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sexta-feira, 21 de janeiro de 2011
Anjos da guarda: virtuais e reais - Paulo R de Almeida
Paulo Roberto de Almeida
Antigamente era aquela dificuldade: a gente precisava disputar o “nosso” anjo da guarda quase no muque, contra a concorrência de outros pretendentes, por vezes um próprio irmão. De fato, todas as nossas avós (enfim, duas, no máximo), tias idosas, até as nossas mães nos instruíam a observar um comportamento exemplar para ter direito a um anjo da guarda particular, algo como um seguro extra em caso de necessidades extremas. Era um problema cumprir esses requisitos estritos, com tanta oportunidade para se fazer bobagens na rua, na ida e na volta da escola, na corrida à padaria para comprar pão e leite, enfim, em qualquer momento e lugar: pular muro para roubar goiaba, esconder uma bola – qualquer bola – de algum menino rico que andasse correndo solta pelas esquinas, tentar praticar algum voyeurismo ocasional...
As promessas de se conseguir um, exclusivo, eram reforçadas em ocasiões especiais: Natal, Paixão de Cristo, Ascensão, até nos momentos de crisma, lava-pés ou qualquer outra festa religiosa. Sempre pairava a promessa e a ameaça: “comporte-se direito, menino, pois o seu anjo da guarda está de olho em você!”. Ops: então, mesmo sem merecer, a gente tinha um alcaguete olhando por cima do ombro da gente, penetrando em nossos cérebros maléficos, desvendando nossas mais soturnas intenções? Mas, se eu justamente não tinha sido comportado a ponto de merecer esse acompanhante gentil, bonzinho, sempre sorridente com seu ar angelical, como é que, assim de repente, ele aparece sem avisar?
Enfim, não me perguntem os detalhes, mas o anjo da guarda era um personagem importante antes das primeiras desilusões religiosas, aí por volta dos doze ou catorze anos, quando a gente recusava toda aquela mitologia cristã e, os menos “alienados”, passávamos a cultuar outros “santos”: Marx, Lênin, Guevara, alguns até o Stalin ou o Mao (tem gosto para tudo...). Os que continuavam aderindo, porém, à liturgia cristã, ainda “guardavam” os seus anjos da guarda particulares, mas estes eram em número cada vez mais escasso, uma raridade ao alcance exclusivo dos mais bem comportados e certinhos. Aparentemente tinha as suas vantagens, pois sempre se podia invocar o personagem com asinhas caso algum perigo rondasse o navegante mais distraído. Em época de exames, também podia ser providencial.
Depois, muito depois – e tem regime militar no meio, redemocratização, hiperinflação, corrupção, enfim problemas velhos e novos – os anjos da guarda saíram de moda, o que pode ser considerado realmente uma pena: eles nunca fizeram mal a ninguém, e estavam sempre disponíveis para ouvir uma súplica. Não se tem certeza de que eles “funcionassem” de fato, mas sempre dava aquela segurança psicológica que não era mais garantida pela família, doravante fragmentada e instável. Chato ter de enfrentar algum desafio qualquer, sem ter um confidente particular e um apoio de tipo espiritual em caso de necessidade. Estávamos irremediavelmente sós, em um mundo hostil...
Pena mesmo, inclusive porque não se tratava de requerer dos anjos da guarda mais do que eles podiam oferecer, num mundo definitivamente secularizado e quase ateu. Os anjos do final do século 20, já não tinham mais o mesmo papel que desempenharam no passado: anunciar grandes mudanças, aparições divinas, libertação dos oprimidos, expulsão do Paraíso ou mesmo, em alguns casos, algumas catástrofes anunciadas de antemão por profetas tidos por malucos. O anjo da anunciação ou, seu contraparte, o anjo vingador combinam com os quadros antigos, um pouco menos com os modernos. No século 20, sem que tal fato tenha a ver com o “Exército da Salvação”, ocorreu uma proliferação de anjos da guarda, protetores das crianças e dos desvalidos, eventualmente de alguns bêbados. Por vezes, como nos desenhos de Walt Disney, eles apareciam em dupla: um anjinho com lira e coroa, de um lado, um diabinho vermelho com sua cauda em ponta de flecha, do outro.
Aparentemente, nos tempos antigos, todo mundo podia aspirar a ter o seu anjo da guarda particular e mesmo, para os crentes de hoje, a promessa não arrefeceu. Enfim, sempre tem gente que não merece. Esse pessoal do “caixa 2” dos partidos políticos, por exemplo, eles certamente devem ter vários, pois nunca vão para a cadeia, mas sinceramente eles não mereciam essa distinção. Cegos e estropiados em geral poderiam ficar com uma quota extra, alocando-se a eles os que retiraríamos desses bandidos dos “recursos não contabilizados”.
De minha parte, deixei de acreditar em anjos muito cedo, mas confesso que uma volta atrás não seria de todo mau, pois que acreditar em sua existência não implicaria, necessariamente, a (re)adesão a uma religião em particular, pois os anjos, como qualquer fenômeno de marketing, prescindem de alguma mensagem espiritual mais elevada. A prova é dada pelo próprio Natal, cada vez menos um festa religiosa, cada vez mais uma festa tout court, com o lado dos presentes e das comilanças suplantando o espírito da natividade e dos valores cristãos.
O que eu esperaria de meu anjo, se ele se materializasse, assim de repente, na minha frente? Deixo de lado o gênero, para não ser acusado de qualquer perversão, e passo imediatamente às qualidades angelicais que imagino possam estar registradas em sua carteira de trabalho. Em primeiro lugar, ele deveria ter olhos vivos e brilhantes e sorriso sempre à mostra, o que significa um bom começo, para empatia recíproca. Depois, eu faria um pequeno teste de conhecimento histórico, para ver se o “meu” anjo conhece seus antecedentes bíblicos e suas várias encarnações ao longo dos tempos. Não sou nada religioso, mas tenho grande respeito pelas religiões e acho que a cultura religiosa é indispensável a qualquer cidadão que se pretenda humanista e iluminista (pode ser uma contradictio in adjecto, mas prefiro assim do que um anjo sem cultura religiosa, pois aí, sim, que seria uma contradição).
Em terceiro lugar, ele precisaria vir animado de uma forte disposição para aguentar discussões filosóficas, debates teóricos, conversas bizantinas (ma non troppo), tertúlias acadêmicas e outros embates intelectuais, com eventuais notas de rodapés e referências bibliográficas acompanhando as legendas ou os “balõenzinhos” de nossas conversas (sim, a cenografia é importante, pois anjos verdadeiros não vivem fora dos cenários adequados: ninguém imagina, por exemplo, um anjo numa mesa de botequim, embora isso não seja impossível). Finalmente, esse candidato a meu anjo particular não poderia ter reivindicações trabalhistas – como férias, décimo-terceiro, licença remunerada e outros direitos conquistados na luta de classes dos últimos dois séculos – ou sequer horário de oito horas e semana de cinco dias. Anjo tem de ser em tempo integral, como corresponde ao sentido de sua nobre missão.
A bem da verdade, acho que já conquistei um anjo particular, mas ele vive em um universo paralelo, numa dimensão própria, ou está protegido por alguma redoma virtual, e com ele falo – ou imagino falar – regularmente, na minha própria imaginação. Tive sorte, claro, e nem tive de procurar muito, já que o meu anjo simplesmente apareceu, numa dessas aparições de tipo bíblico, sem que eu saiba explicar como ou por quê. O “meu” anjo relê cuidadosamente todos os meus textos, esses que eu escrevo in tutta fretta madrugada adentro, ensaios que dão muitas voltas e acabam emergindo num estilo estropiado, vários atentados à gramática, à sintaxe, torturados e tortuosos como se estivessem saindo de um campo de batalha – o que não deixa de ser verdade, pois estou sempre em alguma batalha de ideias – enfim, trabalhos escritos que seriam muito piores do que quando publicados porque, justamente, o meu anjo da guarda particular passou por ali e salpicou o texto de anotações, dúvidas, correções, alertas e outros beliscões virtuais, para ver se eu aprendo, finalmente a conjugar e a combinar os transitivos indiretos.
Enfim, depois de alguns anos de existência virtual, espero que ele não me abandone, dada minha forte propensão ao debate, por vezes interminável, meu espírito altamente crítico e minhas exigências quanto a conteúdo e substância. Nunca aceito o argumento da autoridade – como os anjos devem gostar de invocar – mas apenas a autoridade do argumento, o que me garante, justamente, algumas diatribes com quem se julga autoridade (estrito senso). Meu anjo não pode simplesmente me proteger, ele tem de provar que a relação de custo-benefício indica ser essa a melhor solução em face de recursos escassos e de usos alternativos dos fatores de produção. Ele não pode ser simplesmente espiritual, mas tem de embasar essa espiritualidade num forte substrato de racionalidade, estilo grego, se é que percebem, ou então de acordo com a tradição empirista anglossaxã.
Com tudo isso, o meu anjo não pode ser um chato, como costumam ser alguns “intelectuais” (ou candidatos a tal). Ele também não precisa vir de camisolão – sinceramente ridículo – e dispenso as asas, pois hoje em dia o carro não é uma má opção. Estou pronto a compartilhar com ele a minha biblioteca, mas tenho de avisar que nunca aprendi aramaico, hebraico antigo ou grego, as supostas línguas bíblicas. Pode aposentar a lira, mas adoro saxofone e os ritmos de jazz em geral. Bandolim e chorinho também são aceitáveis, junto com uma boa disposição para ficar acordado madrugada adentro, noites à fio. Minha produção geralmente começa depois da meia noite e vai até onde o corpo e o espírito aguentarem. Algum anjo se habilita? Candidatos munidos de currículo Lattes, por favor...
Para terminar, também tenho anjo da guarda não virtual, ou seja, real, na verdade, não apenas um, mas dois. Dois simpáticos yorkshires que, invariavelmente, na batida das 22hs, vêm me arrancar de minha labuta de computador, para um incontornável passeio de quase uma hora em volta do quarteirão. Eles não respondem muito a minhas questões, e assim me deixam com as notícias do rádio ou as músicas do meu iPod. Independentemente dessas limitações no diálogo, eles correspondem inteiramente ao que se requer de um anjo da guarda: são fiéis, estão sempre ao alcance da mão (e também do chinelo e da barra da calça), mesmo sem exibir asas, que na verdade são substituídas pelo “trote” rápido.
Em face da concorrência, creio que são os melhores anjos da guarda não virtuais disponíveis no mercado. Não recomendo gatos, a despeito de sua limpeza proverbial: eles só pensam em si mesmos e são tão inescrutáveis quanto os caminhos do Senhor. Cachorros são mais compatíveis com nossas necessidades de solidariedade e de companhia. Claro, eles requerem algum investimento inicial no adestramento, sobretudo para não ficar limpando a casa todo dia. Mas, depois disso, eles parecem se comportar melhor do que os anjos da guarda verdadeiros: eles dividem tranquilamente a torta de creme, sem recorrer a esses avisos subliminares de que aquilo não é bom para o seu colesterol... Anjos da guarda verdadeiros estão sempre controlando o seu peso. Cachorros partilham de seus desejos mais secretos por alguma contravenção alimentar.
Salvem os anjos da guarda, virtuais e reais...
Brasília, 20 de janeiro de 2010.
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