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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

1745) Minha dedicatoria ao Maquiavel

Muitos livros, não todos, contem dedicatórias, ou seja, uma palavra gentil, uma demonstração de reconhecimento, a quem fez por merecer: mestres, mulher, filhos, gato, cachorro, papagaio, deus, whoever...
No caso do "meu" Maquiavel, minha dedicatória é a ele mesmo, na companhia de quem passei dias e noites agradáveis, refletindo sobre o poder, o caráter efêmero da glória (aquela coisa: sic transit gloria mundi...), enfim, dialogando mentalmente com meu mentor espiritual, enquanto eu reescrevia o seu Príncipe, adaptado para os tempos modernos.
Abaixo, minha dedicatória, no livro agora lançado:

Dedicatória
Al Signore Niccolò Machiavelli, segretario diplomatico della Repubblica di Firenze, banito dal suo posto per motivi di cambiamenti politiche, uno suo ammiratore.

Caro Niccolò,
Escrevo esta dedicatória quase quinhentos anos depois que você dirigiu a sua, num livro de título praticamente igual a este, a um senhor de nobre linhagem, um dos Médici, que estava, naquele mesmo momento, recuperando o poder em Florença, cidade à qual você serviu fielmente durante longos anos. Sei que a sua dedicatória foi escrita em uma fase muito difícil da sua vida, quase dramática, quando você tentava, na verdade, recuperar os seus títulos, cargos e funções, dos quais tinha sido afastado, por motivos de baixa política, eu até diria por ciúmes, dada a inveja que os novos donos do poder tinham do seu valor e das suas qualidades de estadista.
De minha parte, ao abrir um livro de espírito e motivações similares ao seu, não vou dedicá-lo a um representante de qualquer família ou grupo dirigente. Não pretendo seguir o seu exemplo; para ser mais exato, não necessito fazê-lo, uma vez que minha vida e o meu trabalho se desenvolvem em tempos mais amenos, comparativamente aos barbari tempii nos quais você tinha de viver. Por isso, e em total legitimidade, dedico esta obra a você mesmo, Niccolò, pois ela, na verdade, tudo lhe deve, muito na forma e bastante do conteúdo.
Não é difícil deduzir de sua obra, e de sua vida, que você foi um genial pensador político, um diplomata dedicado, um cidadão honrado, cumpridor dos seus deveres, um atento estudioso dos livros antigos (como eu sou, aliás), um pai de família extremoso, como a poucos conheci, em uma atribulada carreira, feita de intensas leituras, freqüentes viagens e muitas reflexões (estou aqui falando de nós dois, ambi due). Como disse um admirador seu, que me precedeu, “il suo merito principale sta nell’avere, con metodo sicuro, creato una nuova scienza politica, fondandola sulla storia e sulla esperienza” (Pasquale Villari, Niccolò Machiavelli e i suoi tempi; 3a. ed.; Milano: Ulrico Hoepli, vol. II, 1913, p. 466).
No Príncipe, você trata basicamente da monarquia, de um regime conduzido por um chefe exclusivo, quase despótico, no limite da tirania. Nos seus Discorsi sopra la prima Deca di Tito Livio, você se ocupa, sobretudo, da república, de como ela deveria ser, nos tempos antigos e modernos. Em ambas as obras, o que está, na verdade, em jogo é a autonomia do Estado e a sua capacidade de implementar medidas visando ao bem comum, à sobrevivência da independência e da soberania do Estado em primeiro lugar, para em seguida velar pelo bem estar dos súditos, ou dos cidadãos, conforme o caso. Muitos se perguntaram se, em cada uma dessas obras, aquele que se expressava por meio de argumentos rápidos, cortantes, como no Príncipe, ou através de longas digressões históricas, como nos Discursos, era um republicano ou um cortesão: creio poder dizer que se tratava de um verdadeiro patriota, de um homem que amava a liberdade, a unidade e a independência de sua pátria, que era, antes mesmo da “sua” república florentina, a Itália em seu conjunto.
Você tinha o hábito, que eu também partilho, de apoiar-se na história para tratar de casos presentes. Não apenas no Príncipe, mas também nos Discursos, você se referia aos homens de Estado da antiguidade para ilustrar suas lições de estadismo, da arte da política, no mais alto sentido desta palavra. Mas você não pretendia tratar, de verdade, da situação corrente da Itália, por mais calamitosa que esta fosse, na luta para assegurar autonomia nacional e independência em relação às potências da época, a França e a Espanha, em primeiro lugar. Por certo, lhe entristecia ver as repúblicas e principados da Itália desunidos, combatendo entre si, enquanto hordas de mercenários e soldados estrangeiros penetravam em suas cidades, saqueando palácios, espoliando os burgueses, roubando os camponeses e perpetrando toda sorte de abusos.
Na verdade, ao escrever tantas páginas memoráveis nos Discursos e no Príncipe, você estava pensando, sobretudo, no futuro da Itália. Daí não hesitar você em recomendar soluções que a muitos podem ter aparecido, e ainda hoje aparecem, como isentas de qualquer sentido moral. O que você pretendia, e espero estar bem interpretando suas intenções, era assegurar a autonomia plena do Estado, de maneira que este pudesse defender a honra nacional e o bemestar dos cidadãos (sim, de preferência a súditos, pois eu sei que você privilegiava a república, sobre a monarquia, mas achava, malgrado os inconvenientes, que esta podia ser uma solução temporária a uma situação de caos incontrolável). Daí sua tolerância com regimes próximos do autoritarismo – sei que a linguagem antiga se referia à tirania – desde que o príncipe, em situação de poder e de comando, pudesse ou soubesse garantir pax, ordo et concordia, que para você eram essenciais na condução dos assuntos públicos.
Claro, o ideal, para você e para todos os cidadãos de bem –, ainda que convertidos
temporariamente em súditos – seria que o principado ou a república, ameaçados de desagregação, fossem conquistados e governados por algum sapientissimus princeps, cercado de conselheiros hábeis – como você mesmo –, até que os próprios governados pudessem resolver a questão, com a legítima eleição dos seus chefes, de preferência em regime republicano, aberto aos méritos e não apenas aos clãs familiares tradicionais. Esse ideal não pôde ser alcançado na sua Florença, e ainda menos em outras partes da Itália, até vários séculos depois que você nos legou suas páginas memoráveis sobre a arte de conquistar, de manter e de governar os principados.
Você bem que se esforçou para que isso pudesse ocorrer, até violentando parcialmente o seu pensamento, pois que aparentemente disposto a servir um nobre de natureza despótica, desde que ele soubesse, pelo menos, lutar pela independência e autonomia da Itália, que ele pudesse libertá-la dos bárbaros que a assolavam continuamente, nesses tempos de transição entre o puro regime oligárquico dos tempos antigos e as novas formas de representação política dos citadinos organizados. Quando, em 1512, depois da batalha de Ravena, os Médici recuperaram o poder em Florença, a sua sorte muda radicalmente. Em lugar de ser recompensado pelo brilhante trabalho diplomático a serviço de cidade toscana, você, por resolução tomada em 7 de novembro de 1512, foi privado de toda e qualquer função oficial.
Segundo os termos do decreto então assinado, seus direitos e encargos de segretario foram abolidos: cassaverunt, privaterunt et totaliter amoverunt. Mais do que você, foi a cidade e o país que perderam com o seu ostracismo, as suas férias involuntárias, tanto mais duros, l’ozio forzato e l’allontanamento, que você era, do testemunho de todos, un uomo attivissimo, capaz de desempenhar os complexos encargos da sua cancelleria fiorientina com competência invulgar e em tempo exíguo. Cansado da sua solidão, da espera em vão por um posto que não veio jamais, você se entregou, con grandissimo ardore, como diz Villari, allo studio. Em conseqüência, você se refugiou na sua
vila de província, dimenticava la sua miseria, e passou a escrever, segundo esse seu admirador, alcuni di quelle pagine di scienza politica, che resero per tutti i secoli immortale il suo nome (Villari, op. cit., vol. II, p. 270 e 212). Assim, no espaço de poucos meses, em 1513, emergiu Il Principe e tomou forma, ainda que sua redação se estendesse por muitos anos mais, os seus Discorsi sopra la prima Deca di Tito Livio.
Por todas essas razões, e outras mais, cabe-me dedicar esta modesta obra, que muito deve, como já disse, às suas páginas imortais, a você, Niccolò, mesmo à distância de quase quinhentos anos e em circunstâncias, talvez, muito diferentes daquelas nas quais você foi levado a colocar no papel suas reflexões e ensinamentos de uma vida inteira dedicada à coisa pública. No seu tempo, a corrupção política era generalizada, na Itália mais do que em qualquer outra parte da Europa, talvez porque ali houvesse mais recursos a serem pilhados por líderes políticos e religiosos sem escrúpulos. A moral cristã, que deveria teoricamente prevalecer, era na verdade completamente abandonada na vida pública. Não só no seu tempo, Niccolò...
Daí sua intenção de fundar a política, tanto a ciência quanto a sua prática, sobre uma nova moral, de caráter laico, civil, republicano. Devo reconhecer que, a despeito de muitas frustrações na vida diplomática, nos negócios e na política, você o conseguiu, e de forma brilhante: hoje, os seus escritos converteram-se em leitura obrigatória, tanto para os estudiosos quanto, sobretudo, para os praticantes da política, muito embora estes últimos nem sempre façam bom uso dos seus ensinamentos, que eles tomam pelo lado mais simplista possível.
A queda da República de Florença foi uma desgraça pessoal para você, mas talvez tenha sido uma grande fortuna para todos nós, porque o exílio forçado o levou a escrever estas páginas imortais. Se você tivesse permanecido na cancelleria fiorentina, não teríamos dos seus escritos que as cartas de legação e os ofícios diplomáticos, de estilo talvez aborrecido e, em todo caso, circunstanciais e estritamente conjunturais. Ao contrário, a partir do sabático involuntário que lhe impuseram, podemos agora dispor de suas idéias e reflexões de maior escopo conceitual e de larga amplitude intelectual. O seu infortúnio pessoal e a ruína da Itália nos valeram as mais belas páginas de ciência política que foram concebidas desde a antiguidade clássica e, provavelmente, até os dias de hoje. Quanto aos seus algozes, Niccolò, eles estão, em grande medida, esquecidos.
Esta obra, em particular, corresponde a um esforço de riordinamento politico generale de que a Itália muito necessitava, naquela época, e que talvez outros países ainda necessitem, hoje em dia. A Reforma, iniciada por Lutero, também fez bem aos países católicos, pois que obrigou-os a corrigir os aspectos mais corruptos e venais da política e da religião naquele período. Você preferiu afastar a religião e o poder dito espiritual do esforço de reconstituição da política e da formação do Estado moderno, o que considero basicamente correto. Nos tempos que correm, a política é essencialmente laica, muito embora muitos procurem explorar a religião para seus fins particulares. Creio, porém, que a política necessita, como na sua época, de um rientro morale que muito beneficiaria as instituições e os costumes. A sua virtu,
não era a virtude cristã, e sim a coragem e a energia de um líder político no esforço de construir sobre bases sólidas, mas nem por isso menos éticas, a administração dos homens e das coisas, em prol do bem-estar comum.
Portanto, meu caro segretario della repubblica fiorentina, à qual você serviu, durante 15 anos, com grandissimo zelo e costanza, sinta-se homenageado por esta obra que pretende, justamente, prestar-lhe um modestíssimo tributo pessoal, como prova de meu apreço por sua rara inteligência e por seu alto valor moral.

Refúgio dos bibliófilos, aos 494 anos da redação da obra do mestre.

(http://www.pralmeida.org/01Livros/2FramesBooks/95maquiavelrevisitado.html)

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