Felizmente, a nova Constituição da Tunísia reconhece a igualdade entre homens e mulheres, mas se trata de um caso raro em sociedades islâmicas, e tem a ver com a modernidade implementada na Tunísia desde a independência da França, pelo líder-ditador esclarecido Habib Bourguiba.
Paulo Roberto de Almeida
A insustentável rigidez das sociedades islâmicas
Vinte notas (o mais
possível objetivas) sobre algumas das razões que podem explicar seu imobilismo
atual (que não necessariamente perdurará...)
Paulo Roberto de Almeida
1. Nos países islâmicos, ninguém pode nascer sem religião, isto é, o
recém-nascido tem automaticamente a religião do pai.
2. Igualmente, ninguém pode deixar de ter religião, isto é, decidir
abandonar qualquer crença religiosa para tornar-se ateu ou mesmo simplesmente
agnóstico.
3. É similarmente impossível abandonar a religião muçulmana. Isto
significa tornar-se um “apóstata”: trata-se de um crime maior, da suprema
blasfêmia contra a religião islâmica.
4. A mulher muçulmana deve casar-se obrigatoriamente com um muçulmano,
enquanto este tem liberdade para eventualmente casar-se com uma (ou mais de
uma) não-muçulmana.
5. A mulher não-muçulmana não é obrigada a adotar a religião do marido
muçulmano, podendo livremente conservar e continuar praticando sua religião, mas
seus filhos são automaticamente considerados como muçulmanos e educados como
tal. A mulher não-muçulmana não pode dar a seus filhos outra educação religiosa
que não ensinar-lhes a fé muçulmana. Ela não pode sequer orientá-los,
contemporaneamente, nas virtudes de outra religião.
6. Caso haja separação do casal (divórcio ou repúdio, este reservado
apenas ao homem), os filhos de uma não-muçulmana são automaticamente entregues
ao pai muçulmano, que sobre eles possui todos os direitos, inclusive o de
privá-los da companhia da ex-mulher. Esta não tem qualquer direito sobre seus
filhos.
7. A mulher não-muçulmana não pode transmitir herança ou fazer
testamento em favor de seu cônjuge muçulmano ou de seus filhos, como tampouco a
viúva não-muçulmana poderá herdar de seu marido muçulmano, a menos é claro que
ela se tenha previamente convertido ao Islã.
8. A jovem muçulmana, uma vez prometida por sua família a pretendente
muçulmano, não pode mais olhar outros homens nos olhos, com exceção do pai e
irmãos. Ela deve seguir a obrigação do recato pessoal e nas vestimentas, o que
geralmente implica andar coberta da cabeça aos pés e abster de uma série de
atividades que impliquem contato com outros homens, inclusive nas áreas
educacional e profissional.
9. Geralmente, a menina muçulmana é dissuadida ou impedida de seguir
determinados cursos na escola laica, entre outros, ginástica, piscina, biologia
ou educação sexual. Chegada na adolescência e eventualmente prometida a noivo
muçulmano, ela é geralmente levada a deixar a escola para viver a vida
exclusiva do lar.
10. As restrições comportamentais e de vestimentas impostas às jovens
e mulheres muçulmanas não têm, é verdade, uma origem essencialmente religiosa,
derivando de traços culturais presentes já na sociedade patriarcal e
tradicional que precedeu à implantação do Islã. Mas, tais traços foram
reforçados pelo “ensinamento do Profeta”, tornando-se obrigações religiosas
submetidas a forte controle social e familiar.
11. Da mesma forma, determinadas restrições alimentares e
comportamentais não são exclusivas da religião muçulmana ou foram introduzidas
por ela, tendo precedido a codificação das normas e preceitos religiosos ou
coexistido em povos da mesma área cultural (como o povo judeu, por exemplo,
para referir-se à questão da carne de porco ou aos métodos de abate de
animais). No entanto, tais normas culturais ganharam um peso religioso que
bloqueia qualquer tentativa de transgressão individual.
12. A ausência de uma burocracia centralizada de caráter religioso
impediu, como no cristianismo, a introdução ulterior de preceitos adicionais de
natureza obrigatória (como o celibato dos padres na igreja romana, por
exemplo). Mas isso também atuou no sentido de impedir qualquer evolução do
pensamento islâmico para formas mais modernas de racionalidade, através da
eventual elaboração de conceitos adaptados a cada época e respondendo aos
desafios do momento.
13. Nas sociedades islâmicas faltam os traços mais elementares da
ideologia humanista, centrada sobre o homem e sobre o respeito de seus direitos
naturais. O conceito mesmo de “direitos do homem” é propriamente estranho ao
mundo islâmico. Na sociedade islâmica, o cidadão não existe enquanto
individualidade livre de afirmar-se espiritualmente e intelectualmente fora da,
ou contra a, religião muçulmana. A religião, “conquistadora” por excelência,
permeia toda a sociedade e não há esfera propriamente civil da vida social.
14. A justiça islâmica, de caráter retaliatório e obedecendo a
preceitos elaborados no contexto da sociedade tradicional em que vivia o
Profeta, comporta punições de caráter exemplar, implicando, entre outros, a
mutilação física do condenado, quando não a decapitação cerimonial.
15. A sociedade islâmica não contempla a idéia de uma arte
representativa ou figurativa, na qual se possa reproduzir a natureza. A
brilhante arte persa, por exemplo, foi rapidamente asfixiada à medida em que
progredia a islamização daquela sociedade. O mesmo fenômeno ocorreu em outras
sociedades islamizadas progressivamente.
16. A “barreira ideológica” que impede a representação do mundo
natural dificulta o desenvolvimento de várias disciplinas científicas. A
não-afirmação individual e o conseqüente esmagamento do cidadão por normas e
obrigações estritamente dependentes da ideologia religiosa por certo
contribuíram para o esgotamento de qualquer inovação ou criatividade
científicas nas sociedades muçulmanas, depois dos primeiros séculos de
aproveitamento da memória coletiva trazida desde a Antiguidade clássica e das
contribuições aportadas pelas civilizações hindu ou chinesa.
17. Com poucas exceções, não houve desenvolvimento independente de
ciências sociais, uma vez que a interpretação religiosa do mundo não pode ser
contradita por textos laicos. De uma forma geral, o “pensamento crítico” e a
“razão negativa” não podem se exercer nos círculos culturais das sociedades
islâmicas, uma vez que o exercício de tais faculdades seria considerado uma
contestação à “palavra escrita” do Profeta. Nenhuma norma social ou forma de
organização política e judiciária podem ir além do que está implícito ou
explícito no “texto” de referência.
18. Dessa forma, a iniciativa individual, que é necessariamente
contestadora dos padrões estabelecidos, se encontra condenada ab initio nas sociedades islâmicas. Não
apenas tal estrutura impede o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, mas
ela também dificulta a expansão do espírito mercantil e empreendedor que esteve
na origem do capitalismo moderno e da hegemonia ocidental.
19. Não se pode excluir o surgimento de uma variante do Islã que seja
racionalizada e relativamente mais “laica”, mas qualquer “reforma” da religião
muçulmana teria enormes barreiras estruturais pela frente. O que se observa, ao
contrário, é o desenvolvimento das correntes mais fundamentalistas dessa
religião, numa possível reação de defesa contra o predomínio intelectual e
tecnológico do Ocidente de afiliação cristã. Mais do que uma afirmação, o
fundamentalismo – também chamado de integrismo, em outras análises – pode ser
visto, nesse contexto, como uma espécie de frustração pelo relativo atraso e
subordinação das sociedades islâmicas.
20. Não se pode, tampouco, excluir a possibilidade de uma variante do
“Renascimento” nas sociedades islâmicas, com a crescente afirmação dos valores
individuais e uma progressiva separação das esferas laica e religiosa da vida
social. Mas, essa evolução teria em grande parte de ser feita contra o Islã e a
despeito de seus preceitos. A tolerância em relação a valores alternativos de
vida social não é exatamente uma característica do Islã.
Paulo Roberto de Almeida
1554. “A
insustentável rigidez das sociedades islâmicas: Vinte notas (o mais
possível objetivas) sobre algumas das razões que podem explicar seu imobilismo
atual (que não necessariamente perdurará...)”, Brasília, 24 fevereiro 2006, 3
p. Revisão do texto sobre as sociedades islâmicas, para publicação no site do
Instituto Millenium. Publicado sob o título: “A insustentável rigidez das sociedades islâmicas”, em 2.03.06
(link: http://institutomillenium.org/2006/03/02/a-insustentavel-rigidez-das-sociedades-islamicas/).
Relação de Publicados n. 627.
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