Numa outra esfera, porém, ele se engana redondamente: no que se refere à política externa em si, às escolhas, opções e definiçoes do modo de agir no cenário internacional, as decisões que são tomadas no que tocam os mais variados assuntos da agenda externa do país. Essas coisas integram a chamada política externa, e atualmente parece que elas não têm nada a ver, ou muito pouco, com o Itamaraty.
Quem define a política externa é o chefe de Estado, eventualmente a força hegemônica que ocupa o poder, vale dizer, o partido que comanda o governo e suas principais escolhas políticas, entre elas a política externa. Digamos que os companheiros não tenham competência para atuar em determinadas esferas, qualquer uma: ok, deixemos o Itamaraty fazer, pois não vai afetar nossas outras posições em tal e qual área. Mas, aqui, onde eu tenho tais e tais posições, as ordens são estas.
Entendeu? O resto é submissão, pura e simples...
Aliás, o que redunda no quadro anterior: sem submissão não há promoção, remoção para postos A, chefia de cargos interessantes ou estratégicos, determinadas prebendas associadas ao poder, etc...
A vida como ela é, como já dito antes...
Paulo Roberto de Almeida
Marcos Degaut
Muito se discute, hoje, as razões para o corrente
desmantelamento institucional do Itamaraty e para os resultados questionáveis
da atual política externa nacional. Sobre o governo Dilma tem recaído a maior parte
da responsabilidade pelo sucateamento da Secretaria de Estado de Relações
Exteriores, em vista da ausência de engajamento da Presidente Dilma na
articulação de uma efetiva diplomacia presidencial, de sua inapetência e
desconhecimento em assuntos de política externa e de seu aparente desprezo
pelos integrantes da carreira diplomática.
Entretanto, os problemas do Itamaraty são significativamente
mais profundos do que esses e já vem se arrastando por longa data. Como não
poderia deixar de ser, o atual momento pré-eleitoral se apresenta bastante
propício para analisar alguns dos fatores que tem levado à perda de prestígio e
de qualidade da nossa política externa, bem como para descortinar caminhos que
contribuam para restaurar a dignidade, a relevância e a capacidade de
formulação estratégica do MRE.
Vítima de suas próprias fraquezas, vícios, tibieza, isolamento, comodismo
e conformismo, o Itamaraty é o principal culpado pelo seu próprio processo de
esvaziamento. A instituição tem sido incapaz de se posicionar frente aos
governantes e de identificar com precisão sua arena de atuação no cenário
internacional, que possibilite ao Brasil detectar oportunidades para ampliar
sua visibilidade e capacidade de diálogo nos grandes temas de interesse
regional e mundial. Para além da retórica oficial de reforma da governança
global de alteração da geografia econômica do globo, a análise da atual
política externa indica não haver identificação clara de nossos principais
objetivos econômicos e políticos, tampouco a formulação de uma agenda
internacional consistente e integrada. A diplomacia brasileira, que deveria
traduzir nossos interesses na arena internacional, está completamente sem rumo
e sem bússola.
Ao que tudo indica, pragmatismo e visão de longo prazo não mais
fazem parte do repertório de nossa política externa. Atualmente, possuímos uma
diplomacia parnasiana, com muita forma e pouco conteúdo, a qual manifesta
acentuado empirismo e penosa carência de paradigmas. Adotamos apenas medidas
tópicas e descoordenadas, sem atentarmos que um conjunto de ações dispersas não
configura uma estratégia coerente. Inexistem indicadores para determinar metas,
priorizar objetivos e avaliar resultados.
Isso é consequência não só de uma interpretação equivocada e
ideológica da realidade internacional, mas sobretudo de uma clara inadequação
institucional que fez o órgão parar no tempo. Seu
desprestígio emana de sua estagnação. O Itamaraty, enlevado por sua
autopercepção enganosa de ser um centro de excelência, é hoje, na verdade, um
órgão absolutamente anacrônico, quase irrelevante, que se move por inércia,
hermético, avesso à inovação e à modernização, preso a tradições que já não
resistem ao peso do tempo. A política externa atual não faz parte do debate
eleitoral, não tem qualquer impacto sobre os rumos da sociedade e sobre a
opinião pública, é absolutamente desconsiderada pelo setor privado, não está
presente nos currículos escolares e não encontra respaldo sequer entre outros
órgão da Administração Pública. Aliás, um dos sintomas
mais evidentes desse enfraquecimento consiste na incapacidade do Itamaraty de
atuar de forma coordenada com as demais instituições públicas. Hoje, é notória
a rejeição à Chancelaria na esplanada. Isso não é um fato novo. É fundamental indagar sobre os reais motivos
que levaram a essa situação.
O declínio do Itamaraty acentuou-se no governo Dilma em vista da
incapacidade do órgão de diagnosticar suas fraquezas, de forma engendrar as
reformas necessárias à sua revitalização nos mais variados frontes. Não
obstante outros fatores importantes, essas fraquezas se originam de três fontes
distintas, porém interligadas: o obsoleto modelo de recrutamento, formação e
aperfeiçoamento de nossos diplomatas, o nada profissional processo de promoção,
que inclui a falta de critérios definidos para a nomeação de embaixadores, e a
ausência de um planejamento estratégico de longo prazo.
O processo de recrutamento para o
MRE, assim como para todo o serviço público, é feito por meio de concurso
público, até aí nada de novo. Contudo, em sua essência, o modelo permanece
inalterado há décadas. As provas seguem sempre o mesmo estilo, padrão e forma;
as mesmas questões, com nova roupagem, são cobradas ano após ano; a mesma
bibliografia, com pouquíssima alteração, é sugerida; os “manuais do candidato”
oferecidos se perpetuam e são atualizados de forma bissexta; Ignora-se por
completo o valor de títulos e produção acadêmica e de experiência profissional.
Tudo isso, entre outros aspectos, transforma o concurso de admissão para a
carreira diplomática em prato cheio para os concurseiros de plantão, àvidos por
uma vaguinha no serviço público, mas sem a menor vocação para a carreira,
potencialmente desestimulando o ingresso daqueles que poderiam ter perfil mais
adequado e contribuir de forma mais ativa para o adensamento da massa crítica
na instituição.
Ao serem admitidos no Instituto Rio
Branco, os novos diplomatas são penosamente submetidos às mesmas matérias às
quais se dedicaram intensamente para poderem ser aprovados. Lêem a mesma
bibliografia do concurso. Têm palestras com os mesmos autores da bibliografia
sugerida. Estudam história, geografia, línguas, linguagem diplomática; têm
noções de economia, comércio, direito, negociações internacionais. Mas, e
técnicas de Inteligência, coleta, processamento e análise de informações,
planejamento estratégico, formulação de cenários, métodos gerenciais,
Administração Pública e Segurança Orgânica? Nada.
Os cursos de aperfeiçoamento (CAD, CAP e CAE) seguem a mesma
lógica. De curto fôlego, buscam apenas revisar conceitos já consolidados na
cultura diplomática, reforçando a inércia que paralisa o ministério. Na
prática, esses cursos são apenas pequenos e quase inexpressivos obstáculos que
os diplomatas devem superar como requisito para progressão na carreira.
Ademais, a ênfase pelo generalismo dificulta a especialização em temas de
profunda importância, seja no âmbito bilateral ou no multilateral. A falta de
planejamento estratégico e a negligência com o aperfeiçoamento coletivo levam
ao descompasso entre as necessidades imperativas de capacitação profissional e
os interesses do Estado. Como resultado, o Itamaraty sofre de uma sintomática
crise de formação de quadros estratégicos e de geração de líderes para a defesa
dos interesses do Brasil nas próximas décadas. Temos hoje uma
diplomacia acéfala e burocrática, que atua de forma cartorária no processo de
formulação e execução da política externa do país.
Por sua vez, o sistema de promoção é, basicamente, fundado no
apadrinhamento. Capacidade profissional, dedicação, cursos de aperfeiçoamento,
títulos acadêmicos, nada disso é levado seriamente em consideração. O que conta
é a capacidade de influência do padrinho. Já se tornou clássica em Brasília a humilhante
peregrinação de diplomatas a gabinetes de políticos, magistrados,
sub-procuradores gerais da República, lobistas inseridos na estrutura do poder
e outros servidores públicos poderosos em busca de “apoio” para a promoção. Não
raro, diplomatas buscam lotação em órgãos de outros poderes em troca de uma
promessa de apadrinhamento.
Dinâmica não muito distinta rege a remoção de servidores para o
exterior, normalmente para postos de seu interesse, por diversos
motivos, e não no interesse da administração. A adequação pessoal e
profissional de um servidor para determinado posto, seus conhecimentos sobre o
país em questão, inclusive a língua, certamente não são critérios para a
remoção.
A mesma romaria em busca de apoio político se dá por ocasião da
nomeação de embaixadores. Sem apoio político, não se é promovido a embaixador
ou não se é nomeado para um posto importante, apesar de eventuais credenciais e
da experiência. Como resultado, um pequeno grupo de diplomatas no topo da
carreira promove uma verdadeira dança das cadeiras, sempre ocupando os postos
mais importantes, costumeiramente trocando de postos entre si, e sempre
ocupando as principais posições na Secretaria de Estado. Assim, o processo de
renovação é extremamente lento, e os que chegam ao topo, quando chegam, logo se
encarregam de perpetuar essa prática nociva.
A inércia do Congresso Nacional,
especialmente do Senado, que aprova embaixadores a toque de caixa sem saber se
o indicado está efetivamente preparado para suas novas atribuições, agrava
ainda mais a situação. As sabatinas são meras formalidades enfadonhas que o
futuro embaixador deve cumprir antes de ser designado para exercer suas funções,
um aborrecimento para parlamentares e diplomatas. O Senado precisa ser mais
ativo na política administrativa com órgão fiscalizador, e não atuar como
instância que chancela, inquestionavelmente, as demandas do Itamaraty.
Essas constatações não significam dizer
que não existam funcionários qualificados e com vocação, o que seria uma
injustiça e uma inverdade. Sim, existem. E muitos. Na maioria das vezes,
entretanto, potencial e vocação são desperdiçados por uma estrutura burocrática
que aprisiona, estimula o carreirismo, e desincentiva o aperfeiçoamento buscado
de forma individual, autônoma. Como antídoto e válvula de escape para a
frustração profissional, muitos obtêm maiores êxitos se dedicando à literatura,
à pintura ou a outras artes.
Somente uma profunda reforma estrutural, administrativa e de
gestão de recursos humanos, que pode partir da própria casa ou ser feita em
parceria com instituições públicas e com a academia, pode salvaguardar a
grandeza do Itamaraty. Seu reerguimento e valorização, com o consequente
resgate da capacidade de formular uma agenda internacional pró-ativa e de
articular uma estratégia coerente e integrada de atuação por meio da qual
possamos nos antecipar a novas circunstâncias e desafios, são fundamentais para
assegurar a defesa do interesse nacional e auxiliar na missão de retomada do
crescimento.
Política externa não se faz no vácuo. Um país com o peso
econômico do Brasil não pode se contentar com uma diplomacia reativa e
conformista sempre a reboque dos acontecimentos, que pouco influencia as
relações internacionais, mas sofre em demasia os efeitos das políticas dos Global Players. A persistir o estado atual,
continuaremos exercendo o papel de coadjuvante de luxo, aplaudindo as
iniciativas de países mais arrojados, mas exercendo pouca ou nenhuma influência
na elaboração das políticas globais. Que a descontrução a que foi submetido o
Itamaraty possa se converter em oportunidade para resgatar a identidade, o
orgulho e altivez da política externa brasileira.
Marcos Degaut é
doutorando em Security Studies pela University of Central Florida, Mestre em
Relações internacionais pela Universidade de Brasília e autor do livro “O
Desafio Global do Terrorismo: Política e Segurança Internacional em Tempos de
Instabilidade” (2014).
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