sábado, 4 de janeiro de 2014

Vargas Llosa sobre o livro postumo de Cabrera Infante: retrato datristeza

Já tinha postado aqui mesmo, semanas atrás, o original em espanhol desta resenha-artigo de Vargas Llosa, quando de sua publicação no El País. Vale a releitura, pois capta o monento em que a revolução cubana deixa definitivamente seu caráter romântico para se converter no gigantesco processo stalinista grotesco em que se converteu.
Parece que os intelectuais brasileiros nunca perceberam a mudança: atrasados mentais.
Paulo Roberto de Almeida 

Um grande mapa da tristeza
Livro póstumo de Guillermo Cabrera Infante é testemunho atroz e kafkiano sobre a Revolução Cubana
04 de janeiro de 2014 | 2h 05
MARIO VARGAS LLOSA / EL PAÍS - O Estado de S.Paulo

O livro póstumo de Guillermo Cabrera Infante, publicado recentemente, intitula-se Mapa Dibujado por Un Espia, mas deveria chamar-se O Mapa da Tristeza, pelo sentimento de solidão, amargura, impotência e incerteza que o impregna do princípio ao fim. Ele conta os quatro meses e meio que passou em Havana, em 1965, ao regressar por causa da morte da mãe, procedente de Bruxelas, onde exercia a função de adido cultural de Cuba. Planejava retornar à Bélgica dentro de poucos dias, mas, quando estava a ponto de embarcar de volta ao seu posto diplomático, juntamente com suas duas filhas pequenas, Anita e Carola, recebeu no aeroporto de Rancho Boyeros um chamado oficial, dizendo que deveria suspender a viagem porque o ministro das Relações Exteriores,Raúl Roa, tinha urgência de falar com ele. Regressou a Havana imediatamente, surpreso e inquieto. O que teria ocorrido? Nunca chegaria a saber.
O livro narra, aos borbotões e às vezes com frenesi e de maneira atabalhoada, os quatro meses seguintes, nos quais Cabrera Infante voltou muitas vezes ao ministério, sem que o ministro ou algum dos chefes o recebesse, descobrindo desse modo ter caído em desgraça, mas sem inteirar-se jamais como nem por quê. Entretanto, no dia seguinte à sua chegada, Raúl Roa o cumprimentara por sua gestão de diplomata, e anunciara que provavelmente voltaria a Bruxelas promovido ao cargo de ministro conselheiro da embaixada. A que ou a quem ele deveria a intervenção para que seu destino mudasse da noite para o dia? Quanto ao resto, recebeu o seu salário e inclusive renovaram seu cartão que lhe permitia fazer compras nas lojas para diplomatas, mais bem supridas do que aquelas, cada vez mais míseras, frequentadas pelas pessoas comuns. Acaso o governo o considerava um inimigo da Revolução?
Conflito. A verdade é que ele ainda não era. Tivera um conflito com o regime em 1961, quando este fechou Lunes de Revolución, revista cultural que Cabrera Infante dirigira durante os dois anos e meio de sua prestigiosa existência, mas nos três anos de afastamento em razão de suas funções diplomática na Bélgica havia sido, segundo ele próprio confessara, um funcionário leal e eficiente da Revolução. Embora um tanto desencantado pelo rumo que as coisas acabaram tomando, dá a impressão de que, até seu regresso a Havana em 1965, Cabrera Infante achava ainda que Cuba corrigiria o rumo e retomaria o caráter aberto e tolerante do princípio.
Nestes quatro meses, essa esperança se dissipou e foi ali, enquanto, confuso e temeroso por sua kafkiana situação de incerteza total quanto ao seu futuro, perambulava pelas ruas habaneras que tanto amava, vendo a ruína apoderar-se de casas e edifícios, as enormes dificuldades que o empobrecimento generalizado impunha aos vizinhos, o isolamento quase absoluto no qual se confinara o poder, sua verticalidade e a severidade da repressão contra dissidentes reais ou falsos, e a insegurança e o medo em que vivia o punhado de amigos que ainda o frequentavam - escritores, pintores e músicos quase todos eles - que perdeu as últimas ilusões e decidiu que, se saísse da ilha, se exilaria para sempre.
Evidentemente, não contou nada a ninguém. Nem aos amigos mais íntimos, como Carlos Franqui ou Walterio Carbonell, revolucionários que também haviam sido afastados do poder e transformados em cidadãos fantasmas por razões que ignoravam, e que, como ele, viviam numa inutilidade angustiante e frustrante, sem saber o que acontecia ao seu redor. As páginas que descrevem o vazio cotidiano deste grupo, que procurava atenuar com fofocas e fantasias delirantes, entre tragos de rum, fazem estremecer. O livro não contém análises políticas nem críticas arrazoadas contra o governo revolucionário; ao contrário, cada vez que o tema político aflora nas reuniões de amigos, o protagonista emudece e procura alhear-se da conversação, convencido de que, no grupo, há algum espião ou de que, de uma maneira ou de outra, o que ali se disser chegará aos ouvidos do Ministério do Interior. Indubitavelmente, há uma certa paranoia neste estado de perpétua desconfiança, mas talvez ela seja a prova à qual o poder quer submetê-los para medir sua lealdade ou sua deslealdade à causa. Não é de estranhar que, nesses quatro meses, começasse para Cabrera Infante a via-crúcis psicológica que, ao longo do tempo, destroçaria sua vida e sua saúde apesar dos admiráveis esforços de Miriam Gómez, sua esposa, para infundir-lhe ânimo, coragem e para ajudá-lo a escrever até o fim.
A publicação deste livro é outra manifestação do heroísmo e da grandeza moral de Miriam Gómez. Porque nele Guillermo conta, com uma sinceridade crua e às vezes brutal, como combateu o desalento e a neurose daqueles meses seduzindo mulheres, dormindo uma noite aqui outra ali, e até apaixonando-se por uma dessas conquistas, Silvia, que passou a ser por um tempo publicamente sua companheira. Este e outros foram amores tristes, desesperados, como é a amizade, a literatura e tudo o que Cabrera Infante faz e diz neste período, porque em seu foro mais íntimo ele se entrega de fato à vontade de fugir, de cortar para sempre os laços com um país para o qual não vê esperança alguma num futuro próximo.
Não foi uma decisão fácil. Porque ele amava profundamente Cuba, e, em especial Havana e tudo o que havia nela, principalmente a noite, os bares e os cabarés e as bailarinas e seus cantores, e a música, o clima quente, as avenidas e os parques - e seus cinemas - pelos quais passeava incansavelmente, recordando os episódios e as pessoas associadas a esses lugares, como para gravá-los devidamente em sua memória em todos os seus detalhes, sabendo que não voltaria a vê-los, e para poder lembrar deles mais tarde com precisão em seus ensaios e ficções. E foi o que fez. Quando finalmente, após esses quatro meses, graças a Carlos Rafael Rodríguez, líder comunista com o qual o pai de Cabrera Infante trabalhara no partido durante muitos anos, Guillermo conseguiu sair de Cuba com as duas filhas, rumo à Espanha e ao exílio, levou consigo o seu país e foi fiel a ele em tudo o que escreveu. Mas nunca se resignou a viver longe de Cuba, nem sequer nos momentos em que obteve os maiores reconhecimentos literários, e a divulgação e o prestígio de sua obra o compensavam da feroz campanha de difamação e calúnias de que foi vítima durante tantos anos. Embora sempre negasse, acredito que nunca perdeu a esperança de que situação mudasse na ilha, e de que, algum dia, poderia voltar fisicamente a esta terra da qual nunca conseguiu desprender-se. Provavelmente seus males se agravaram quando, em dado momento, teve de reconhecer que não, que era definitivo, que nunca voltaria e morreria no exílio.
Este livro me impressionou muito, não apenas pelo grande afeto que sempre senti por Cabrera Infante, mas pelo que me revelou sobre ele, sobre Havana e sobre essa época da Revolução Cubana. Conheci Guillermo quando era ainda diplomata na Bélgica e evitava totalmente as críticas à Revolução, se é que naquela época ele as tinha. No período que ele descreve, estive em Cuba e não vi nem imaginei o que ele e os demais personagens deste livro viviam, embora me encontrasse com vários deles muitas vezes, conversando sobre a Revolução, convencido de que todos estavam contentes e entusiasmados com o rumo que ela tomara, sem suspeitar sequer que alguns, ou talvez todos, dissimulavam, representavam, e, por baixo do seu entusiasmo, havia simplesmente medo.Antoni Munné, que, assim como os dois livros póstumos anteriores, preparou esta edição com desvelo, incluiu no final um Guia de Nomes, que dá conta do que aconteceu mais tarde com os personagens com os quais Cabrera Infante compartilhou esses quatro meses. Trata-se de uma informação muito instrutiva para saber quais caíram efetivamente em desgraça e sofreram o isolamento e o cárcere, ou se reintegraram ao regime, ou se exilaram ou se suicidaram.
Bem fez Antoni Munné em deixar o texto tal como foi escrito, sem corrigir as falhas, algo que indubitavelmente Cabrera Infante se propusera fazer alguma vez e não teve tempo, ou, simplesmente, não teve ânimo suficiente para voltar a concentrar-se em semelhante pesadelo. Assim como está, um rascunho escrito com total espontaneidade, sem o menor enfeite, numa linguagem direta, jornalística, comove muito mais do que se tivesse sido revisado, embelezado, transformado em literatura. Não é nada disso. É um testemunho descarnado e atroz, do que significa também uma Revolução, quando a euforia e a alegria do triunfo cessam, e ela se transforma em poder supremo, esse Saturno que mais cedo ou mais tarde devora seus filhos, começando pelos que estão mais próximos, que costumam ser os melhores. TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA

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