômico (1999); O Mercosul no contexto regional e internacional (1993).
Has organized some books and has many chapters in edited books. Contributes regularly to journals and to other scholarly undertakings; former editor of Revista do Instituto Histórico e Geográfico do DF (2021); former deputy editor of Revista Brasileira de Política International (the oldest IR journal in Brazil, founded in Rio de Janeiro 1958, in Brasília since 1993).

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Embaixador conta, em livro, a experiência de resgatar brasileiros da Faixa de Gaza - Publico (PT) - livro de Alessandro Candeias

Meu amigo e colega Alessandro Warley Candeas objeto desta matéria do Público (PT) sobre seu próximo livro:

Embaixador conta, em livro, a experiência de resgatar brasileiros da Faixa de Gaza
Em Peregrinação & Guerra — Anotações de um Diplomata na Terra Santa, Alessandro Candeas relata os dias após o ataque do Hamas a Israel, em 2023. Mas ele avisa: “Não quero jogar gasolina na fogueira”.

https://www.publico.pt/2025/08/30/publico-brasil/entrevista/embaixador-conta-livro-experiencia-resgatar-brasileiros-faixa-gaza-2145501

Embaixador conta, em livro, a experiência de resgatar brasileiros da Faixa de Gaza
Atual cônsul-geral do Brasil em Lisboa, ele conta como foi escrever o livro Peregrinação & Guerra — Anotações de um Diplomata na Terra Santa (editora Contracorrente, 364 páginas), que será lançado no Brasil e em Portugal em datas a serem definidas.




José Murilo de Carvalho mostra como país falhou nos valores cívicos - CHRISTIAN LYNCH (FSP)

José Murilo de Carvalho mostra como país falhou nos valores cívicos

CHRISTIAN LYNCH

FSP 26.08.2023


[RESUMO] José Murilo de Carvalho deixou obra incontornável sobre a construção do Império brasileiro e a formação da sociedade no começo da República, destacando como o país falhou, nesses momentos históricos cruciais, em criar uma cultura cívica que superasse o elitismo, o patrimonialismo e o militarismo. Morto aos 83, o historiador deixa às novas gerações a tarefa de enfim aprofundar a cidadania no Brasil.

*

José Murilo de Carvalho foi um dos mais influentes acadêmicos de sua geração. No campo da ciência política, atuou nos programas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). No da história, foi pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa e do programa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).


Tendo se doutorado na Universidade Stanford (EUA), foi professor visitante em um sem número de outras, como Oxford (Reino Unido) e Princeton (também nos EUA). Recebeu o título de doutor honoris causa da Universidade de Coimbra. A consagração definitiva chegaria com sua eleição para as mais antigas e prestigiosas instituições culturais do país: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e a Academia Brasileira de Letras (ABL).


Para quem o conhecia, chamava a atenção o contraste entre a monumentalidade de sua obra e a sua personalidade, referida por Ruy Castro como tímida e modesta. Eu acrescentaria esquiva, especialmente em ambiente mundano. Essa discrição indicava, claro, sua origem de mineiro do interior, de que se orgulhava, mas havia mais que o estereótipo regional.


Nascido em 1939, José Murilo estudou em colégio de padres e militou na Ação Popular, grupo cristão de esquerda, ajudando na organização de sindicatos rurais. Para além da "mineirice", havia também certo espírito de missionário franciscano, que como cientista social cedo elegeu o Brasil como a comunidade ou "República" a cujo serviço se devotaria.


Ele acreditava que os males do Brasil decorriam da insuficiência do equivalente cívico das virtudes cristãs, que eram as virtudes republicanas. Nada surpreendente, já que desde Tiradentes e Teófilo Otoni a república sempre foi o tema por excelência da intelectualidade mineira.


Para bem servir à república como intelectual público (o equivalente secular do missionário), cumpria conhecê-la em sua formação. As inquietações de José Murilo decorriam do trauma comum a toda a primeira geração de cientistas políticos profissionais, o golpe de 1964.


Eles todos haviam na mocidade embarcado no sonho nacionalista e desenvolvimentista de Getúlio e JK. Acreditavam, pela leitura dos intelectuais do Iseb (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), como Hélio Jaguaribe e Guerreiro Ramos, que a modernidade brasileira começou com a urbanização e a industrialização a partir da Revolução de 1930; e que as reformas de base eram o corolário lógico de uma nação que não mais cabia na moldura oligárquica do tempo anterior.


A marcha ascensional para patamares superiores de autonomia e igualdade era inevitável. Daí o choque de 1964, que levaria José Murilo a empregar o melhor de suas energias na revisitação do processo de formação do Estado e da sociedade brasileira anterior a 1930, em busca das causas dos males presentes.


Quem admira José Murilo como historiador deve sempre lembrar que a força de suas análises vinha de sua formação em sociologia e política. A UFMG já possuía um núcleo importante de ciência e sociologia política dentro do curso de direito, em torno de Orlando Carvalho e sua revista. Não foi difícil depois dar-lhe autonomia e profissionalizá-lo.


O tema por excelência da ciência social mineira na época era o coronelismo, que explicava a articulação das modernas instituições políticas brasileiras sobre sua arcaica estrutura socioeconômica fundiária. Sob a influência da obra clássica de Victor Nunes Leal, José Murilo escreveu suas duas primeiras obras: a primeira, sobre a política municipal de Barbacena; a segunda, sobre a criação da Escola de Minas de Ouro Preto.


Já então ele questionava a eficácia do marxismo na compreensão dos fenômenos, preferindo o weberianismo dos primeiros membros do Iseb. Quando José Murilo partiu com uma bolsa da Fundação Ford para fazer seu mestrado e doutorado em ciência política em Stanford, lá conheceu o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos. Foi um encontro providencial. Wanderley o convenceu a trocar sua projetada tese sobre municipalismo por outra, a respeito da construção do Estado brasileiro no século 19. Deu certo.


Na primeira parte da tese, "A Construção da Ordem", José Murilo argumentava que, diversamente das elites da América hispânica, as do Brasil conseguiram conservar sua unidade política devido a seu maior grau de homogeneidade, uma vez que, enviadas a Coimbra, recebiam a mesma formação ideológica e uma socialização burocrática quase consensual em torno de um projeto de Estado reformista e autoritário.


Na segunda parte, "Teatro de Sombras", ele revelava a dinâmica tensa entre este Estado modernizador e a sociedade escravista agrária que a ele resistia. Quanto mais o Estado fazia uso de seus instrumentos autoritários para liberalizar a sociedade pelo alto, mais solapava os fundamentos de sua própria legitimidade.


Aqui José Murilo já revelava duas características. A primeira, de caráter formal, passava pelo exame do processo político empírico em perspectiva interdisciplinar, pela articulação entre ciência política, história e pensamento brasileiro. A segunda, de caráter substantivo, assinalava a preocupação com a formação da cultura cívica e das instituições "republicanas".


Sua tese de relativa autonomia do Estado imperial afrontava a literatura marxista então hegemônica, para a qual a monarquia não passava de braço do latifúndio escravista. Por isso, a recepção inicial da primeira parte dessa análise, "A Construção da Ordem: a Elite Política Imperial" (1980), foi fria.


Em 1978, José Murilo foi convidado por Wanderley para integrar o corpo docente do antigo Iuperj (atual Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj). Em 1986, ele passou a integrar também os quadros da Fundação Casa de Rui Barbosa.


Nesse tempo, por ele considerado o mais feliz de sua carreira, Murilo desenvolveu as pesquisas sobre a formação da cultura cívica brasileira que o consagraram e que resultariam em "Os Bestializados" (1987), "A Formação das Almas" (1990) e "Forças Armadas e Política no Brasil" (2005).


Trata-se de um tríptico que, depois do díptico anterior sobre a construção do Estado imperial, investigava a formação da sociedade no começo da República, concluindo pelo fracasso das elites na constituição de uma cultura cívica republicana, atravessada pelo elitismo, pelo patrimonialismo e pelo militarismo.


Em "Os Bestializados", José Murilo destacava o descolamento entre povo e elites nas primeiras décadas do regime republicano, desenvolvendo o conceito de "estadania" para designar a concepção deformada de cidadania que só reconhecia direitos ao povo desde que subordinado e encaixado na métrica de "civilizado".


Em "A Formação das Almas", ele apontava o relativo fracasso das elites —positivistas, jacobinas, liberais— em criar um imaginário de pertencimento que servisse de cimento cívico à nação. Se o Império havia sido bem-sucedidos em construir um Estado, a República falhava em construir a nação.


Já "Forças Armadas e Política no Brasil" se dedicava a compreender a origem e a persistência do militarismo por aqui. Formados em regime de completo insulamento do resto da sociedade, os militares acreditariam ser a única elite capaz de bem cuidar dos interesses nacionais, porque organizada, nacionalista e desinteressada.


Tais reflexões caíam como uma luva à época do centenário da República (1989), quando a efeméride incentivava o público a pensar a história como insumo para dotar o regime democrático de substância para além da forma puramente eleitoral.


José Murilo fez assim da denúncia do nosso déficit republicano seu grande tema como intelectual público. Distinguindo a república como modo de convivência cívica da república como mero regime formal, lhe parecia que as últimas décadas do Império teriam sido marcadas por uma efervescência democrática abortada pelo golpe militar republicano. Este seria o tema de suas pesquisas sobre a campanha abolicionista e de livros mais recentes, como "Clamar e Agitar Sempre: Os Radicais na Década de 1860" (2018).


Para José Murilo, o governante mais republicano do Brasil teria sido dom Pedro 2º, a quem dedicou uma biografia: "Ser ou Não Ser" (2007). Depois do impeachment de Collor, ele participou das discussões em torno do plebiscito de 1993 de forma provocativa, defendendo a opção da Monarquia para chamar a atenção para a insuficiência da República.


Em debate realizado à época no salão nobre do Palácio do Catete, José Murilo iniciou sua fala se dizendo constrangido em meio a toda aquela "pompa republicana". A polêmica da época levaria este republicano empedernido a carregar por décadas a pecha de… monarquista.


"Cidadania no Brasil: O Longo Caminho" (2001) se tornaria a obra síntese de José Murilo em relação ao diagnóstico da má formação cívica brasileira e a necessidade de saná-la. Partindo da tese do sociólogo T. H. Marshall de que a sequência clássica da cidadania moderna começaria pelos direitos civis, seguido pelos políticos e depois pelos sociais, Murilo defendia que no Brasil a pirâmide havia sido invertida —e que o principal déficit da República residiria na falta de acesso à Justiça pela inefetividade dos direitos civis.


A exposição objetiva e clara dessa hipótese, entremeada pela narrativa da história do Brasil desde a Independência até o presente, fez desse livro o seu grande best-seller, adotado em todas as graduações de ciências humanas.


Paralelamente, como complemento de seus livros, José Murilo escreveu dezenas de artigos dedicados a fenômenos políticos e sociais, como o mandonismo, e a personagens da vida intelectual brasileira, como Vasconcelos, Uruguai, João Francisco Lisboa, Alencar, Nabuco, Rui Barbosa, José do Patrocínio, José Veríssimo, Eduardo Prado e Juarez Távora.


Os mais importantes, talvez, tenham sido os dois textos dedicados a Oliveira Vianna, autor que considerava crucial para compreender os problemas das elites republicanas e cuja obra cumpria, portanto, "resgatar do inferno".


José Murilo concluiu sua conversão pública para "historiador" ao se tornar titular do programa de história da UFRJ, em 1997, mas o essencial de suas pesquisas giraria dali por diante no aprofundamento das teses já expostas nos livros anteriores.


Por meio do projeto Caminhos da Política no Império do Brasil, financiado pela CNPq, ele se cercou de uma rede interinstitucional de excelentes historiadores, cujos trabalhos comuns resultaram em várias coletâneas, como "Linguagens e Fronteiras do Poder" (2011).


Uma mudança importante no período foi a maneira de José Murilo pensar a participação popular. As pesquisas com Lúcia Bastos e Marcelo Basile sobre os panfletos da Independência, que resultaram no livro "Guerra Literária" (2014), o convenceram de que, ao contrário do que se dizia, a revolução de emancipação do Brasil teve considerável participação popular, não sendo restrita às elites.


Nos últimos tempos, porém, a fé republicana de José Murilo sofreu múltiplos revezes. A esperança nos governos do PT tropeçou nos escândalos de corrupção que levaram ao impeachment de Dilma Rousseff. As eventuais expectativas de melhora do padrão de vida cívica se esvaíram quando a bandeira anticorrupção passou às mãos da extrema direita aliada ao militarismo.


A história de sua mocidade parecia se repetir na velhice, reavivando seus traumas e decepções cívicas. Se a campanha udenista que denunciara o "mar de lama" resultara no suicídio de Getúlio Vargas e no golpe militar de 1964, o moralismo lavajatista desaguara na prisão de Lula e na eleição de Bolsonaro.


Nos últimos anos, José Murilo parecia mais interessado em tirar a limpo o próprio passado, reatando amizades e concedendo depoimentos sobre sua carreira e instituições de que fizera parte. Evitava entrevistas, porque no final de seu longo apostolado lhe parecia que tudo tinha sido inútil.


Em "O Pecado Original da República" (2017), ele chegava a afirmar que a condição republicana parecia incompatível com a identidade brasileira. Poderia ter desabafado como um de seus mestres, o sociólogo Guerreiro Ramos, em entrevista de 1981: "Este é o país da picaretagem. Não tem ninguém com grandeza, a grandeza de Alberto Torres, do Visconde de Uruguai, do Barão do Rio Branco, de José Bonifácio, Getúlio Vargas. Acabou, o país destruiu a nós todos".


A missão do homem José Murilo de Carvalho, mineiro tímido e modesto, terminou. Ela segue agora por meio de sua obra monumental e de seus admiradores das gerações mais novas, de cujos visionários o Brasil continua precisando para se republicanizar.


JOSÉ MURILO DE CARVALHO


Vida


Nasceu em 1939. Formado em sociologia e política pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), fez mestrado e doutorado em ciência política na Universidade de Stanford, nos EUA. Foi professor nas duas instituições, assim como, no Brasil, na UFRJ e, no exterior, em Oxford (Reino Unido) e Princeton (também nos EUA). Fazia parte do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e da Academia Brasileira de Letras (ABL). Morreu em 13 de agosto, aos 83 anos

Principais livros

"A Construção da Ordem: a Elite Política Imperial" (1980), "Os Bestializados. O Rio de Janeiro e a República Que não Foi" (1987), "Teatro de Sombras: a Política Imperial" (1988), "A Formação das Almas. O Imaginário da República no Brasil" (1990), "A Cidadania no Brasil: o Longo Caminho" (2001), "Forças Armadas e Política no Brasil" (2005), "D. Pedro 2º: Ser ou Não Ser" (2007)

Foto: O historiador José Murilo de Carvalho na biblioteca de sua casa, no Rio - Raquel Cunha-25.mai.19/Folhapress


sexta-feira, 29 de agosto de 2025

O imperialismo chinês, ou o capitalismo chinês, não têm nada a ver com equivalentes atuais ou passados: uma pesquisa publicada na revista International Security

Reproduzindo trecho de uma postagem que se encontra neste mesmo blog um pouco abaixo: 

Temos um imperialismo cruel em plena ação, por um líder assassino racional: Putin. Temos um outro em ação desencontrada por um líder demencial: Trump. Ambos condenados desde já no plano da ética, e mais adiante na prática. Temos um outro imperialismo, mas de uma outra natureza e isto pode ser constatado num artigo da International Security, que li e transcrevi recentemente. Um excerto:

https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/08/china-its-true-objectives-in-foreign.html

"Our findings indicate that China is a status quo power concerned with regime stability and is more inwardly focused than externally oriented. China's aims are unambiguous, enduring, and limited: It cares about its borders, sovereignty, and foreign economic relations. China's main concerns are almost all regional and related to parts of China that the rest of the region has agreed are Chinese—Hong Kong, Taiwan, Tibet, and Xinjiang. Our argument has three main implications. First, China does not pose the type of military threat that the conventional wisdom claims it does. Thus, a hostile U.S. military posture in the Pacific is unwise and may unnecessarily create tensions. Second, the two countries could cooperate on several overlooked issue areas. Third, the conventional view of China plays down the economic and diplomatic arenas that a war-fighting approach is unsuited to address."


This leads to a key question: What does China want? To answer this question, this article examines contemporary China's goals and fears in words and deeds. In contrast to the conventional view, the evidence provided in this article leads to one overarching conclusion and three specific observations. Overall, China is a status quo power concerned with regime stability, and it remains more inwardly focused than externally oriented. More specifically: China's aims are unambiguous; China's aims are enduring; and China's aims are limited.

First, China's aims are unambiguous: China cares about its borders, its sovereignty, and its foreign economic relations. China cares about its unresolved borders in the East and South China Seas and with India, respectively. Almost all of its concerns are regional. Second, China deeply cares about its sovereign rights over various parts of China that the rest of the region has agreed are Chinese—Hong Kong, Taiwan, Tibet, and Xinjiang. Third, China has an increasingly clear economic strategy for its relations with both East Asia and the rest of the world that aims to expand trade and economic relations, not reduce them.

It is also clear what China does not want: There is little mention in Chinese discourse of expansive goals or ambitions for global leadership and hegemony. Furthermore, China is not exporting ideology. Significantly, the CCP's emphasis on “socialism with Chinese characteristics” is not a generalized model for the world.15 In contrast, the United States claims to represent global values and norms. What China also does not want is to invade and conquer other countries; there is no evidence that China poses an existential threat to the countries on its borders or in its region that it does not already claim sovereignty over.


Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...