Como escreve o ex-ministro Lampreia: "A cada dia que passa fico mais convencido de que a Argentina está em marcha batida para o abismo."
So be it...
Paulo Roberto de Almeida
O alvo do governo Kirchner
19 de março de 2013 | 2h 13
Editorial O Estado de S.Paulo
Os números da balança comercial entre os dois países não deixam dúvidas de que a condescendência com que o governo Dilma reage às restrições comerciais da Argentina estimula a ação dos funcionários do governo Kirchner notoriamente contrários à entrada de produtos brasileiros em seu país. Ruins para o Brasil já em meados do ano passado, os resultados do comércio bilateral ficaram ainda piores no acumulado de 2012.
Em julho do ano passado, as importações argentinas de produtos brasileiros tinham sido 67% menores do que as registradas em julho de 2011 e o superávit comercial acumulado pelo Brasil nos sete primeiros meses do ano tinha diminuído 52% em relação ao período janeiro-julho do ano anterior.
Em todo o ano passado, as exportações brasileiras para a Argentina somaram US$ 18 bilhões, 21% menos do que os US$ 22,7 bilhões exportados em 2011. As importações brasileiras de produtos argentinos, de sua parte, de US$ 16,8 bilhões, mantiveram-se praticamente no mesmo nível de 2011, de US$ 16,4 bilhões. Com isso, o saldo caiu de US$ 5,9 bilhões para US$ 1,6 bilhão, uma redução de 73% (algumas consultorias privadas, como a Abeceb.com, calculam a queda em 65%).
Atribui-se a queda das importações de produtos brasileiros à redução do ritmo da economia argentina no ano passado, quando deve ter crescido menos de 2%. Essa é uma explicação parcialmente verdadeira. Mas, no momento em que as exportações brasileiras caíam, as dos outros principais países fornecedores da Argentina cresciam, e em ritmo intenso. As da Holanda aumentaram 160%; as dos Estados Unidos, 9%; as do Japão, 7%; e as da Alemanha, 2%, como noticiou o jornal Valor (18/3). O superávit, que no caso do Brasil teve fortíssima contração, aumentou 52% para a Alemanha, 29% para os Estados Unidos e 14% para a China.
Brasil e Argentina são os principais integrantes do Mercosul, o bloco do Cone Sul que, teoricamente, é uma união aduaneira, na qual é livre a circulação de bens e serviços. Desde meados da década passada, no entanto, a Argentina vem restringindo a entrada de produtos estrangeiros, mesmo os originários de outros países do Mercosul.
No ano passado, o governo Kirchner instituiu um sistema de controle administrativo de importações que vem retendo mercadorias nos postos alfandegários até a emissão de uma autorização especial para a entrada no mercado argentino. Essa autorização está condicionada à apresentação prévia de uma declaração juramentada, cuja aceitação depende do juízo de setores do governo responsáveis pelas medidas protecionistas.
O objetivo dessas medidas é estimular a produção argentina, mas as ações do governo Kirchner no campo econômico vêm assustando os empresários, nacionais e estrangeiros, o que inibe os investimentos produtivos.
As presidentes dos dois países deveriam discutir, entre outras, a questão da deterioração do comércio bilateral por causa do crescente protecionismo argentino, numa reunião que estava marcada para o início de março. O encontro teve de ser adiado em razão da morte do presidente venezuelano Hugo Chávez. O tema, porém, não pode mais ser adiado, como deixam claro os dados recentes sobre o comércio bilateral. Se o governo Dilma não mudar sua atitude em relação à Argentina, o governo Kirchner se sentirá ainda mais livre para prejudicar o Brasil.
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Em marcha batida para o abismo
19 de março de 2013 | 2h 10
Luiz Felipe Lampreia *
Escrevi faz algum tempo o seguinte comentário: "Há mais de vinte anos, um importante ministro argentino ensinou a um surpreso embaixador brasileiro recém-chegado a Buenos Aires que a 'Argentina é pródiga em três coisas: carne, trigo e gestos tresloucados'. A decisão de expropriar a participação majoritária da Repsol na YPF foi um desses gestos. Somada à inadimplência de dez anos da dívida externa, que representa uma grave violação da ordem jurídica internacional, e ao crescente e arbitrário protecionismo que viola todas as regras do Mercosul e da OMC, a decisão coloca a Argentina à margem da legalidade global. Como me escreveu um grande amigo argentino recentemente, o governo argentino 'busca la maximización del presente. Eso fue el peronismo de los 50, el menemismo - aunque con algunas reformas para nada despreciables - y el kirchnerismo'. E na mesma correspondência acrescentou: 'Existe también entre nosotros un desequilibrio político muy pernicioso, que agudiza el mal anterior. Entre Cristina y su segundo, Binner, hubo 37 puntos de diferencia. Lo mismo sucedió con Perón en el 51. Hoy el gobierno controla 23 distritos sobre 24, además de las dos cámaras. En Brasil, la oposición gobierna los grandes estados y eso genera una dinámica virtuosa en muchas dimensiones'.
Gestos dessa gravidade têm sempre consequências sérias, mesmo que no imediato pareçam benéficos e sejam saudados pelo povo com orgulho e alegria. A longo prazo, essas ações terminam por pôr o país à margem das principais correntes de crédito, investimentos e comércio, ou seja, de todas as atividades que geram prosperidade e oportunidades econômicas para uma nação. O mau governo orienta-se pelo valor imediato de popularidade que obtém com seus atos impulsivos e não pensa nas consequências de seus atos no futuro". A cada dia que passa fico mais convencido de que a Argentina está em marcha batida para o abismo.
Se não bastasse, a sra. Cristina Fernandez de Kirchner está aprofundando sua ofensiva contra instituições básicas como a imprensa livre e o Poder Judiciário, que são ambas os últimos bastiões da resistência democrática. A deputada Elisa Carrió, que já foi candidata à Presidência, comentou, com agudeza, que "a única coisa que Cristina deseja é sua impunidade (...) se o povo não se defender rápido nos resta pouco tempo de uma Argentina republicana". Citações assim poderiam ser apresentadas fartamente e se contrapõem a outra, desta vez de autoria da procuradora-geral da República, Alejandra Gils Carbó, que afirmou: "A Justiça atual é ilegítima, corporativa, obscurantista e lobista". Um procurador de Benito Mussolini na década de 30 subscreveria a esse fraseado com especial prazer. As manobras contra a grande imprensa são também bem conhecidas. Canais de rádio e televisão têm sido comprados por empresários cuja reputação duvidosa é ressaltada em Buenos Aires e que coincidentemente são ligados à presidente. Como disse um importante jornalista do La Nación, José Crettaz, "a Casa Rosada (sede da Presidência) aprovou uma compra de meios (de comunicação) que violou a lei e depois permitiu que um empresário que cometeu essa irregularidade saísse incólume". A guerra da sra. Kirchner contra os Grupos Clarín e La Nación prossegue e visa a calar ou pelo menos cercear as duas maiores colunas mestras da liberdade de imprensa argentina.
Como se vê, a Argentina envereda velozmente para um modelo de partido e poder únicos. O populismo desenfreado já garantiu à presidente uma votação maciça nas últimas eleições. O peronismo detém, pela mesma razão, maioria esmagadora no Congresso e em quase todos os governos provinciais. Para completar o modelo de Estado autoritário e onipotente só falta controlar o Judiciário e a imprensa livre. Quando isso ocorrer, o governo poderá tudo e as instituições democráticas e republicanas estarão subjugadas. A perspectiva de alternância no poder, que já é tênue, estará acabada. Esse filme já foi visto em diversas épocas e muitos países do mundo. E acaba mal.
E o Brasil nisso? Perdemos muito espaço em nosso principal mercado de produtos manufaturados por efeito do protecionismo arbitrário argentino, como já mencionado. Nossas empresas investidoras na Argentina padecem muitas vezes sob a interferência excessiva dos governantes e são levadas à decisão de vender e sair do país, como é o caso da Petrobrás, que desempenhava papel importante na indústria de combustíveis. Ninguém pode, entretanto, derivar daí uma postura confrontacionista de nossa parte ou subestimar a relevância de nossas relações com nosso maior vizinho. Houve muitas vezes tempos melhores, mas com a Argentina temos um casamento indissolúvel, seja como for. É por isso mesmo que devemos lamentar a destruição sistemática dos fundamentos da democracia argentina e esperar que dias melhores permitam restaurar o vigor de nossa relação econômica. É por isso também que considero que não devemos abundar em gestos e palavras de solidariedade. Os ditadores adoram afagos, mas os democratas devem abster-se de fazê-los.
* Luiz Felipe Lampreia foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC.
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