Truques fiscais
Regina Alvarez
O Globo - Panorama Econômico, 28/01/2010
Em um ano de crise aguda, como foi 2009, o governo valeu-se de truques e muita criatividade para fechar as contas públicas. O resultado do Tesouro confirma que o superávit primário foi forjado a partir de caminhos muito pouco ortodoxos. Começando pelo uso do BNDES, um banco público de fomento, para reforçar o caixa da União, abrindo espaço para mais despesas, sem comprometer a meta.
De um lado, o BNDES recebeu empréstimo de R$ 100 bilhões do Tesouro em títulos da dívida pública — que não teve impacto fiscal, mas elevou a dívida bruta — para mitigar os efeitos da crise global. De outro, o bancão repassou um valor recorde de dividendos ao caixa da União: R$ 11 bilhões, quase o dobro de 2008; e ainda "comprou" mais R$ 3,5 bilhões de dividendos da Eletrobrás, também repassados ao Tesouro.
A lógica é a seguinte: o BNDES não contribui com o superávit primário da União, tudo que paga de dividendos entra no caixa do Tesouro como receita primária. Enquanto que o repasse direto dos dividendos da Eletrobrás ao Tesouro teria efeito neutro nas contas, já que a estatal contribui com a meta de superávit primário. Se paga dividendos, economiza menos e faz um superávit menor. A operação triangular garantiu mais recursos para a União no ano da crise.
Outro truque foi o uso dos depósitos judiciais para reforçar o caixa federal. No total, foram R$ 15,3 bilhões de depósitos tributários e não tributários. Neste caso, o governo foi com tanta sede ao pote que desconsiderou alguns detalhes importantes.
Primeiro, parte dos R$ 8,9 bilhões de depósitos judiciais tributários ainda estavam sem classificação. Quando forem classificados, dependendo do imposto que os originou, parte do bolo será dividido com estados e municípios (IR e IPI, no caso).
Especialistas em orçamento estimam que pelo menos R$ 1 bilhão dessa receita pertence aos demais entes e foi apropriada pela União. No caso dos depósitos não judiciais, R$ 6,2 bilhões, um detalhe pode complicar as contas de 2010. O valor que o governo computou como receita em novembro e dezembro de 2009 também entrou nas contas do relator de receitas do Orçamento de 2010, senador Romero Jucá, para acomodar o aumento de despesas aprovado pelo Congresso.
Finalmente, tem a história do Imposto de Renda das Pessoas Físicas. O governo prometeu que não reteria devoluções do IR para fazer caixa, mas o fato é que em 2009, pela primeira vez, mais de um milhão de contribuintes caíram na malha fina. E o mais estranho: em janeiro, no primeiro lote de restituições, foram devolvidos R$ 616 milhões a quase 400 mil contribuintes. Em janeiro de 2008, a devolução fora de R$ 75 milhões.
Nunca antes na história deste país a Receita trabalhou tanto e demonstrou tanta eficiência no primeiro mês do ano. Será que havia mesmo motivo para tante gente ter caído na malha? Com todos esses truques, o governo conseguiu um superávit de R$ 42,3 bilhões nas contas de 2009 e com o reforço dos investimentos do PPI/PAC — abatidos das despesas — a meta foi atingida.
Num ano de crise aguda, as receitas cresceram 3,2% e as despesas 15%. Não ocorreu aos equilibristas econômicos fazer o ajuste pela lado da despesa. As receitas "atípicas" viabilizaram o aumento dos gastos.
Herança maldita
No mercado, esses truques para obter superávit primário e o aumento da dívida bruta são vistos com preocupação. O economista Sérgio Vale, da MB Associados, prevê que haverá uma piora no perfil da dívida pública mais pra frente, em decorrência desses fatores.
— O perfil da dívida está diretamente relacionado à qualidade da política fiscal.
Quanto mais o governo cria subterfúgios para o superávit primário ou aumenta a dívida bruta, aumenta a probabilidade da qualidade do perfil piorar — afirma.
Este ano será muito ruim do ponto de vista fiscal, por conta do fator eleitoral, na visão do economista. A questão em aberto é 2011.
Quem vai fazer o ajuste fiscal necessário e de que tamanho será, quando se sabe que há uma programação enorme de investimentos públicos programados — Copa, Olimpíadas, présal, infraestrutura, etc.?, pergunta.
— Não temos espaço para a festa fiscal que o governo está fazendo nos últimos dois anos de seu governo, tanto que descobriu o uso da dívida bruta para aumentar seus gastos. Essa dívida, que está em torno de 64% do PIB este ano, pode subir facilmente para 67% no final de 2010 e, dependendo do cenário fiscal de 2011, passar dos 70% — estima o economista
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
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2 comentários:
Professor, pelo pouco que conheço de economia, isso me parece grave. Seria uma das causas da saída de dinheiro estrangeiro e da alta do dólar nos últimos dias?
Os jornais publicaram isso?
abraço
Paulo Henrique,
A saida de dolares, ou de investimentos estrangeiros, das bolsas brasileiras nao tem muito a ver com a deterioracao fiscal no Brasil, pois isso só atua no medio e longo prazo; trata-se de uma volatilidade normal, ou passageira, dos aplicadores de curto prazo, e pode estar mais vinculado à conjuntura externa do que ao cenário brasileiro.
Os juros no Brasil ainda sao muito altos. Se a situacao fiscal se deteriorar muito, dependendo da sinalizacao do governo, pode provocar efeitos nos movimentos de capitais, mas nao necessariamente.
Essa situacao é ruim para nós, pois significa que a carga fiscal e a taxa de juros vao continuar altos.
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