Paulo Roberto de Almeida
Desconcertado com o tom
“muito pessimista” das palavras do orador da turma do Instituto Rio Branco que
se formava em meados de 1961, como observou rapidamente ao final de uma
alocução que ameaçava a todos com o aniquilamento nuclear, o presidente Jânio
Quadros, escolhido paraninfo da turma, tentou improvisar argumentos um pouco mais
otimistas em seu discurso no velho Palácio Itamaraty do Rio de Janeiro. Tal se
deu em reação à mensagem central transmitida pelo jovem diplomata a colegas,
superiores e familiares, provavelmente também chocados com a crueza do alerta:
“Nós, os que hoje temos vinte anos... não sabemos se nos será dado o tempo de
ler os grandes livros, ouvir a música dos Mestres,... explorar a multiforme
beleza do mundo... numa época em que a variação do humor dos estadistas ou a
distração dos operadores de radar pode,
a qualquer momento, precipitar o Apocalipse.”
Não sabemos se a plateia
se recompôs, ou se o presidente conseguiu insuflar algum entusiasmo nos diplomatas
que então iniciavam sua vida profissional, numa conjuntura em que a crise dos mísseis
soviéticos em Cuba ainda não tinha colocado o mundo à beira do precipício, ou
em que, no próprio cenário político brasileiro, adensavam-se as nuvens sombrias
da crise política que surpreenderia a todos logo adiante. Menos de dois meses
depois, Jânio Quadros renunciava, deixando o país mergulhado no estupor de um
grave impasse institucional, agregando, portanto, aos temores já provocados
pela confrontação entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Assim foi o início da
carreira diplomática de Rubens Ricupero, escolhido orador da turma de 1960
pelas suas qualidades naturais de arguto analista e de sintetizador refinado das
complexidades e matizes das relações internacionais e da posição do Brasil no sistema
bipolar. Trabalhando no gabinete do ministro San Tiago Dantas, numa fase em que
o parlamentarismo temporariamente vigente não conseguia encaminhar os problemas
de desequilíbrio econômico externo e os desafios representados pelo clima de
Guerra Fria, então no seu auge, o jovem Ricupero teve, por assim dizer, o seu
batismo de fogo, naqueles anos em que o Brasil ensaiava um experimento de
política externa independente, em meio às pressões americanas por uma postura
mais alinhada.
O realinhamento ocorreu,
de fato, a partir de abril de 1964, quando o jovem diplomata – Cônsul de
Terceira Classe, segundo a denominação vigente na época – já tinha sido
deslocado para o seu primeiro posto, Viena, aliás, um dos cenários clássicos da
Guerra Fria. Promovido a Segundo Secretário em outubro daquele ano, Ricupero
voltou ao anticomunismo da periferia em 1996, quando foi removido para Buenos
Aires, onde os militares seguiam o exemplo de seus colegas brasileiros e também
derrubavam um presidente civil, democraticamente eleito. As etapas seguintes de
ascensão na carreira foram todas por merecimento, e de forma brilhante:
Primeiro Secretário em setembro de 1970, quando já estava em Quito; Conselheiro
em janeiro de 1973, quando era chefe da Divisão de Difusão Cultural; deslocado
a Washington, entre 1974 e 1977, de onde voltou para chefiar, até 1980, a
Divisão da América Meridional-II (países do Cone Sul), mas já promovido a
Ministro de Segunda Classe, o penúltimo degrau, desde abril de 1978.
Americanista confirmado, e
dotado de amplos conhecimentos históricos e sociológicos sobre toda a região, exerceu-se
então como chefe do Departamento das Américas durante toda a primeira metade
dos anos 1980, tendo sido promovido a Ministro de Primeira Classe (embaixador)
em junho de 1982. Foi como diplomata experiente, portanto, que assistiu ao
declínio do regime militar no Brasil e à transição ao regime democrático, sob a
liderança de Tancredo Neves, de quem foi assessor especial e a quem acompanhou
numa viagem internacional pré-posse, que talvez tenha precipitado sua doença e
desenlace fatal. Como assessor internacional de José Sarney, de 1985 a 1987,
Ricupero participou, e foi um dos mentores decisivos, do processo de
aproximação do Brasil com seus vizinhos, tendo ajudado a costurar alguns dos
grandes tratados de cooperação regional, em especial a montagem da integração
no Cone Sul, que desembocaria no Mercosul. Desde o final da década anterior,
também ministrou diferentes matérias no curso de relações internacionais da
UnB, o único então existente no Brasil, além das aulas de política externa brasileira
no Instituto Rio Branco.
Quando ingressei no
Itamaraty, no final de 1977 – por concurso direto e não através do Rio Branco –,
sua palestra sobre a diplomacia americana do Brasil foi uma das duas únicas que
me impressionaram favoravelmente, no mar de platitudes burocráticas que foi
então servido aos recém admitidos. Foi para mim um prazer, portanto, tê-lo como
chefe na Delegação junto aos organismos internacionais em Genebra, entre 1987 e
1990, ao início da Rodada Uruguai do Gatt, da qual iria resultar a criação da
OMC, alguns anos depois. Ricupero já estava servindo no posto mais importante
da diplomacia brasileira, a embaixada em Washington (1991-92), de onde o
presidente Itamar Franco o retirou para servir como ministro extraordinário da Amazônia
legal e dos recursos hídricos, em homenagem a seu brilhante desempenho durante
a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,
realizada pouco antes no Rio de Janeiro.
Daí a assumir o cargo de
Ministro da Fazenda, em abril de 1994, no momento mais crucial do agônico
esforço que o Brasil empreendia para uma estabilização há muito esperada no
plano macroeconômico, foi o reconhecimento natural de suas qualidades de
comunicador tranquilo e de talentoso operador da introdução do Plano Real, em
julho desse ano. Uma moeda, mais até do que a expressão de um valor, é antes de
qualquer outra coisa, uma questão de confiança, uma forma da identidade
nacional, algo que Ricupero soube inculcar com grande maestria na psicologia de
um povo já frustrado por diversos planos fracassados de combate à inflação. Sua
figura, de certo modo franciscana, como introdutor do real, tem muito a ver com
o sucesso desse processo de estabilização, implementado em meio a muitas
dúvidas, no Brasil e no exterior: o FMI, por exemplo, não o apoiou, e o PT
torcia pelo seu fracasso, chamando-o de “estelionato eleitoral”.
Sua saída inesperada da
Fazenda, em setembro de 1994, na sequência de palavras impensadas antes de uma
entrevista televisa, representou um “ponto fora da curva”, numa carreira de
outro modo brilhante, que o conduziu ainda à embaixada do Brasil na Itália,
terra de seus ancestrais, e à direção geral a Unctad – a Conferência das Nações
Unidas sobre comércio e desenvolvimento – novamente em Genebra, por dois
mandatos. Foi ele que conseguiu realizar no Brasil – em São Paulo, em 1997 – a
única conferência desse órgão criado em grande medida pelos esforços da
diplomacia brasileira, em 1964.
Aposentado, voltou às
lides acadêmicas – das quais, na verdade, nunca se afastou, já que sempre
esteve à frente do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial – desta vez na
direção da Faculdade de Economia da FAAP-SP, que também abriga um curso de
relações internacionais. A aposentadoria tampouco o eximiu de se exercer em
tarefas de consultoria internacional, em órgãos intergovernamentais, junto a
empresas multinacionais ou em fundações de corte intelectual, como os chamados think tanks. Desde os primeiros prêmios
obtidos por seus resultados brilhantes no Instituto Rio Branco, Ricupero também
acumulou, ao longo da vida profissional, um número expressivo de honrarias e de
ordens nacionais, no Brasil e em diversos outros países, aos quais esteve
ligado, diplomaticamente ou afetivamente.
Independentemente, porém,
de todos os cargos, funções e missões em que se desempenhou, o que mais
distingue Ricupero, como a poucos de seus colegas, é a sua qualidade de
pensador e de formulador de posições diplomáticas. O Itamaraty, por certo, é
conhecido por abrigar inúmeros intelectuais: escritores, artistas,
personalidades refinadas que abrilhantaram as letras e as artes do Brasil (e
algumas vezes do mundo, como alguns poetas, músicos e até ensaístas). Mas são
poucos os que verdadeiramente integram o pequeno círculo de intelectuais
reflexivos que podem, facilmente, desmentir uma antiga expressão que dizem
existir nessa carreira disciplinada e hierárquica: “Você só assina artigos
quando não mais os escreve” (o que significa que muitos secretários são os que
de fato escrevem os textos, como eu mesmo fiz no curso inicial de minha
carreira, que depois são publicados sob a assinatura de embaixadores). Basta
olhar de relance a lista de suas publicações para constatar a riqueza e a
diversidade de sua produção intelectual: só na Biblioteca do Itamaraty, em
Brasília, são mais de quarenta entradas sob o seu nome, o que não inclui, por
certo, as dezenas, ou centenas, de artigos de imprensa – na Folha de São Paulo, por exemplo – escritos
em linguagem límpida e compreensível aos leigos, eventualmente coletados em
alguns dos livros que publicou, como, por exemplo, Esperança e Ação (Paz e Terra, 2002).
Muito requisitado para
todo tipo de pronunciamento conjuntural e de demandas práticas, vindas de todos
os lados, Ricupero ainda assim conseguiu produzir alguns textos de referência
no pensamento diplomático ou mesmo no terreno historiográfico. São bem,
conhecidos, por exemplo, seus ensaios sobre a inserção mundial, sobre o relacionamento
hemisférico do Brasil e sobre o comércio internacional– vários recolhidos na
coletânea Visões do Brasil: ensaios sobre
a história e a inserção internacional do Brasil (Record, 1995) – e sobre os
dilemas do Brasil na globalização – título, aliás, de um dos seus livros
(Senac, 2001) –, além dos seus artigos dominicais, na Folha, e até um livrinho editado por esse jornal, sobre o projeto
americano da Alca (2003).
Menos conhecidos são os seus
trabalhos de maior fôlego em termos de pesquisa histórica, em especial sobre: a
diplomacia brasileira ao longo do século XX (em grande medida sobre as relações
americanas), vários dos quais compilados na coletânea acima indicada; sobre o
Barão do Rio Branco, uma referência obrigatória na vida de todo diplomata, mas
uma fonte de fecundas reflexões comparativas para este pensador de visão larga;
um bem fundamentado ensaio comemorativo sobre o problema da “abertura dos
portos”, que aliás se estende aos tratados de 1810, em livro coletivo homônimo,
(Senac-SP, 2008); e o mais recente estudo sobre o Brasil no mundo ao início do
século XIX, no qual Ricupero traça um panorama dos desafios colocados ao “império”,
um gigante com pés de barro, na conjuntura da independência, publicado no
primeiro volume – Crise Colonial e
Independência, 1808-1830 (Fundación Mapfre-Objetiva, 2011) – de uma coleção
sobre a História do Brasil Nação,
1808-2010, numa série dedicada à América Latina na história contemporânea.
Em 2017 ele publicou sua
obra síntese, A diplomacia na construção
do Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017), que não é uma
simples história diplomática, mas sim uma história do Brasil e uma reflexão
sobre seu processo de desenvolvimento. O núcleo central da obra é composto por
uma análise, profundamente embasada no conhecimento da história, dos grandes
episódios que marcaram a construção da nação pela ação do seu corpo de
diplomatas e dos estadistas que serviram ao Estado nessa vertente da mais importante
política pública, cujo itinerário – à diferença das políticas econômicas ou das
educacionais – pode ser considerado como exitoso.
O que justamente distingue
a escrita refinada e elegante de Ricupero é sua “fascinação metodológica com a
História”, como bem apontou no prefácio à coletânea Visões do Brasil o embaixador Gelson Fonseca. Isso no plano formal;
no terreno substantivo é certamente sua angústia com os problemas do Brasil – a
injustiça, a pobreza, a desigualdade – e o empenho em vê-lo emergir no cenário
internacional como um interlocutor de peso na definição de soluções aos grandes
problemas da humanidade. Uma atitude humanista, no sentido propriamente
renascentista, ou iluminista, da palavra, combinada a uma vocação de pensador
da inserção internacional do Brasil. De fato, Ricupero é um dos poucos
intelectuais do Itamaraty que merece, legitimamente, essa designação!
Brasília,
27 de setembro de 2017.
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