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terça-feira, 1 de abril de 2014

Reflexoes ao leu: a França e seus problemas - Paulo Roberto de Almeida

Reflexões ao léu: a França e seus problemas...

Paulo Roberto de Almeida

A França parece ter um problema, ou vários problemas. Na sequência da mais formidável derrota eleitoral já infringida a um partido, o socialista, seu presidente (da França, mas era também presidente do partido até assumir) acaba de aceitar a demissão de seu primeiro-ministro, e designou um outro, da mesma equipe, agora promovido ao cargo mais explosivo de todo o gabinete.
O único problema desse “problema” é que o problema não são os ministros. O problema é o presidente. Mas o problema não tem nada a ver com as duas, ou três, mulheres do presidente, e sim com seus outros hábitos políticos, e com suas crenças econômicas. Como ele não pretende se demitir, ou renunciar, os franceses terão de conviver com esse grande problema por algum tempo mais, enquanto durar a paciência de uns e de outros. Antigamente, eles faziam revoluções, agora só fazem greves.
Os franceses também têm um problema, ou vários, que eles acreditam estar nas políticas adotadas pelo presidente e por seu partido. Mas o problema dos franceses não são as políticas do presidente, ou são apenas em parte, uma vez que essas políticas refletem o que pedem os franceses, pelo menos uma parte dos franceses. O problema da França são os franceses, ou seja, o povo. Sim, isso mesmo, o problema da França são os franceses, ainda que eles provavelmente não vão gostar de ler isto. Se a França tivesse um pouco mais de alemães, ou de suíços, entre outros povos mais empreendedores, ou mesmo um pouco mais de estrangeiros (talvez do norte da África, entre outros valentes trabalhadores) talvez os franceses não tivessem tantos problemas consigo mesmos.
O presidente representa um problema, certamente, mas ele apenas tentou atender o que pediam os franceses, pelo menos uma parte deles, a que votou em massa nos socialistas. Os franceses pensaram que, depois de alguns anos de muita austeridade de “direita”, os socialistas iriam trazer de volta os famosos “lendemains qui chantent”, ou seja, aqueles dias gloriosos, feitos de menos trabalho (35 horas por semana, talvez menos), mais salários, empregos garantidos (de preferência no setor público, como todo mundo gosta, com toda aquela estabilidade para 25% da força de trabalho do país), subsídios maternais, habitacionais, educacionais, hospitalares, de desemprego, de lazer, e para o vinho. Enfim, os franceses gostariam de trabalhar menos e ganhar mais, como todo mundo, o que é apenas humano.
Os franceses já tiveram muitos problemas no passado, mas depois da terceira guerra que perderam para os alemães, pensavam que tudo estava resolvido. Sim, um dos antigos problemas dos franceses eram os alemães: os bárbaros germânicos começaram um pouco tarde no itinerário da industrialização, e até da construção do seu Estado nacional. Enquanto a França exibia uma monarquia unificada desde a Renascença, e até um Estado absolutista depois disso, mercantilista, empreendedor, dirigista e colbertista, os alemães ainda estavam se matando reciprocamente nas guerras de religião e nos conflitos entre os pedaços do sacro império romano germânico (mas que não era nenhuma dessas coisas, e só era parcialmente germânico). Mas eles avançaram bem rapidamente, até alcançar, e superar o maior império da modernidade, o britânico. Os alemães derrotaram os franceses em três guerras em três gerações, e só não lograram vitória completa na segunda vez porque os britânicos, primeiro, os americanos, depois, os salvaram de uma nova entrada da horda de bárbaros em Paris.
Da primeira vez, a Prússia impôs uma humilhação aos franceses, obrigando-os a ceder, em Versalhes, o controle sobre a Alsácia-Lorena. Os franceses tentaram devolver a humilhação, na segunda vez, impondo em Versalhes reparações impossíveis de serem pagas, e que só serviriam, segundo Keynes, para provocar uma nova guerra. Dito e feito. Da terceira vez, eles foram salvos pelos americanos, e por isso o problema dos franceses, no pós-guerra, se transferiu dos alemães para os americanos, que insistiam em não falar francês. Os franceses tentaram proibir a Coca-Cola, logo após, mas não conseguiram; mas conseguiram expulsar a OTAN de Paris, que teve de se mudar para a terra dos belgicanos, mais acostumados com exércitos estrangeiros. De Gaulle ainda conseguiu trocar a maior parte dos dólares que tinha de reserva, antes que os americanos fechassem a torneirinha de Fort Knox, e acabasse com a alegria de japoneses e alemães.
Na mesma época, os franceses reclamavam da invasão do seu belo país por uma nova horda de bárbaros, comedores de hot-dogs, trabalhando para dezenas, centenas, de empresas americanas, que partiram à conquista econômica do hexágono, sem qualquer respeito pelo camembert e pelo beaujolais (mas eles aprenderam a gostar, depois). Os franceses consideravam os americanos um problema, não uma solução, como pareciam admitir alemães e japoneses. Conclusão: alemães e japoneses se recuperaram muito mais rapidamente, chegando até a exibir milagres econômicos, com altas taxas de crescimento durante vários anos no pós-guerra. Os franceses voltaram ao seu modo gaulês habitual, com muitas brigas em família – socialistas e gaullistas, por exemplo – em parte compensadas por todas aquelas maravilhas da gastronomia e do patrimônio cultural, que os mantiveram em boa situação até que novos problemas surgiram.
Os novos problemas dos franceses são os chineses, com sua mania de trabalhar demais, consumir de menos e vender barato demais. Os franceses se desesperaram durante anos com a tal de délocalisation, um dos vetores mais nefastos, segundo eles, da globalização, ops, da mondialisation. Eles até chegaram a instituir, justamente sob o atual presidente, um ministério da restauração industrial, de redressement industriel, dirigido por um socialista aristocrata convencido de que os problemas dos franceses se resumem a marchés trop libres et concurrence déloyale (dos chineses, obviamente). Os chineses não acham que os franceses sejam um problema, embora essas greves constantes de metro, de trens suburbanos e até de taxis atrapalhem um pouco na hora de ir fazer compras nas Galeries Lafayette ou de visitar a Mona Lisa no Louvre.
Os franceses não querem enfrentar o mundo como ele é, e estão perdendo terreno todos os dias na batalha da globalização. O presidente socialista foi eleito para diminuir uma já alta taxa de desemprego, em 2012; ela só fez aumentar desde então. Ele até ensaiou fazer um pacto de responsabilidade, tentando convencer as empresas a contratar mais franceses, contra uma diminuição dos encargos laborais. Os patrões gostaram da redução de impostos, mas não se comprometeram com novos empregos: a razão é que é muito difícil despedir um trabalhador francês, pois cada vez tem de primeiro negociar com o sindicato, e depois pagar uma multa pela demissão. Melhor nem contratar, então, e “délocaliser” a indústria para a Ásia, onde os trabalhadores são mais disciplinados e menos exigentes. 
Talvez os chineses comecem a comprar vignobles famosos e até mesmo alguns châteaux de province, antes de se atacar às marcas francesas de luxo, que é um pouco o que sobrou da terrível desindustrialização dos últimos anos. Isso vai deixar os franceses furiosos, pois vão ter de passar a trabalhar para os chineses, que não brincam em serviço. Oh lá lá, ça sera terrible! Os franceses têm um grande problema, e eles não conseguem livrar-se deles, pois eles é que são o problema, um grande problema. O presidente até que é um mal menor, mas ele é muito parecido com os franceses. Esse é o problema: quem sabe os franceses não se tornam um pouco alemães, ou chineses? Eles vão acabar gostando...

Hartford, 1o. de Abril de 2014.

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