O contencioso Venezuela-Guiana tem um agravante
ainda mais preocupante do que o mencionado neste editorial do Estadão, com
implicações para a nossa diplomacia, ainda que por motivos puramente históricos
atualmente: o fato de envolver território "brasileiro". Explico. Ao
adjudicar à Grã-Bretanha boa parte do território disputado naquela região com o
Brasil, que atuou no diferendo por arbitragem por meio de Joaquim Nabuco (mas
com base nos excelentes estudos de cartografia histórica feitos por Rio
Branco), o rei italiano (presidente) acabou concedendo aos britânicos
território que o Brasil considerava como seu, com base nos memoráveis esforços
de penetração feitos pelos portugueses na era colonial. Ora, se a Venezuela
contesta as fronteiras atuais, ela de fato está querendo avançar sobre território
"brasileiro", ou que deveria sê-lo, se por acaso as fronteiras
históricas forem contestadas segundo uma cronologia que antecede a arbitragem
do final do século 19. A diplomacia brasileira não pode ficar indifente a esse
avanço ilegítimo dos venezuelanos sobre terras que poderiam ser brasileiras, e
que só estão atualmente sob a soberania da Guiana porque o rei italiano queria
agradar e ficar com os ingleses mais de um século atrás.
Paulo Roberto de Almeida
Uma disputa sob encomenda
Editorial O Estado de S. Paulo,. 22 Julho 2015
Nada como um bom contencioso internacional para
alimentar o discurso nacionalista e patriótico do presidente Nicolás Maduro,
que tenta com isso aliviar a pressão exercida pela crise profunda que o
chavismo provocou na Venezuela. A secular reivindicação territorial sobre um pedaço
da vizinha Guiana está sendo retomada agora com renovado vigor, em razão da
anunciada descoberta de petróleo naquela região. É uma combinação perfeita para
a retórica rastaquera de Maduro: ao suposto roubo do território no século 19,
patrocinado pelo Império Britânico, soma-se a exploração “imperialista”.
A reivindicação sobre o território conhecido como
Essequibo é um tema que une os venezuelanos. Mesmo uma parte da oposição ao
chavismo considera válido exigir a devolução da área, embora tal demanda tenha
remotíssimas chances de ser atendida – pois o Essequibo representa nada menos
que 62% do território da Guiana. É, portanto, um assunto capaz de mexer com o
sentimento do país, razão pela qual, de tempos em tempos, serve a todo tipo de
interesse.
O contencioso sobre o Essequibo remonta ao século
19. A atual fronteira entre Venezuela e Guiana foi estabelecida pelos
britânicos em 1840. Mas a Venezuela considerava que seus limites se estendiam
até o Rio Essequibo, incorporando uma área de 160 mil quilômetros quadrados –
em seus mapas atuais, o país chama essa área, que hoje pertence à Guiana, de
“Guayana Esequiba”, dizendo tratar-se de região “disputada”.
Em 1894, os Estados Unidos, a pedido dos
venezuelanos, sugeriram uma arbitragem internacional – na qual os americanos
serviram como advogados da Venezuela. Sem a defesa feita pelos Estados Unidos,
que tinham interesse em evitar a expansão britânica na região, a Venezuela
teria perdido território até o Rio Orinoco, isto é, metade de sua área atual.
Portanto, o resultado da arbitragem, proclamado em 1899, foi razoável para a
Venezuela – tanto é assim que os venezuelanos só voltaram a reivindicar o
Essequibo em 1949.
Nesse meio tempo, porém, o território já estava
ocupado por guianenses de fala inglesa, que hoje não têm intenção de se
tornarem cidadãos venezuelanos. Essa realidade, além do fato de que é bastante
improvável que a comunidade internacional decida dar a um país mais da metade
do território de outro em razão de um suposto erro de arbitragem cometido há
mais de um século, torna o pleito venezuelano ainda mais implausível.
Em 1966, Venezuela e Grã-Bretanha (e posteriormente
a Guiana independente) se comprometeram a resolver o diferendo em negociações,
mas não houve avanços. Em 1980, a Guiana incorporou formalmente o Essequibo a
seu território.
Em todo esse tempo, o contencioso foi retomado ou
esquecido ao sabor das conveniências políticas. A situação voltou a ficar tensa
em março deste ano, quando a Guiana anunciou que a Exxon Mobil começaria a
explorar petróleo em águas da região disputada. A Venezuela reagiu, e Maduro,
bem a seu estilo, estendeu por decreto a soberania venezuelana às águas da área
que reivindica. Com razão, a Guiana protestou, alegando violação do direito
internacional e do princípio de que todos os Estados devem respeitar a
soberania e a integridade dos demais.
Na última cúpula do Mercosul, o presidente da
Guiana, David Granger, queixou-se das provocações venezuelanas e, num encontro
bilateral, pediu à presidente Dilma Rousseff que ajudasse na mediação. Maduro
quis participar do encontro, mas Dilma não permitiu – no que fez muito bem.
O chefão venezuelano, como se sabe, não se preocupa
muito com leis, ordenamento jurídico e rituais diplomáticos quando se trata de
preservar as fantasias chavistas. A retomada retumbante do contencioso do
Essequibo – em que Maduro diz defender a Venezuela do “imperialismo” americano,
mas age ele mesmo como imperialista – expõe toda a sua truculência,
inadmissível no concerto das nações civilizadas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.