Se Putin vier ao Brasil, ficaremos muito contentes, diz Mauro Vieira
Mauro Vieira comanda, pela segunda vez, Ministério das Relações Exteriores
Author: Leandro Prazeres
BBC News em Brasília, 27/12/2023
O Ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, disse em entrevista exclusiva à BBC News Brasil que o governo brasileiro ficará "contente" se o presidente da Rússia, Vladimir Putin, vier ao Brasil durante a cúpula do G20, em novembro de 2024, apesar de o russo ser alvo de um mandado de prisão expedido pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) por supostos crimes de guerra cometidos na Ucrânia.
"Se ele (Putin) quiser vir, nós estaremos muito contentes que esteja presente e nas reuniões do Brasil", disse Vieira.
A possível vinda de Putin ao Brasil vem causando polêmica porque o Brasil é signatário do TPI desde 2000 e ratificou o tratado que criou o tribunal dois anos depois.
O tribunal é um órgão vinculado à Organização das Nações Unidas e que julga crimes de guerra. Como é signatário do tratado, especialistas afirmam que o Brasil poderia ser obrigado a executar a prisão de Putin caso ele pise em território nacional.
Em março deste ano, o tribunal expediu um mandado de prisão contra Putin e outros agentes do governo russo por conta de supostos crimes cometidos durante as ações militares russas em território ucraniano.
Segundo a decisão, Putin teria participação na deportação de milhares de crianças ucranianas para a Rússia após o início da guerra entre os dois países, em fevereiro de 2022.
O governo russo vem, reiteradamente, rejeitando as acusações de crimes de guerra. Além disso, o país não é signatário do tribunal (assim como países como Estados Unidos, Índia e Israel).
Apesar disso, o receio de uma eventual prisão foi apontado, em agosto deste ano, como um dos motivos pelos quais Putin não compareceu pessoalmente à Cúpula dos BRICS, em Joanesburgo, na África do Sul. Os sul-africanos também são signatários do TPI.
Ainda sobre este caso, Mauro Vieira disse que caso o presidente russo venha ao Brasil no ano que vem, o governo brasileiro não tomará medidas para que Putin seja preso.
"Nós não tomaremos nenhuma iniciativa para que isso aconteça", disse Vieira.
A fala de Vieira está alinhada à posição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que, em setembro deste ano, disse que Putin não seria preso.
"O que eu posso dizer é que, se eu for presidente do Brasil e se ele for para o Brasil, não há porque ele ser preso", declarou Lula a uma TV indiana.
Dias depois, porém, Lula mudou o tom da resposta, afirmando que uma decisão sobre uma eventual prisão de Putin caberia à Justiça e não ao governo.
Balanço e foco africano
Mauro Vieira é um considerado por diversos de seus pares como um dos quadros mais experimentados da história recente do Itamaraty, nome pelo qual o Ministério das Relações Exteriores do Brasil é conhecido.
Esta é a segunda vez que ele assume o comando da pasta. A primeira foi entre 2015 e 2016, durante o último ano do mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Além disso, ele ocupou três dos postos de maior prestígio da diplomacia brasileira: as embaixadas do Brasil na Argentina e nos Estados Unidos e o cargo de representante permanente do país na Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York.
Visto como um nome próximo às gestões petistas, Mauro Vieira foi enviado à embaixada do Brasil na Croácia durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
Após a vitória de Lula nas eleições de 2022, seu nome ganhou força e foi confirmado como futuro chanceler.
Em entrevista à BBC News Brasil, Mauro Vieira defendeu a quantidade de viagens internacionais feitas por Lula durante o primeiro ano de seu novo mandato.
Entre janeiro e dezembro deste ano, o petista saiu do Brasil 15 vezes, visitou 24 países e passou mais de 60 dias no exterior.
Segundo Mauro Vieira, havia um "vácuo total" e o Brasil precisava fazer um movimento de "reinserção" na ordem internacional.
Vieira também defendeu a retomada do financiamento brasileiro de projetos tocados por empresas brasileiras no exterior como forma de aumentar a presença do país em regiões como a África.
O chanceler também disse que ainda haveria tempo hábil para que a conclusão do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, mas admitiu que, após fevereiro do ano que vem, essa janela de oportunidade tende a ficar menor por conta das eleições para o Parlamento Europeu.
Confira os principais trechos da entrevista, que foi editada para fins de clareza e concisão.
BBC News Brasil - Neste ano, o presidente Lula e o senhor viajaram bastante e houve críticas sobre o que seria uma falta de foco da política externa brasileira, uma vez que ela teria aberto muitas frentes. O senhor concorda com essa crítica e qual vai ser o foco da política externa do Brasil em 2024?
Mauro Vieira - Em primeiro lugar, eu não concordo.
Acho que ele (Lula) tinha de viajar até mais do que viajou. O presidente não viajou mais porque ele é muito requisitado aqui no Brasil. Dentro das circunstâncias, ele fez ótimos circuitos.
Em segundo lugar, havia um vácuo total. Não havia Brasil no mundo. Não se falava do Brasil e nem se chamava o Brasil para nada. O Brasil não participava de nenhuma concertação (internacional), não era consultado para nada nas Nações Unidas. Diante desse vácuo, ele (Lula) tinha que fazer o que fez [...] Este foi um movimento de reinserção.
No ano que vem, ele vai começar por uma coisa que nós estamos estrategicamente planejando para ser uma volta à África. Ele vai começar por uma visita à sede da União Africana, que fica em Adis Abeba (capital da Etiópia), onde ele vai fazer para a assembleia anual da União Africana. Depois, deve visitar outros dois países africanos.
BBC News Brasil - Sobre a África, nos últimos anos, diversos projetos que anteriormente poderiam ser tocados por empresas brasileiras passaram a ser executados por empresas de outros países, em especial as chinesas. Na sua avaliação, o Brasil perdeu o "bonde" da África?
Mauro Vieira - Não acho, não. Nós temos, inclusive, similaridades enormes com os países africanos. O que acontece lá é o seguinte: a China, com a economia que eles têm, participa não só do começo (dos projetos), mas com grandes financiamentos. Eles financiam obras públicas, fazem doações, uma série de coisas. Não podemos e nem queremos competir. Não estamos competindo com a China. Temos capacidades próprias e faremos coisas por lá. Um exemplo: há um grande interesse pelas ações de cooperação técnica. A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) é um grande ativo brasileiro. Todo mundo pede parcerias.
BBC News Brasil - O senhor mencionou que o Brasil não quer e nem vai competir com a China. No passado, o Brasil, por meio do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico), tinha instrumentos para financiar projetos de infraestrutura em outros países. Desde a Operação Lava Jato, esses instrumentos foram extintos. Hoje, o tema voltou a ser discutido no Brasil. Na sua avaliação, o Brasil deveria voltar a financiar projetos no exterior?
Mauro Vieira - Eu não tenho dúvidas de que sim. Se dependesse de mim, sim, mas não depende. É um instrumento importantíssimo e valeria a pena porque são financiamentos de produtos ou serviços brasileiros. Houve um momento em que havia um projeto de cooperação técnica em que a gente (o Brasil) dava cursos nos países e vendia tratores de pequeno porte para a agricultura. Era um negócio fantástico. Esses financiamentos sempre foram feitos a empresas e prestadoras de serviços brasileiras [...] Eu sei que (o financiamento a projetos no exterior) era muito criticado, mas isso nunca foi caridade, nunca foi doação. Ao contrário, era financiamento. A exportação de produtos que criava empregos e gerava impostos no Brasil.
BBC News Brasil - Gostaria de abordar o Mercosul. O Brasil e a Bolívia são os únicos países do Mercosul governados por presidentes de esquerda ou de centro-esquerda. Qual o impacto disso para o futuro do bloco? Fica mais difícil negociar com presidentes ideologicamente diferentes?
Mauro Vieira - Não. O Mercosul é tão importante para todos os países que tudo se supera. O presidente do Paraguai (Santiago Peña) tem uma proximidade e uma admiração muito grande pelo presidente Lula e ele vem de uma linha política diferente. No Uruguai é a mesma coisa. O presidente Luis Alberto Lacalle Pou tem orientação política diferente (à de Lula) e fez grandes elogios dizendo que tudo o que acertou com o presidente brasileiro foi cumprido [...] Para você ter uma ideia, nos últimos quatro anos, o Uruguai não tinha aderido às declarações finais do Mercosul. Neste ano, no Brasil, com o presidente Lula, ele aderiu.
BBC News Brasil - Sobre o Mercosul, havia uma expectativa de que o acordo comercial com a União Europeia fosse fechado até o final da cúpula do bloco. No início de dezembro. O acordo não foi fechado. A informação que circulou é de que o governo argentino do ex-presidente Alberto Fernández, recuou na última hora. Foi isso mesmo o que ocorreu e quão surpreendente foi esse movimento?
Mauro Vieira - Não foi surpreendente.
BBC News Brasil - Mas foi isso que aconteceu?
Mauro Vieira - Um pouco foi isso (o que aconteceu) [...] O governo argentino do Alberto Fernández não quis tomar uma decisão sobre um acordo que ia ser totalmente concluído e executado no mandato seguinte. Ele preferiu esperar e deixar essa decisão para o próximo presidente. Coisa que em nada impede a conclusão do acordo. Nós temos ainda até final de fevereiro para aplainar as últimas diferenças e fechar o acordo. Ele (Alberto Fernández) não quis assumir, dois ou três dias antes de deixar o governo, responsabilidades e compromissos que cairiam sobre o próximo governo.
BBC News Brasil - Depois de fevereiro, a janela de oportunidade para o fechamento do acordo fica menor?
Mauro Vieira - Acho que sim porque, na União Europeia, eles vão entrar em eleições para o Parlamento Europeu, para a Comissão (Europeia) e para a Presidência do Conselho (Europeu). Haverá circunstâncias eleitorais próprias deles. Mas acho que o tempo que temos até lá é mais que suficiente.
BBC News Brasil - O presidente argentino, Javier Milei, fez movimentos distintos na campanha e após vencer as eleições. Na campanha, usou palavras de baixo calão para se referir ao presidente Lula. Após a vitória, no entanto, enviou sua chanceler (Diana Mondino) ao Brasil e convidou o presidente Lula para sua posse. Mas também posou com o principal adversário do presidente Lula, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Como o senhor avalia esses movimentos e quão confiável é o governo de Javier Milei sob a perspectiva brasileira?
Mauro Vieira - É confiável pelas declarações feitas a mim pessoalmente, nas duas ocasiões que eu estive com a chanceler Diana Mondino.
Ela veio ao Brasil 15 dias antes da posse e conversamos por uma hora. Depois disso, conversamos na véspera da posse, em Buenos Aires. E ela disse que quer trabalhar com o Brasil.
E quando eu estive com o presidente Milei, em duas oportunidades, [...] ele também disse a mesma coisa. Mandou um recado muito claro de que quer trabalhar com o Brasil e de que os interesses entre os dois países são muito grandes e de que há abertura.
Nós também fizemos gestos em relação a eles [...] Apoiamos um pedido de financiamento deles junto à CAF (Cooperação Andina de Fomento), que foi a prova importante de que trabalharemos juntos porque o interesse nacional está acima de qualquer ideologia.
BBC News Brasil - Ainda sobre a América do Sul, gostaria de falar da recente crise na região de Essequibo, entre a Guiana e a Venezuela. Considerando que o Brasil tem uma relação próxima com o regime venezuelano, o Brasil demorou a agir em relação aos movimentos feitos por Nicolás Maduro, que realizou um referendo sobre a criação de um estado venezuelano sobre o território em disputa?
Mauro Vieira - O Brasil tem boas relações com todo mundo, não apenas com a Venezuela. Em primeiro lugar, a gente sempre falou desse tema. Nem toda a diplomacia pública você anuncia, mas nós sempre falamos desse assunto com os dois lados. Não demoramos, nada. Quando as notícias começaram a subir de intensidade, o presidente Lula mandou imediatamente um emissário, o embaixador Celso Amorim, para levar à Venezuela a nossa posição sobre o assunto que é a posição de que apoiamos a solução pacífica de controvérsias.
BBC News Brasil - O presidente da Guiana, Irfaan Ali, disse à BBC News Brasil que não descarta autorizar uma base militar americana no território do seu país. Em que medida uma base militar americana compromete a posição do Brasil na região?
Mauro Vieira - Eles (Guiana) nunca nos disseram isso [...] Oficialmente, não tenho essa notícia. Agora, em relação a bases de países estranhos à região, no nosso continente, nós não queremos. A América Latina e a América do Sul são uma zona de paz. Nós não queremos bases estrangeiras. É um toma sobre o qual não temos notificações oficiais, mas é tema sobre o qual poderemos conversar com os nossos vizinhos.
BBC News Brasil - Integrantes do próprio governo afirma em caráter reservado que Maduro fez esse movimento em torno de Essequibo para aglutinar sua militância com vistas às eleições de 2024. O Brasil teme que Maduro faça outras investidas do tipo até as eleições e que elas possam gerar tensão na região?
Mauro Vieira - Investidas em que sentido?
BBC News Brasil - Como a ocorrida em torno da região de Essequibo.
Mauro Vieira - Eu não posso interpretar as projeções futuras ou mesmo fazer projeções futuras ou interpretar atitudes de chefes de estado. O que eu posso dizer é que mantemos um ótimo diálogo com a Venezuela. Reabriremos formalmente a nossa embaixada em Caracas, no dia 4 de janeiro. Indicamos uma embaixadora experiente (Glivânia Maria de Oliveira) e vamos retomar o diálogo que nos interessa. Temos mais de 2 mil quilômetros de fronteira com a Venezuela há mais de 20 mil brasileiros morando lá. Queremos e devemos ter diálogo com a Venezuela, como também com a Guiana e com todos os demais países.
BBC News Brasil - As pesquisas mais recentes mostram o ex-presidente Donald Trump a frente do presidente Joe Biden na corrida eleitoral dos Estados Unidos. Considerando que já sabemos como foi o seu mandato, o que uma eventual eleição de Trump alteraria nas relações entre Brasil e Estados Unidos?
Mauro Vieira - Essa será uma decisão tomada pelos eleitores norte-americanos. No mais, há interesses de cada lado. É preciso continuar procurando o seu interesse na relação que é muito grande e muito forte [...] Quem assumir vai manter uma relação com o Brasil no nível que eles acharem que é importante para o Brasil e para eles. Temos um comércio importante e eles ainda são, e continuarão a ser por algum tempo, os maiores investidores no Brasil. Eu acho que não dá para não ter relações só porque as orientações políticas de cada um são diferentes.
BBC News Brasil - No ano que vem, haverá a cúpula do G20 no Brasil. O presidente Lula já disse que provavelmente vai convidar o presidente da Rússia, Vladimir Putin, ao Brasil. Considerando que existe um mandado de prisão contra ele pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), qual seria o tamanho do constrangimento da vinda do presidente Putin para o Brasil nesse contexto?
Mauro Vieira - Olha... ele (Lula) não vai convidar... (Putin) está convidado porque é membro nato, fundador do BRICS e todos os países, inclusive os novos, estão convidados. Isso a gente tem que ver a cada caso. Há sempre, mesmo nas normas do TPI, tratamentos para os chefes-de-Estado que a gente tem que examinar. Se ele (Putin) quiser vir, nós estaremos muito contentes que esteja presente e nas reuniões do Brasil.
BBC News Brasil - Mas há a possibilidade de ele vir a ser preso aqui no Brasil?
Mauro Vieira - Não sei. Acho que não. Espero também que não. Não sei. Nós não tomaremos nenhuma iniciativa para que isso aconteça.
BBC News Brasil - Mesmo o Brasil sendo signatário do TPI?
Mauro Vieira - Há tantos países que são...
BBC News Brasil - Mas por ser signatário do TPI, o Brasil não estaria obrigado a cumprir uma decisão do tribunal?
Mauro Vieira - Obrigado a cumprir? Não. Tem que haver a ordem. Senão seria como o TNP (Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares) que é sobre não proliferação e desarmamento e só se pensa no desarmamento, na proliferação ninguém dá importância. Enfim... não é assim. Cada circunstância é uma circunstância.
Crédito, Reuters
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"Se ele (Putin) quiser vir, nós estaremos muito contentes que esteja presente e nas reuniões do Brasil", disse Vieira.
A possível vinda de Putin ao Brasil vem causando polêmica porque o Brasil é signatário do TPI desde 2000 e ratificou o tratado que criou o tribunal dois anos depois.
O tribunal é um órgão vinculado à Organização das Nações Unidas e que julga crimes de guerra. Como é signatário do tratado, especialistas afirmam que o Brasil poderia ser obrigado a executar a prisão de Putin caso ele pise em território nacional.
Em março deste ano, o tribunal expediu um mandado de prisão contra Putin e outros agentes do governo russo por conta de supostos crimes cometidos durante as ações militares russas em território ucraniano.
Segundo a decisão, Putin teria participação na deportação de milhares de crianças ucranianas para a Rússia após o início da guerra entre os dois países, em fevereiro de 2022.
O governo russo vem, reiteradamente, rejeitando as acusações de crimes de guerra. Além disso, o país não é signatário do tribunal (assim como países como Estados Unidos, Índia e Israel).
Apesar disso, o receio de uma eventual prisão foi apontado, em agosto deste ano, como um dos motivos pelos quais Putin não compareceu pessoalmente à Cúpula dos BRICS, em Joanesburgo, na África do Sul. Os sul-africanos também são signatários do TPI.
Ainda sobre este caso, Mauro Vieira disse que caso o presidente russo venha ao Brasil no ano que vem, o governo brasileiro não tomará medidas para que Putin seja preso.
"Nós não tomaremos nenhuma iniciativa para que isso aconteça", disse Vieira.
A fala de Vieira está alinhada à posição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que, em setembro deste ano, disse que Putin não seria preso.
"O que eu posso dizer é que, se eu for presidente do Brasil e se ele for para o Brasil, não há porque ele ser preso", declarou Lula a uma TV indiana.
Dias depois, porém, Lula mudou o tom da resposta, afirmando que uma decisão sobre uma eventual prisão de Putin caberia à Justiça e não ao governo.
Balanço e foco africano
Mauro Vieira é um considerado por diversos de seus pares como um dos quadros mais experimentados da história recente do Itamaraty, nome pelo qual o Ministério das Relações Exteriores do Brasil é conhecido.
Esta é a segunda vez que ele assume o comando da pasta. A primeira foi entre 2015 e 2016, durante o último ano do mandato da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
Além disso, ele ocupou três dos postos de maior prestígio da diplomacia brasileira: as embaixadas do Brasil na Argentina e nos Estados Unidos e o cargo de representante permanente do país na Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York.
Visto como um nome próximo às gestões petistas, Mauro Vieira foi enviado à embaixada do Brasil na Croácia durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
Após a vitória de Lula nas eleições de 2022, seu nome ganhou força e foi confirmado como futuro chanceler.
Em entrevista à BBC News Brasil, Mauro Vieira defendeu a quantidade de viagens internacionais feitas por Lula durante o primeiro ano de seu novo mandato.
Entre janeiro e dezembro deste ano, o petista saiu do Brasil 15 vezes, visitou 24 países e passou mais de 60 dias no exterior.
Segundo Mauro Vieira, havia um "vácuo total" e o Brasil precisava fazer um movimento de "reinserção" na ordem internacional.
Vieira também defendeu a retomada do financiamento brasileiro de projetos tocados por empresas brasileiras no exterior como forma de aumentar a presença do país em regiões como a África.
O chanceler também disse que ainda haveria tempo hábil para que a conclusão do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, mas admitiu que, após fevereiro do ano que vem, essa janela de oportunidade tende a ficar menor por conta das eleições para o Parlamento Europeu.
Confira os principais trechos da entrevista, que foi editada para fins de clareza e concisão.
BBC News Brasil - Neste ano, o presidente Lula e o senhor viajaram bastante e houve críticas sobre o que seria uma falta de foco da política externa brasileira, uma vez que ela teria aberto muitas frentes. O senhor concorda com essa crítica e qual vai ser o foco da política externa do Brasil em 2024?
Mauro Vieira - Em primeiro lugar, eu não concordo.
Acho que ele (Lula) tinha de viajar até mais do que viajou. O presidente não viajou mais porque ele é muito requisitado aqui no Brasil. Dentro das circunstâncias, ele fez ótimos circuitos.
Em segundo lugar, havia um vácuo total. Não havia Brasil no mundo. Não se falava do Brasil e nem se chamava o Brasil para nada. O Brasil não participava de nenhuma concertação (internacional), não era consultado para nada nas Nações Unidas. Diante desse vácuo, ele (Lula) tinha que fazer o que fez [...] Este foi um movimento de reinserção.
No ano que vem, ele vai começar por uma coisa que nós estamos estrategicamente planejando para ser uma volta à África. Ele vai começar por uma visita à sede da União Africana, que fica em Adis Abeba (capital da Etiópia), onde ele vai fazer para a assembleia anual da União Africana. Depois, deve visitar outros dois países africanos.
BBC News Brasil - Sobre a África, nos últimos anos, diversos projetos que anteriormente poderiam ser tocados por empresas brasileiras passaram a ser executados por empresas de outros países, em especial as chinesas. Na sua avaliação, o Brasil perdeu o "bonde" da África?
Mauro Vieira - Não acho, não. Nós temos, inclusive, similaridades enormes com os países africanos. O que acontece lá é o seguinte: a China, com a economia que eles têm, participa não só do começo (dos projetos), mas com grandes financiamentos. Eles financiam obras públicas, fazem doações, uma série de coisas. Não podemos e nem queremos competir. Não estamos competindo com a China. Temos capacidades próprias e faremos coisas por lá. Um exemplo: há um grande interesse pelas ações de cooperação técnica. A Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) é um grande ativo brasileiro. Todo mundo pede parcerias.
BBC News Brasil - O senhor mencionou que o Brasil não quer e nem vai competir com a China. No passado, o Brasil, por meio do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Social e Econômico), tinha instrumentos para financiar projetos de infraestrutura em outros países. Desde a Operação Lava Jato, esses instrumentos foram extintos. Hoje, o tema voltou a ser discutido no Brasil. Na sua avaliação, o Brasil deveria voltar a financiar projetos no exterior?
Mauro Vieira - Eu não tenho dúvidas de que sim. Se dependesse de mim, sim, mas não depende. É um instrumento importantíssimo e valeria a pena porque são financiamentos de produtos ou serviços brasileiros. Houve um momento em que havia um projeto de cooperação técnica em que a gente (o Brasil) dava cursos nos países e vendia tratores de pequeno porte para a agricultura. Era um negócio fantástico. Esses financiamentos sempre foram feitos a empresas e prestadoras de serviços brasileiras [...] Eu sei que (o financiamento a projetos no exterior) era muito criticado, mas isso nunca foi caridade, nunca foi doação. Ao contrário, era financiamento. A exportação de produtos que criava empregos e gerava impostos no Brasil.
BBC News Brasil - Gostaria de abordar o Mercosul. O Brasil e a Bolívia são os únicos países do Mercosul governados por presidentes de esquerda ou de centro-esquerda. Qual o impacto disso para o futuro do bloco? Fica mais difícil negociar com presidentes ideologicamente diferentes?
Mauro Vieira - Não. O Mercosul é tão importante para todos os países que tudo se supera. O presidente do Paraguai (Santiago Peña) tem uma proximidade e uma admiração muito grande pelo presidente Lula e ele vem de uma linha política diferente. No Uruguai é a mesma coisa. O presidente Luis Alberto Lacalle Pou tem orientação política diferente (à de Lula) e fez grandes elogios dizendo que tudo o que acertou com o presidente brasileiro foi cumprido [...] Para você ter uma ideia, nos últimos quatro anos, o Uruguai não tinha aderido às declarações finais do Mercosul. Neste ano, no Brasil, com o presidente Lula, ele aderiu.
BBC News Brasil - Sobre o Mercosul, havia uma expectativa de que o acordo comercial com a União Europeia fosse fechado até o final da cúpula do bloco. No início de dezembro. O acordo não foi fechado. A informação que circulou é de que o governo argentino do ex-presidente Alberto Fernández, recuou na última hora. Foi isso mesmo o que ocorreu e quão surpreendente foi esse movimento?
Mauro Vieira - Não foi surpreendente.
BBC News Brasil - Mas foi isso que aconteceu?
Mauro Vieira - Um pouco foi isso (o que aconteceu) [...] O governo argentino do Alberto Fernández não quis tomar uma decisão sobre um acordo que ia ser totalmente concluído e executado no mandato seguinte. Ele preferiu esperar e deixar essa decisão para o próximo presidente. Coisa que em nada impede a conclusão do acordo. Nós temos ainda até final de fevereiro para aplainar as últimas diferenças e fechar o acordo. Ele (Alberto Fernández) não quis assumir, dois ou três dias antes de deixar o governo, responsabilidades e compromissos que cairiam sobre o próximo governo.
BBC News Brasil - Depois de fevereiro, a janela de oportunidade para o fechamento do acordo fica menor?
Mauro Vieira - Acho que sim porque, na União Europeia, eles vão entrar em eleições para o Parlamento Europeu, para a Comissão (Europeia) e para a Presidência do Conselho (Europeu). Haverá circunstâncias eleitorais próprias deles. Mas acho que o tempo que temos até lá é mais que suficiente.
BBC News Brasil - O presidente argentino, Javier Milei, fez movimentos distintos na campanha e após vencer as eleições. Na campanha, usou palavras de baixo calão para se referir ao presidente Lula. Após a vitória, no entanto, enviou sua chanceler (Diana Mondino) ao Brasil e convidou o presidente Lula para sua posse. Mas também posou com o principal adversário do presidente Lula, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Como o senhor avalia esses movimentos e quão confiável é o governo de Javier Milei sob a perspectiva brasileira?
Mauro Vieira - É confiável pelas declarações feitas a mim pessoalmente, nas duas ocasiões que eu estive com a chanceler Diana Mondino.
Ela veio ao Brasil 15 dias antes da posse e conversamos por uma hora. Depois disso, conversamos na véspera da posse, em Buenos Aires. E ela disse que quer trabalhar com o Brasil.
E quando eu estive com o presidente Milei, em duas oportunidades, [...] ele também disse a mesma coisa. Mandou um recado muito claro de que quer trabalhar com o Brasil e de que os interesses entre os dois países são muito grandes e de que há abertura.
Nós também fizemos gestos em relação a eles [...] Apoiamos um pedido de financiamento deles junto à CAF (Cooperação Andina de Fomento), que foi a prova importante de que trabalharemos juntos porque o interesse nacional está acima de qualquer ideologia.
BBC News Brasil - Ainda sobre a América do Sul, gostaria de falar da recente crise na região de Essequibo, entre a Guiana e a Venezuela. Considerando que o Brasil tem uma relação próxima com o regime venezuelano, o Brasil demorou a agir em relação aos movimentos feitos por Nicolás Maduro, que realizou um referendo sobre a criação de um estado venezuelano sobre o território em disputa?
Mauro Vieira - O Brasil tem boas relações com todo mundo, não apenas com a Venezuela. Em primeiro lugar, a gente sempre falou desse tema. Nem toda a diplomacia pública você anuncia, mas nós sempre falamos desse assunto com os dois lados. Não demoramos, nada. Quando as notícias começaram a subir de intensidade, o presidente Lula mandou imediatamente um emissário, o embaixador Celso Amorim, para levar à Venezuela a nossa posição sobre o assunto que é a posição de que apoiamos a solução pacífica de controvérsias.
BBC News Brasil - O presidente da Guiana, Irfaan Ali, disse à BBC News Brasil que não descarta autorizar uma base militar americana no território do seu país. Em que medida uma base militar americana compromete a posição do Brasil na região?
Mauro Vieira - Eles (Guiana) nunca nos disseram isso [...] Oficialmente, não tenho essa notícia. Agora, em relação a bases de países estranhos à região, no nosso continente, nós não queremos. A América Latina e a América do Sul são uma zona de paz. Nós não queremos bases estrangeiras. É um toma sobre o qual não temos notificações oficiais, mas é tema sobre o qual poderemos conversar com os nossos vizinhos.
BBC News Brasil - Integrantes do próprio governo afirma em caráter reservado que Maduro fez esse movimento em torno de Essequibo para aglutinar sua militância com vistas às eleições de 2024. O Brasil teme que Maduro faça outras investidas do tipo até as eleições e que elas possam gerar tensão na região?
Mauro Vieira - Investidas em que sentido?
BBC News Brasil - Como a ocorrida em torno da região de Essequibo.
Mauro Vieira - Eu não posso interpretar as projeções futuras ou mesmo fazer projeções futuras ou interpretar atitudes de chefes de estado. O que eu posso dizer é que mantemos um ótimo diálogo com a Venezuela. Reabriremos formalmente a nossa embaixada em Caracas, no dia 4 de janeiro. Indicamos uma embaixadora experiente (Glivânia Maria de Oliveira) e vamos retomar o diálogo que nos interessa. Temos mais de 2 mil quilômetros de fronteira com a Venezuela há mais de 20 mil brasileiros morando lá. Queremos e devemos ter diálogo com a Venezuela, como também com a Guiana e com todos os demais países.
BBC News Brasil - As pesquisas mais recentes mostram o ex-presidente Donald Trump a frente do presidente Joe Biden na corrida eleitoral dos Estados Unidos. Considerando que já sabemos como foi o seu mandato, o que uma eventual eleição de Trump alteraria nas relações entre Brasil e Estados Unidos?
Mauro Vieira - Essa será uma decisão tomada pelos eleitores norte-americanos. No mais, há interesses de cada lado. É preciso continuar procurando o seu interesse na relação que é muito grande e muito forte [...] Quem assumir vai manter uma relação com o Brasil no nível que eles acharem que é importante para o Brasil e para eles. Temos um comércio importante e eles ainda são, e continuarão a ser por algum tempo, os maiores investidores no Brasil. Eu acho que não dá para não ter relações só porque as orientações políticas de cada um são diferentes.
BBC News Brasil - No ano que vem, haverá a cúpula do G20 no Brasil. O presidente Lula já disse que provavelmente vai convidar o presidente da Rússia, Vladimir Putin, ao Brasil. Considerando que existe um mandado de prisão contra ele pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), qual seria o tamanho do constrangimento da vinda do presidente Putin para o Brasil nesse contexto?
Mauro Vieira - Olha... ele (Lula) não vai convidar... (Putin) está convidado porque é membro nato, fundador do BRICS e todos os países, inclusive os novos, estão convidados. Isso a gente tem que ver a cada caso. Há sempre, mesmo nas normas do TPI, tratamentos para os chefes-de-Estado que a gente tem que examinar. Se ele (Putin) quiser vir, nós estaremos muito contentes que esteja presente e nas reuniões do Brasil.
BBC News Brasil - Mas há a possibilidade de ele vir a ser preso aqui no Brasil?
Mauro Vieira - Não sei. Acho que não. Espero também que não. Não sei. Nós não tomaremos nenhuma iniciativa para que isso aconteça.
BBC News Brasil - Mesmo o Brasil sendo signatário do TPI?
Mauro Vieira - Há tantos países que são...
BBC News Brasil - Mas por ser signatário do TPI, o Brasil não estaria obrigado a cumprir uma decisão do tribunal?
Mauro Vieira - Obrigado a cumprir? Não. Tem que haver a ordem. Senão seria como o TNP (Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares) que é sobre não proliferação e desarmamento e só se pensa no desarmamento, na proliferação ninguém dá importância. Enfim... não é assim. Cada circunstância é uma circunstância.
Crédito, Reuters
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