Nesse mesmo ano, por ocasião da Assembleia Geral de setembro, o presidente Lula voltava a colocar a candidatura brasileira a uma cadeira permanente no CSNU, certamente estimulado pelo seu chanceler, depois que FHC e Lampreia tinham deixado o assunto meio no limbo.
Até hoje não se realizou essa reforma e a ampliação do CSNU, e tenho por mim que não se realizará tão cedo. Aliás, não dou a menor importância para o assunto, que não me parece prioritário na agenda interna e externa do Brasil.
Em todo caso, eis o que eu pensava (e ainda devo pensar da mesma forma) em julho de 2003.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017
O Brasil e o Conselho de Segurança da ONU:
um caso em aberto
Paulo
Roberto de Almeida
Filadélfia,
3 de julho, e Washington, 4 de julho de 2003
Considerações
gerais:
Comecemos pela sua pergunta básica:
se a candidatura do Brasil para um assento permanente no CSNU seria “um
projecto irrealista na atual conjuntura de ‘unilateralismo’ americano.”
Não creio que o problema do “unilateralismo” americano
(que deve perdurar pelo futuro imprevisível) seja um impedimento absoluto a
qualquer projeto de reforma da Carta das Nações Unidas e, com ela, a ampliação
do CSNU. Eventuais modificações nessa Carta não são dependentes do
comportamento específico dos EUA, pelo menos não no longo prazo e dentro de
parâmetros que não são dados, todos, pela atitude exclusiva dos EUA em relação
aos projetos de reforma do Conselho, mas dependem de uma série de outras
variáveis, nem todas redutíveis à ação ou postura de um único ator, por mais
poderoso que este seja.
Demandas pela reforma da ONU, em especial de seu
Conselho, vêm se arrastando desde antes do final da Guerra Fria – quando começaram
as pressões, discretas, para a incorporação da Alemanha e do Japão – e vêm
conhecendo um ritmo aleatório desde então, com fases de avanço relativo e
outras de relativa estagnação, independentemente das atitudes ocasionais de um
ou outro dos grandes atores. Esse processo de reforma, que é antes de mais
nada, um lento e cansativo processo de discussões, consultas discretas e
demandas abertas, tem conhecido um itinerário de percalços e de avanços sempre
perturbados por discordâncias globais e desacordos parciais, nem todos eles
determinados pelos principais atores. Em algumas épocas, ele figurou no topo da
agenda, em outros foi empurrado pouco gloriosamente para baixo do tapete, mas
uma constatação básica é que se trata de uma complexa e difícil negociação
envolvendo os principais países candidatos, os membros permanentes do CSNU e um
número variável de atores secundários que ainda assim têm o poder de bloquear o
processo, na medida em que ele requer o quase consenso dos países membros da
ONU.
Resumindo essa questão básica: os EUA podem ser
“unilateralistas” ou, ao contrário, “multilateralistas” assumidos, e ainda
assim adotar uma atitude pró ou contra qualquer reforma do Conselho que lhes
pareça não condizente com os seus interesses de médio e longo prazo, assim como
países menos “poderosos”, como por exemplo a França e a Grã-Bretanha, podem
opor-se discretamente a essa reforma, mesmo sendo, se quisermos,
multilateralistas “assumidos”, com base na percepção (certa ou errada, não
importa agora) de que qualquer reforma tende a se fazer em detrimento parcial
de seus interesses políticos (no caso de prevalecer um perfil “rotativo” para a
representação européia, como sugerem alguns).
Os EUA, segundo declarações informais feitas em
diferentes ocasiões (na era Clinton, de maneira mais explícita), manifestaram a
opinião de que estariam dispostos a favorecer um aumento moderado do CSNU
(variou de 20 a 24 membros totais, com dez permanentes, ou cinco adicionais),
desde que houvesse consenso em torno da questão. Ora, a questão do “consenso”,
mais do que qualquer atitude individual, é o mais poderoso obstáculo para que
se alcance um acordo em torno de um perfil adequado para a reforma do CSNU, e
os EUA na verdade tem insistido, antes, na própria reforma da ONU, do que na do
Conselho. De fato, eles obtiveram, sob pressão do Congresso e dos mais radicais
conservadores republicanos, uma “reforma” administrativa no sentido de
“racionalizar” as atividades da ONU e de repartir os encargos financeiros
(“burden share”), de que resultou um aumento nas dotações obrigatórias do
Brasil. Remeto, para mais amplos desenvolvimentos, a meus trabalhos sobre o
tema: “A Organização das Nações Unidas: estrutura e desenvolvimento” (765) e a
“ONU e o fim da Guerra Fria” (770).
Questões
específicas:
1 -
Existe hoje, na sua avaliação, um ambiente favorável para a reforma do CSNU?
Talvez, na medida em que a questão do Iraque e os
enfrentamentos ocorridos no CSNU a propósito da intervenção americana, por
muitos julgada ilegal, despertaram a atenção dos interlocutores estatais e
não-estatais para as regras de funcionamento e a representatividade desse órgão
central no ordenamento onusiano. Mas debate público não significa ipso facto disposição para a reforma,
uma vez que esta precisa ser iniciada, ou continuada, a partir da inscrição de
algum projeto de resolução na agenda corrente dos trabalhos suscetível de
recolher a adesão da totalidade, ou da maioria qualificada, dos membros da ONU.
Ora, não se pode dizer que, independentemente da
acuidade ou urgência da matéria, tal como percebida por muitos observadores
imparciais e interessados, tal consenso esteja prestes a emergir entre quase
duzentos países membros, ou sequer entre os 15 ou 20 atores relevantes que
poderiam contribuir para a emergência de tal acordo. Os problemas básicos são
os de sempre: por um lado, os cinco membros permanentes precisariam estar de
acordo em dividir o seu poder com cinco ou mais membros permanentes (mesmo sem
atribuir aos “adicionais” o poder de veto que eles detêm originalmente), por
outro, grupos de países (que costumam ser indentificados com os blocos
regionais) precisariam se por de acordo sobre quais dentre eles seriam mais
representativos de sua região geográfica para se verem atribuídos o direito de
“representar” os demais.
O problema começa em que, na primeira vertente, países
dotados de “poder” apenas relativo – no sentido em que, com a exceção dos EUA,
poucos conseguem projetar um poder inquestionável para os demais – podem ver
nessa ampliação dos membros permanentes uma espécie de “diluição” de seu
próprio poder. No segundo aspecto, vários países supostamente candidatos não
concordam em que devam ser representantes de algum grupo ou bloco regional, e
consideram seu eventual acesso como resultado do mérito próprio ou importância
internacional, não como mandato atribuído – e supostamente “controlável” – por
uma região específica. Tal posição é defendida, por exemplo, pelo Brasil, país
abertamente candidato ao Conselho desde final dos anos 1980 pelo menos.
O debate internacional ainda não parece ter avançado
suficientemente na atualidade, a despeito de duas décadas de tratamento
(intermitente) da questão no âmbito da ONU.
2 -
Essa reforma interessa ao governo dos Estados Unidos?
Numa primeira abordagem, poder-se-ia dizer que não, mas
as respostas não são tão claras, ou diretas. Como qualquer outro membro
permanente original, os EUA veriam com muita cautela qualquer ampliação do
CSNU, uma vez que a ampliação do número de interlocutores tende a tornar ainda
mais difícil e lento o processo de tomada de decisão naquele âmbito, pois os
interesses (nacionais, sempre) serão ainda mais diversos e talvez
contraditórios. O problema do veto coloca dificuldades adicionais a essa “nova”
(?) arquitetura, já que os obstáculos seriam acrescidos caso prevaleça o
mandato original.
Por outro lado, os EUA não poderiam se opor, sozinhos, a
um consenso emergente, se tal fosse o caso, pois a pressão política
internacional os colocariam em posição de difícil sustentação jurídica. De
fato, os EUA já sinalizaram que poderiam aceitar algumas mudanças na atual
arquitetura, desde que a eficiência da maquinaria da ONU não fosse afetada por
essa reforma. Nas condições atuais, digamos que os EUA não são proponentes
ativos da reforma, atuando de modo muito mais “passivo” ou “reativo”, em função
das circunstâncias emergentes. Nas atuais circunstâncias, nas quais os
conflitos criados com a França (e, em menor grau, com outros membros do
Conselho) a propósito da intervenção no Iraque ainda não se encontram totalmente
resolvidos, a atitude dos EUA pode ser ainda mais “passiva” do que normalmente.
3 - Ainda na sua avaliação, os apoios à
candidatura brasileira formulados de forma bilateral são sustentáveis caso a
discussão viesse a acontecer ou servem apenas como um “agrado” bilateral caso a
caso?
O Brasil, na atual fase de ativismo bilateral e
multilateral em favor de sua aceitação como “candidato natural” ao CSNU, tem
obtido alguns apoios explícitos, outros menos explícitos, que certamente terão
seu peso no momento devido. Em alguns casos, tais apoios podem ser
classificados como de “simpatia”, sem o devido respaldo em alguma força ou
capacidade de pressão própria em favor do Brasil num eventual processo
decisório; em outros, o apoio poderia carregar um certo peso político ou
regional (como poderiam ser os casos, por exemplo, de uma troca de apoios
recíprocos entre o Brasil e a Índia, ou com a África do Sul, respectivamente).
Independentemente de simpatias explícitas ou menos
explícitas, o processo é por demais complexo para que seus desenvolvimentos
possam ser deduzidos de apenas um punhado de apoios bilaterais. Trata-se de uma
engrenagem que vai se mover de modo muito lento e de maneira muito complexa,
mas não resta dúvida de que a ausência de objeções explícitas – e creio que o
Brasil não carrega nenhuma oposição direta, como poderia ser o caso de um ou
outro candidato envolvido em conflitos regionais – e, ao contrário, a
manifestação de votos explícitos vão ter o seu peso no momento em que essa
máquina complicada for levada a uma decisão resolutiva.
4 - Ainda que seja pouco provável que
venha a acontecer uma reforma e que o Brasil venha a ter a sua pretensão
atendida, deve o governo brasileiro investir nessa campanha a longo prazo, como
uma política de Estado?
Essa decisão cabe a presidente,
responsável em última instância pela política externa do País. O Brasil, em
diferentes ocasiões, julgou que estava em condições de assumir maior
responsabilidade pela paz e segurança internacionais. Foi assim na época da Liga
das Nações, quando queriamos ser confirmados como membro dos órgãos de direção,
pretensão não atendida e que motivou nossa retirada da Liga em 1926 (e o
ingresso da Alemanha, no mesmo momento, depois seguida da retirada, por Hitler,
em 1933 ou 1936). Foi assim também na constituição da ONU, em 1945, quando
achamos que os EUA sustentariam nossa pretensão (aliás presente desde antes na
decisão de mandar tropas para o teatro de guerra europeu), afinal obstaculizada
pela G-B e pela URSS.
Desde então, o Brasil tem avançado sua candidatura em
circunstâncias variadas e com fortunas diversas. O presidente Sarney colocou de
modo claro a candidatura do Brasil desde 1989, depois reafirmada por Celso
Amorim durante o governo Itamar. Na gestão FHC, o assunto foi tratado de modo
muito discreto, seja porque o presidente não desejava criar um atrito
desnecessário com a Argentina (que sempre favoreceu a tese da rotatividade de
uma representação regional), seja porque o ministro Lampreia não acreditava que
tal reforma fosse possível.
Na atual gestão Lula-Amorim, o assunto volta com mais
força, mas tem sido tratado de modo cauteloso igualmente, pois não está claro
quando e como o tema será tratado no âmbito da ONU. Em todo caso, a coleção de
apoios já acumulada não pode ser desprezada e terão seu peso no momento certo.
5 - Isso poderia atrapalhar o
relacionamento com outros prováveis candidatos latino-americanos, como México e
Argentina, ou tem pouco impacto real?
Sempre haverá uma situação delicada entre os três
“grandes” da América Latina, uma vez que a seleção de um pode afetar o
prestígio, ou a auto-estima, dos demais. O México, na verdade, nunca foi
candidato efetivo (de fato nem membro do CSNU ao longo do tempo), até
recentemente, mas não queria permitir ao Brasil ocupar esse espaço político que
poderia querer representar uma espécie de liderança latino-americana.
Ultimamente, o presidente Fox (talvez induzido nessa área pelo ex-chanceler
Jorge Castañeda) demonstrou que o México poderia aspirar a um maior papel na
ONU. O mesmo raciocínio parece valer para a Argentina, talve mais pelo lado da
sua diplomacia, que busca manter a paridade política e estratégica com o
Brasil, independentemente de condições econômicas ou capacitação militar.
O Brasil tem reafirmado que não é candidato “contra”
seus vizinhos latino-americanos e de fato nem coloca sua candidatura no âmbito
exclusivamente regional, para justamente afastar uma disputa retórica ou real
com outros possíveis candidatos na região e até mesmo a tese da “rotatividade
regional” (defendida pelo México, no hemisfério, e pela Itália, na Europa).
Em anexo, meus dois trabalhos mencionados anteriormente,
que foram incorporados, de uma ou outra forma, em meu livro Os Primeiros Anos do Século XXI: o Brasil e
as relações internacionais contemporâneas (Paz e Terra, 2002), que pode ser
citado como a referência básica nesse tipo de discussão.
Paulo
Roberto de Almeida
Filadélfia,
3 de julho, e Washington, 4 de julho de 2003
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