Paulo Roberto de Almeida:
Construtores da Nação: projetos para o Brasil, de Cairu a Merquior
(São Paulo: LVM, 2022)
Trechos da Introdução
Da construção do Estado à construção da Democracia
Obrigado de minha curiosidade fiz, por espaço de dezessete anos que residi no Estado do Brasil, muitas lembranças por escrito do que me pareceu digno de notar, as quais tirei a limpo nesta corte, enquanto a dilação de meus requerimentos me deu para isso lugar; ao que me dispus entendendo convir ao serviço de El Rei nosso Senhor, e compadecendo-me da pouca notícia que nestes reinos se tem das grandezas e estranhezas desta província, no que anteparei algumas vezes movido do conhecimento de mim mesmo, e entendendo que as obras que se escrevem têm mais valor que o da reputação dos autores delas.
Como minha intenção não foi escrever história que deleitasse com estilo e boa linguagem, não espero tirar louvor desta escritura e breve relação (em que se contém o que pude alcançar da cosmografia e descrição deste Estado), que a V.S. ofereço; e me fará mercê aceitá-la, como está merecendo a vontade com que a ofereço; passando pelos desconcertos dela, pois a confiança disso me fez suave o trabalho e o tempo que em a escrever gastei: de cuja substância se podem fazer muitas lembranças a S.M. para que folgue de as ter deste seu Estado, a que V.S. faça dar a valia que lhe é devida.
Gabriel Soares de Souza, Tratado Descritivo do Brasil em 1587. “Edição castigada pelo estudo e exame de muitos códices manuscritos existentes no Brasil, em Portugal, Espanha e França, e acrescentada de alguns comentários à obra”, por Francisco Adolfo de Varnhagen, sob a responsabilidade do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1851, p. x-xi.
Como se pode depreender pela descrição inicial que desta terra fez, para os seus soberanos, um dos primeiros habitantes do Estado do Brasil, os projetos para se construir uma nova nação, nesta parte do território da América do Sul, não são exatamente novos. Gabriel Soares de Souza (1540-1591) foi um observador atento e perspicaz, que se empenhou em tomar da pluma para discorrer sobre tudo o que viu, o que ouviu e coletou ao longo dos 17 anos em que se exerceu, como senhor de engenho, nestas paragens ermas, ainda repletas de selvícolas, cujos hábitos ele procurou relatar com exatidão e até espanto (o canibalismo, por exemplo, e a “luxúria” de seus hábitos sexuais). A obra permaneceu praticamente incógnita dos habitantes do Estado do Brasil até meados do século XIX, quando o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen conseguiu retirá-la de um injusto anonimato para enfim divulgá-la a seus compatriotas.
Exatos quarenta anos depois, Frei Vicente do Salvador (1564-1636) terminava uma primeira História do Brasil(1627), que, como sua predecessora de 1587, permaneceu incógnita por 260 anos, tendo sido consultada por Varnhagen, na Biblioteca das Necessidades, em Lisboa, mas publicada apenas no final do século XIX, numa edição anotada por Capistrano de Abreu (1856-1927), pela Biblioteca Nacional (1889). Para José Honório Rodrigues (1913-1987), a História do Brasil “é um dos livros mais saborosos do Brasil seiscentista, pela simplicidade do estilo, natural, sem artifícios, pela ingenuidade da narrativa, entremeada de estórias populares e ditos pitorescos” (1979, p. 490).
Mas, Frei Vicente do Salvador – que recebeu a alcunha de “Heródoto brasileiro”, ou o “Pai da História” no Brasil – também reclama, logo no capítulo segundo do livro, da situação de abandono a que foi relegado o “Estado do Brasil”:
... ao nome do Brasil ajuntaram o de Estado, e lhe chamam Estado do Brasil, ficou ele tão pouco estável que, com não haver hoje cem anos, quando isto escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoado alguns lugares, e sendo a terra tão grande, e fértil, nem por isso vai em aumento, antes em diminuição.
Disto dão alguns a culpa aos Reys de Portugal, outros aos povoadores; aos Reys pelo pouco caso que hão feito deste tão grande Estado, que nem o título quiseram dele; pois intitulando-se Senhores de Guiné por uma caravelinha que lá vai, e vem, como disse o rei do Congo, do Brasil não se quiseram intitular, nem depois da morte de El-Rey dom João terceiro, que o mandou povoar, e soube estimá-lo, houve outro que dele curasse, senão para colher suas rendas e direitos; e deste mesmo modo se hão os povoadores, os quais, por mais arraigados que na terra estejam, e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal... (..) Porque tudo querem para lá, e isto não tem só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da Terra não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e deixarem destruída.
Donde nasce também, que nenhum homem nessa terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular. (...)
Estas são as razões, porque alguns, como muito dizem, que nem permanece o Brasil nem vai em crescimento; e a estas se pode ajuntar a que atrás tocamos de lhe haverem chamado Estado do Brasil, tirando-lhe o de Santa Cruz com que pudera ser Estado, e ter estabilidade e firmeza. (SALVADOR, 1889, p. 6-7).
Um novo relato sobre as riquezas da terra, Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas, feito quase um século depois por um outro observador atento, André João Antonil – pseudônimo do jesuíta italiano João Antonio Andreoni (1649-1716), trazido ao Brasil em 1681 pelo padre Antonio Vieira (1608-1697) –, foi retirado de circulação seis dias depois de aprovado para imprimir e distribuir pela própria censura do Reino, em 1711, e assim permaneceu desconhecido durante mais de um século, tendo sido redescoberto somente depois da independência (RODRIGUES, 1979, p. 403). Segundo relata uma estudiosa dessa obra:
As razões para o confisco da obra... foram evitar exposição das riquezas da colônia à cobiça de outras nações, responsáveis por saques constantes na costa brasileira. Naquele momento, falar em açúcar, ouro e tabaco era inadequado e perigoso, podendo aguçar a cobiça da França, Holanda e Inglaterra, interessadas em participar do mercado internacional. (SILVA, 1999, p. 57)
Antonil defendia em sua obra (1982) a proposta de que seria justo, “tanto para Fazenda real quanto para o bem público, favorecer a conquista e o desenvolvimento econômico do Brasil” (SILVA, 1999, p. 73). Com isso, evidentemente, não concordaram os censores do Reino, numa atitude que, mutatis mutandis, continuou a ser imitada durante largo tempo, talvez ainda atualmente, quando se continua a falar das fabulosas riquezas do Brasil, sempre cobiçadas por potências estrangeiras.
Ao revelar a riqueza potencial da nova terra, os cronistas dos primeiros tempos cumpriam, portanto, mesmo indiretamente, um papel de promotores da prosperidade da colônia, ainda que a exploração dos recursos estivesse mais destinada a enriquecer a própria metrópole. Os projetos tentativos de se fazer da terra uma nação próspera passaram a adquirir maior consistência a partir do desembarque da Corte dos Braganças na colônia que já era, no quadro do imenso império marítimo lusitano, a principal fonte de recursos para o Tesouro do Reino. Tem início, em 1808, a administração dos negócios desse império desde o Rio de Janeiro.
(...)
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