Um trabalho para o qual foi solicitada autorização de publicação ao Itamaraty. Como nunca autorizaram, ficou inédito. Depois disso, deixei de pedir autorização para publicar:
811. “Uma Constituição para o Mercosul? Uma proposta modesta: recuar, para melhor saltar”, Washington, 12 set. 2001, 5 p. Comentários sobre a crise e proposta de nova arquitetura institucional para o Mercosul. Revisto em 15/09, para refletir proposta de suspensão temporária da TEC. Incompleto, pois deveria ter sido seguido por uma segunda parte, propositiva, contendo os elementos mais importantes da futura “constituição” do Mercosul. Solicitada autorização ao Itamaraty para publicação, sem resposta. Inédito.
Uma Constituição para o Mercosul?
uma proposta modesta: recuar, para melhor saltar
Paulo Roberto de Almeida*
Que o Mercosul vive atualmente uma “crise de identidade” constitui fato que poucos disputariam, ainda que tal crise seja bem mais recente do que alguns pessimistas tradicionais gostariam de admitir. Com efeito, profetas retrospectivos do apocalipse integracionista vêm o momento de partida dessa crise na desvalorização brasileira de janeiro de 1999 ou, até mesmo, na incapacidade de os países membros realizarem as promessas do Tratado de Assunção de 1991 dando início, em janeiro de 1995, à zona de livre comércio intrarregional e à aplicação uniforme, extra-zona, da Tarifa Externa Comum. Ou seja, o Mercosul viveria em crise praticamente desde seu aparecimento enquanto personalidade de direito internacional, tal como estabelecido no Protocolo de Ouro Preto de 1994.
Não é essa minha opinião, ainda que eu reconheça o estágio incompleto da zona de livre comércio mercosuliana a partir de 1995 e o caráter algo “surrealista” de sua união aduaneira desde então, na qual os países membros decidiram manter, não exceções comuns à TEC, mas desvios nacionais de seu perfil normal, de 0 a 20%, e outras tantas (às vezes algumas centenas) de exceções temporárias ao regime de união aduaneira. Tais desvios e perfurações observados de 1995 a 2000 deveriam no entanto ser compreendidos, não como “pecados mortais”, mas como “pecados veniais” de um esquema integracionista ainda incipiente, devendo acomodar por um tempo suplementar – digamos uma segunda “fase de transição”, coincidente com o período de eliminação das exceções temporárias e com o esforço adicional de convergência definido, desde dezembro de 1994, em função de um estrito calendário – as dificuldades naturais de quatro países reconhecidamente assimétricos em termos de magnitude econômica, de perfil industrial, de presença comercial no mundo e sobretudo de interdependência recíproca nos fluxos interfronteiriços.
Agregue-se a esses elementos “estruturais” os fatores conjunturais ligados às crises financeiras da segunda metade dos anos 90, aos processos inconclusos de estabilização macroeconômica sem possibilidade de coordenação das políticas adotadas para tal efeito e até de divergência cambial entre os dois principais sócios do esquema do Mercosul, para se ter uma idéia da magnitude dos desafios enfrentados pelos países membros entre 1995 e 2000, ou mais propriamente até o começo de 2001, quanto tem início a segunda gestão Cavallo à frente do Ministério argentino da economia. Nem a diminuição temporária de comércio registrada em 1999, efetivamente vinculada ao decréscimo da atividade econômica no Brasil, pode ser apontada como a fonte da crise, pois nem essa tendência se manteve – uma vez que os fluxos voltaram a seu patamar “normal” um ano depois – nem a Argentina deixou de exibir superávit no comércio bilateral, constituindo o Brasil sua mais segura fonte de recursos em divisas, à falta de todas as demais. A crise do Mercosul tem, portanto, uma data e talvez até uma ficha de identidade, e esta certamente não tem nada a ver com a ausência de institucionalidade, como gostariam alguns puristas da supranacionalidade.
Afirmo resolutamente que, até aquela data, o Mercosul não vivia em crise, ainda que ele fosse obrigado a conviver com as crises individuais de seus países membros, quais sejam, os desequilíbrios brasileiros de balanço de pagamentos (que motivaram, por exemplo, as restrições do Banco Central aos “generosos” esquemas de financiamento externo às importações), as renitentes dificuldades da Argentina em adquirir competitividade externa por força de sua camisa de força cambial (o que também motivou a “taxa de estatística” de 3%, oportunamente convertida em aumento linear da TEC por igual valor e período adicional), quando não as ameaças menemistas de dolarização unilateral ou outros destemperos inconseqüentes do líder argentino como seu apelo aparentemente incompreensível a uma relação especial com o império do norte, quando tudo indicava que o país tinha muito pouco a ganhar por essa via e muito mais no aprofundamento da relação com seu vizinho e principal parceiro econômico. Enfim, em que pesem os problemas acumulados em anos de salvaguardas ilegais, em medidas antidumping abusivas, em outros tantos desvios normativos nacionais ao funcionamento normal da união aduaneira, para não mencionar o sistema lentíssimo de solução de controvérsias, o Mercosul seguia seu caminho modesto de realizações e de promessas, confiante em poder superar dificuldades conjunturais, em deixar o “limbo” do surrealismo aduaneiro para penetrar, não no suposto “paraíso” do mercado comum, mas no “purgatório” da coordenação de políticas macroeconômicas – algo que começou a ser definido na reunião de Florianópolis, de dezembro de 2000 –, condição indispensável para a consolidação de um espaço econômico unificado no Cone Sul, para a conclusão exitosa de negociações regionais (CAN), hemisféricas (Alca) e extra-regionais (com a UE, a África do Sul) e para a afirmação de sua personalidade e voz próprias nos foros multilaterais do tipo da OMC, do G-8 ou da própria ONU.
A crise tem início, de verdade, quando o projeto de mercado comum, ainda que realisticamente afastado para ocasiões mais propícias, vem a ser radical e arrogantemente afastado do horizonte político dos quatro membros por um dos responsáveis econômicos de um dos seus mais importantes países, proclamando-se em seu lugar a utilidade ou mesmo a necessidade de uma volta ao princípio da zona de livre comércio, como se esta fosse um patamar para a plena realização das potencialidades individuais dos países membros ou até mesmo para a solução de seus problemas estruturais de competitividade e de equilíbrio fiscal. Não surpreende que o “pai da conversibilidade” defendesse tal proposta, uma vez que ela coincide com sua visão “excêntrica” do mundo, isto é, com uma Weltanschauung que vê no Brasil e na TEC as raízes de todos os problemas de inserção competitiva de seu país no mundo, e que faz das relações “extrarregionais” privilegiadas com o gigante hemisférico o início da solução de todos esses dilemas. Surpreende, sim, que um ex-chanceler brasileiro, o Embaixador Lampreia, defenda a mesma proposta, alegadamente para libertar o Brasil da “camisa de força” da união aduaneira, da obrigação de comprar na loja da esquina e não “onde bem nos aprouver” e da proibição de concluir acordos preferenciais com eventuais parceiros extrarregionais. Ora, a TEC do Mercosul é, manifestamente, uma derivação da tarifa brasileira, nossas compras externas são muito bem distribuídas entre os principais parceiros e as negociações de novos acordos têm sido geralmente feitas em consonância com as metas brasileiras para o relacionamento externo do Mercosul. Surpreende, também, que outro responsável econômico encare com “tranquilidade uma conversa sobre a suspensão temporária da TEC”, como se esta decisão fosse de natureza rotineira e seu objeto não estivesse no próprio centro da concepção formal e substantiva de uma união aduaneira, que o Mercosul pretende ser e deveria supostamente representar.
Pode-se até mesmo conceber a adoção de uma decisão conjunta abrindo o caminho para a suspensão temporária da TEC, ainda que não se veja bem em que tal decisão, que deveria responder a critérios de ordem estratégica, possa ajudar na solução de problemas e dificuldades temporários que requerem mais ações de natureza tática. As vantagens desse recuo ao livre cambismo sub-regional tampouco nos ajudariam a escapar do fantasma de um “fracasso político” internacional, supostamente representado pela incapacidade do Mercosul em realizar uma cópia exitosa do esquema comunitário europeu, como se tal obrigação estivesse inscrita no “código genético” do Tratado de Assunção. O Mercosul, contrariamente ao que pensam muitos juristas e acadêmicos de plantão, nunca foi a nossa “versão sul-americana da União Européia” – se tanto, um arremedo do Benelux – e nem se deve pensar que ele sequer deva ser um dia uma promessa de uma tal construção gótica, hiperburocratizada e custosa demais para nossos objetivos modestamente integracionistas. Ele é, e deve permanecer, um projeto de mercado comum sub-regional, pois que tal corresponde ao perfil “ótimo” (ou ideal) de nossa inserção econômica internacional e às possibilidades de construção de uma interdependência regional que complemente o processo de “globalização mercantilista” que continuará a caracterizar tanto o sistema multilateral de comércio como a internacionalização financeira no futuro previsível. É no Mercosul – e na sua extensão para a América do Sul – que o Brasil conseguirá promover sua versão regional do projeto britânico-vitoriano de um free-trade universal aplicado ao continente e uma analogia geoeconômica, ainda que em escala restrita, da vocação hobsoniana (e luxemburguiana, para os marxistas) da “exportação de capitais”. Mais do que isso o Mercosul não poderá fazer pelo Brasil, o que é bem menos, reconheçamos, do que o grandioso projeto anti-imperialista e desenvolvimentista que alguns economistas da oposição gostariam de ver em seu perfil integracionista, como se o Mercosul devesse necessariamente ser um bastião antiamericano e antiAlca e como se ele fosse trazer ao Brasil os capitais, a tecnologia e os mercados que o país tem de buscar por seus próprios esforços, isto é, os de seus homens de negócios e também pelo engenho e arte de sua diplomacia e de sua tecnoburocracia econômica.
Eu também gostaria de “promover uma nova ordem no Mercosul”, mas ela não passa, absolutamente pelo abandono da ideia de mercado comum, ou sequer do projeto de união aduaneira, ainda que essa ordem possa vir definida em função de uma nova arquitetura integracionista que preserve aqueles objetivos fundamentais mesmo quando abandonando temporariamente a chamada “camisa de força” da TEC e alguns dos prazos ainda irrealistas desta “segunda (ou terceira) fase de transição”. O que eu proponho é substituir o Tratado de Assunção, o Protocolo de Ouro Preto e alguns dos demais instrumentos derivados por uma carta constitucional do Mercosul, preservando integralmente os objetivos definidos pelos “pais fundadores” do Mercosul, mas introduzindo um esquema de geometria variável que dê aos países membros a flexibilidade necessária para atender às suas prioridades do momento – e portanto os outros três membros não poderiam reclamar quando o Brasil fosse realizar alguns de seus objetivos econômicos no cenário sul-americano, e não mais exclusivamente mercosuliano –, retomando a “liberdade” tarifária em troca do compromisso de convergir para a união aduaneira num período adicional, digamos até 2010, quando os efeitos de uma eventual – e ainda altamente hipotética – Alca ainda não terão sido sentidos em toda sua dimensão liberalizante. Até lá, espera-se que a Argentina tenha se libertado de sua própria “camisa de força” cambial, que o Brasil tenha estabilizado satisfatoriamente sua economia e estabelecido a conversibilidade plena do real – base da futura moeda comum do Mercosul – e que os demais sócios regionais tenham resolvido encontrar na América do Sul (e não numa mirífica Alca que deixará muitos a “ver navios”) o cenário ideal para a expansão de seus negócios.
Não se trata, para mim, de “dar um passo atrás”, mas tão simplesmente de “recuar para melhor saltar”, ou seja, confirmar os objetivos ambiciosos dos founding fathers, ainda que renunciando temporariamente à metodologia uniforme de fazer todos os sócios encilhar e montar cavalos de corrida, sobretudo quando alguns desses animais são mais ariscos do que outros. Alguns podem esporear soberbos ginetes, outros preferir o patinete: o importante é marcar um encontro para a assembleia do condomínio em prazo certo, pois os cobradores estarão batendo à porta em determinados prazos. Proponho mesmo que a assembleia geral para aprovar a Constituição do Mercosul, em substituição aos atuais instrumentos, seja realizada no Brasil no segundo semestre de 2004, quando o País estiver novamente à frente do esquema integracionista e quando saberemos se existirá ou não a hipótese alcalina (em função do que teremos de ajustar a geometria variável e a arquitetura flexível do novo esquema). Até lá pode-se pensar na implementação de uma fase preparatória a essa conferência diplomática de “refundação” do Mercosul mediante a combinação de um processo estratégico de reflexão e definição do novo instrumento institucional com a adoção tática de instrumentos temporários suscetíveis de acomodar dificuldades setoriais e circunstâncias nacionais especiais. Numa próxima oportunidade pretendo abordar a questão do que poderia conter essa nova carta constitucional do Mercosul.
* Paulo Roberto de Almeida (http://pralmeida.tripod.com) é doutor em ciências sociais, diplomata de carreira e autor dos seguintes livros: Mercosul: fundamentos e perspectivas (São Paulo: LTr, 1998) e O Mercosul no contexto regional e internacional (São Paulo: Aduaneiras, 1993).
As opiniões expressas no presente texto são exclusivamente as de seu autor e não correspondem a posições ou políticas do Ministério das Relações Exteriores ou do Governo brasileiro.
[Washington, 811: 12/09/2001; Rev.: 15/09/2001]
(1800 palavras; 10 mil caracteres)
Nota em 2/05/2024:
Como nunca tive autorização para publicar esse trabalho, deixei de elaborar minha proposta de "nova carta constitucional" do Mercosul, como eu prometia ao final desse artigo acima. Agora acho que não vale muito a pena. O Mercosul virou uma colcha de retalhos, anda muito esgarçado.
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