O mundo em três tempos: 1925, 1945, 2025
Brasília, 5128: 2 dezembro 2025, 4 p.
Considerações sobre os grandes desafios do último século, desde o programa supremacista hitlerista de transformação da ordem mundial, até as propostas de mudanças na ordem global contemporânea, por parte de autoritários em competição aberta.
Publicado na revista Será? ano xiv, n. 686, Recife, 5 de novembro de 2025; link: https://revistasera.us2.list-manage.com/track/click?u=411db2b245b4b4625516c92f4&id=c311615905&e=1647837395
Roosevelt inaugurou, poucos anos depois, um novo estilo de governança mundial ao subscrever, em agosto de 1941, a Carta do Atlântico, assentando com Churchill as bases conceituais da futura ordem global multilateral das Nações Unidas. Essa proclamação bilateral, mas universal em suas pretensões, foi o passo imprescindível na reafirmação da possibilidade de uma ordem liberal e democrática, no exato momento em que o mundo mergulhava na fase mais tenebrosa do conflito europeu iniciado em 1939. A guerra entre as potências fascistas expansionistas e as democracias ocidentais passou então a englobar mais da metade do mundo, contando inclusive com a adesão do Brasil. O maior país sul-americano foi, primeiro, um aliado, depois decidiu integrar-se ao esforço de guerra, convertendo-se, finalmente – mesmo dominado pela ditadura do Estado Novo –, em um fiel aderente à (hoje menos defendida) “ordem global ocidental”, plenamente coincidente com as bases doutrinais da diplomacia brasileira, cujos alicerces fundamentais vinham sendo desenhados desde o início do século por estadistas como o Barão do Rio Branco e Rui Barbosa, este o defensor do princípio da igualdade soberana das nações, que viria a representar, com a Carta da ONU, de junho de 1945, o eixo central do multilateralismo contemporâneo.
Oswaldo Aranha, o outro grande entusiasta e promotor da arquitetura construída em São Francisco, não chegou a 1945, por despeito mesquinho do ditador Getúlio Vargas, mas seu nome voltou a ser associado à consolidação da ordem democrática multilateral do pós-guerra, ao ter comandado, como chefe da delegação brasileira em Nova York e presidente da Assembleia Geral da ONU em 1947, a adoção da resolução que procurou trazer uma resposta aos crimes cometidos pelo horrendo regime nazifascista contra o povo judeu, nos doze anos durante os quais transformou a República de Weimar num Império que estava supostamente destinado a durar mil anos.
Para saber como o Holocausto foi possível é preciso voltar cem anos atrás, para 1925, quando um aderente demencial do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (criado em 1919), foi preso pela sua tentativa de tomada do poder na República de Weimar (o “golpe da cervejaria de Munique”), passando então a escrever, durante o breve tempo em que esteve encarcerado, o programa que adotaria ao chegar ao poder: o desmantelamento da ordem criada pela Liga das Nações, a supremacia e o expansionismo da Grande Alemanha, a promessa de destruição da ameaça bolchevique e uma “solução definitiva” (desenhada desde os tempos wagnerianos) ao “problema judeu”, que ele considerava como responsável pelas “desgraças” do povo alemão. Esse programa, publicado sob o título de Mein Kampf, seria aplicado metodicamente a partir de 1933, quando Hitler finalmente chega ao poder por vias eleitorais “legais” (mas pela violência e pela intimidação também).
O resultado dessa ascensão foi a destruição da ordem “liberal” anterior, mas também a de metade da Europa e da própria Grande Alemanha, quando, depois de dominar, pela via da blitzkrieg, praticamente toda a Europa ocidental, o fanático ditador resolveu “esquecer” o pacto de não agressão concluído em 1939 com um ditador totalitário quase simétrico e passar a cumprir a parte do programa de 1925 que se referia à destruição da existência de um poder judaico-bolchevique na Europa central e oriental. Os quatro anos de guerra de extermínio que se seguiram foram os mais mortíferos conhecidos em toda a história da Humanidade, quando se contam, também, os episódios levados a cabo, desde 1937, pelo militarismo japonês em todo o teatro da Ásia Pacífico, contra a China e as colônias ocidentais da Indochina. Em meados de 1945, finalmente, com a divisão do mundo concertada em fevereiro, em Yalta, formalmente acordada em junho em São Francisco, novamente discutida em Potsdam entre as superpotências vencedoras, mas na prática só terminada, de fato, em Hiroshima e Nagasaki, com a explosão de dois artefatos nucleares, tem início a “ordem mundial” quase global que visava obstar o início de uma nova catástrofe das mesmas proporções como em 1939-1945.
Voltando a 2025, nos deparamos com um outro dirigente demencial, armado de um programa tosco, pretendendo conter um suposto adversário, a China, mas que é bem menos eloquente contra o agressor real, e primeiro desmantelador, da atual ordem internacional, a Rússia de Putin. Ele também conduz uma outra guerra de agressão, por enquanto tarifária, contra seus próprios aliados e todos os demais países do mundo, ademais de pretender conter e eliminar o que considera como uma ameaça à “grandeza” americana, que são simples emigrantes ilegais, na maior parte trabalhadores honestos querendo construir uma nova vida para suas famílias. Ele parece pretender obter uma foto tão famosa quanto a de Yalta, na qual os três mais poderosos senhores da guerra, Roosevelt, Churchill e Stalin, reuniram-se para selar o destino de milhões de pessoas em diferentes partes do mundo. Trump já deu sinais de que apreciaria sentar-se com Putin e Xi Jinping para estabelecer, mais de quinhentos anos depois de Tordesilhas, uma nova divisão do mundo, desta vez tripartite, na qual ele colocaria seu tacão no hemisfério americano, o neoczar decidiria os destinos da Europa e o líder chinês se ocuparia da Ásia Pacífico. Pelo menos em 2025, isso não foi ainda possível, mas o bizarro personagem talvez se esforce para realizar o seu intento no ano em que a primeira república democrática do mundo contemporâneo estaria completando 250 anos de existência contínua, sob a mesma carta constitucional desenhada pelos “pais fundadores”, no mesmo ano, aliás, em que o escocês Adam Smith publicava seu “tratado de economia política”, recomendando que o Reino Unido libertasse a sua colônia norte-americana e passasse a fazer, apenas e tão somente, negócios com os emigrantes da Nova Inglaterra.
1925, 1945 e 2025 representam etapas momentosas na trajetória incerta do sistema internacional, projetos de alteração e de mudanças tentativas das desordens existentes ou criadas na ordem em vigor em cada um daqueles momentos. Hitler, Roosevelt, Churchill, Stalin, Putin, Trump e Xi Jinping representam personagens-chaves na conformação, benfazeja ou maléfica, do cenário mundial em cada uma dessas ocasiões. O Brasil é mais um espectador passivo do que um protagonista ativo nessas transações e transições, mas a sua diplomacia profissional – apoiada nos fundamentos doutrinais construídos por estadistas como Paranhos Júnior, Rui Barbosa, Oswaldo Aranha, San Tiago Dantas e Afonso Arinos de Melo Franco, entre outros – talvez pudesse oferecer alguma contribuição positiva para os processos de mudança a cada uma dessas etapas, não fossem alguns imponderáveis em ação nessas respectivas datas.
Em 1925, um presidente intempestivo, Artur Bernardes, ordenava a retirada do Brasil da Liga das Nações, contra os argumentos do seu representante em Genebra, Afrânio de Melo Franco, pai de Afonso Arinos. Em 1945, o ditador do Estado Novo, depois de ter impedido, em 1944, o chanceler Oswaldo Aranha de discutir com Roosevelt a participação do Brasil no desenho da futura ordem mundial que estava sendo discutida em Dumbarton Oaks, autorizou a adesão do Brasil à Carta de San Francisco, mesmo quando a delegação do Brasil estivesse apresentando certeiras críticas à arquitetura diplomática exigida pelos “mais iguais” da nova ordem, e que foram declarados vencedores no maior conflito global da História, antes mesmo da conclusão definitiva da guerra, e antes que qualquer um deles detivesse o monopólio da arma nuclear (mas que impediu, talvez mais do que a própria ONU, a eclosão, até aqui, de um novo conflito global).
Em 2025 (na verdade desde dois anos antes), o atual presidente brasileiro declara seu apoio à proposta de implementação de uma mal definida “nova ordem global multipolar”, várias vezes referida pelo principal violador da Carta da ONU, mas que se apresenta como de nítida orientação antiocidental e, portanto, antiliberal e antidemocrática. O mundo realmente não parece pacífico em 2025, como não o foi em 1925, e como ainda não o era no primeiro semestre de 1945. Os prognósticos continuam incertos ao final deste ano, quando pelo menos dois mandatários autoritários pretendem impor uma nova marca unilateral e supremacista de imposição de uma ordem regressiva ao resto do mundo. Não obstante, mesmo a despeito de nuvens sombrias em diversas partes do mundo – certamente no Oriente Médio, desde várias décadas, na Europa oriental, em meio à maior guerra de agressão desde 1945, na própria América do Sul –, 2025 ainda não representou um prenúncio similar aos vinte anos prévios que levaram o mundo às destruições registradas até 1945.
Que 2025 não se conclua com alguma antecipação eventual de um cenário tão desafiador quanto foram os terríveis anos 1925-1945. Obviamente, qualquer prefiguração das semanas e meses à nossa frente, não depende de algum ativismo da diplomacia profissional brasileira, embora ela sempre demonstrou discernimento suficiente para colaborar na busca de soluções adequadas aos desafios de momentos incertos, a despeito de certas políticas externas ditadas por dirigentes nem sempre bem-preparados para cuidar dos interesses nacionais em acordo com propósitos afins aos valores e princípios da nação brasileira.
Em todo caso, meus melhores votos para que 2026 (e mais além) represente o início de um novo período de distensão no ambiente multilateral e de cenários mais amenos nos diversos conflitos regionais ainda em curso no presente momento. Gostaria que se fizesse novamente efetivo o diagnóstico proclamado por Raymond Aron, em 1948, ao início da primeira guerra fria: “paz improvável, guerra impossível”. Não é o ideal, mas já é muito, neste início de uma segunda guerra fria.
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