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quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Lula não tem admiração de antes no exterior pois não defende mesmas causas do Ocidente, diz Ricupero - Monica Gugliano (Estadão)

Lula não tem admiração de antes no exterior pois não defende mesmas causas do Ocidente, diz Ricupero

O diplomata e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero avaliou a política externa do governo Lula
Ex-ministro e ex-embaixador diz que país rompeu isolamento internacional graças à política de meio ambiente e que Lula deveria ser menos condescendente com Maduro
Monica Gugliano

Estadão, 10/01/2024


"O Brasil rompeu o isolamento internacional, graças à política de meio ambiente", diz o ex-ministro do Meio Ambiente do governo Itamar Franco, Rubens Ricupero. Embaixador aposentado e ex-ministro da Fazenda, ele avalia, porém, que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não voltou a ter a mesma admiração que tinha do mundo em seus dois primeiros mandatos. Segundo ele, em razão de o petista não defender hoje necessariamente as mesmas causas que os ocidentais, como se dava anteriormente." A começar pela Ucrânia que ele teve desde o início uma posição muito de zigue zague, muito incerta. Ele já deu cinco ou seis declarações e o que se sustenta é que, no fundo, ele tem uma atitude benevolente em relação ao Putin, à Rússia. Esse tipo de coisa o coloca num rumo de colisão com os Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha. Ninguém simpatiza com essa posição do Brasil em relação à Ucrânia", diz ele.

Em entrevista ao Estadão, ao tratar da crise entre a Venezuela e a Guiana, o ex-ministro avalia que dificilmente a tensão acabará em um confronto armado. Mas, afirma que situação já se tornou um problema para o Brasil e que o presidente Lula deveria ser menos condescendente com seu colega venezuelano, Nicolás Maduro.

Veja a íntegra da entrevista:

Em que medida a Venezuela pode se transformar em um problemão para o Brasil?

De certa forma já virou. Lula depositou uma confiança em Nicolás Maduro quando, alguns meses atrás, ele fez uma reunião de presidentes em Brasília para refundar a Unasul. Mas não conseguiu. Lula estendeu o tapete vermelho para Maduro, embora, naquele momento, o Brasil não tivesse relações diplomáticas com a Venezuela - o ex-presidente Jair Bolsonaro havia rompido. Ele quis mostrar, com isso, que tinha confiança de que Maduro poderia aceitar aos poucos a ideia de uma eleição presidencial, por causa das pressões, das sanções americanas.

E parece que não deu certo, não é?

Lula seguramente queria mostrar que ele podia ter uma relação especial com a Venezuela e Maduro. Mas Maduro, ao criar esse problema grave com a Guiana, mostrou que Lula fez uma aposta errada, confiou numa pessoa que não merecia. Tanto assim, que agora está criando um problema para o Brasil e é complicado. Embora eu não acredite muito que o Maduro tenha intenção realmente de desencadear uma agressão militar contra a Guiana porque seria uma aventura.

O senhor acha que é uma bravata?

Toda guerra, como mostra a própria guerra da Ucrânia, costuma ser imprevisível. Todo o mundo achava que a Rússia ia resolver aquilo em pouco tempo, mas, na verdade, houve uma reviravolta e já dura quase dois anos. Eu acredito que Maduro deve ter tomado essa decisão sobretudo por razões internas. O apoio dele vem, em último caso, dos militares, ele e, no fundo, o regime venezuelano é amparado nas Forças Armadas. Ele tem uma popularidade muito baixa, a eleição vai ser complicada. Por isso, está tentando, com os meios de que dispõe, preparar a eleição para não correr perigo de perder. Tanto é assim que o Tribunal venezuelano, que ele controla, já declarou inelegível Maria Corina Machado, que é a principal adversária dele e aparece melhor nas pesquisas. Mas ele provavelmente quis, com essa decisão, aumentar o apoio que ele possa ter da parte dos militares, da própria opinião pública.Mas agora ele saiu do território venezuelano...Agora, ele tomou esta iniciativa e criou um problema grave, pois ele, depois de destruir a Venezuela - é um caso único nos tempos modernos, num país que não tem uma população tão grande (cerca de 28 milhões de habitantes), que cinco, seis milhões de pessoas tenham saído de lá e só isso mostra o desastre que é - está criando uma situação complicada para o continente. Para nós, em primeiro lugar, pois, além desse precedente de o Lula ter apostado nele, uma aposta que não deu certo, ele criou um problema numa área em que o Brasil tem limites com dois países. O Brasil é o único país da América do Sul que tem limites com a Venezuela e a Guiana e que, se acontecesse alguma coisa muito grave lá, dificilmente o Brasil poderia ficar passivo. Não creio que os militares aqui iriam aceitar alguma coisa mais grave, como uma incorporação de um território. Você vê pelas declarações do próprio ministro da Defesa, José Múcio Teixeira. Ele não quis ser agressivo, mas deixou claro que, pelo território brasileiro, os venezuelanos não poderiam passar nunca, se quisessem atacar a Guiana. É mais ou menos óbvio, mas ele não precisava falar. O fato de ele ter falado foi uma espécie de recado e, além do mais, há outros sinais, o Exército mandou pra lá mísseis, blindados. Isso não quer dizer que o Brasil queira entrar numa contenda, mas mostra que está preparado para isso. E, com tudo isso, Maduro está criando um problema enorme.Há um receio de que um hipotético conflito trouxesse os Estados Unidos ao continente...Ainda acho que Maduro dificilmente iria desencadear uma operação militar. As consequências seriam imprevisíveis, em último caso poderia levar até a queda dele. Acho que ele vai ter muito mais prudência do que muita gente poderia pensar, se seguir a retórica dele. Não há dúvida de que, se essa situação escapasse ao controle e chegasse de fato a uma operação militar, os americanos seriam a garantia da Guiana. Primeiro, porque eles não poderiam aceitar que um governo como o da Venezuela, que eles detestam, agredisse a Guiana. Segundo, porque a principal empresa que explora o petróleo lá é a Exxon, americana. Eles não vão ficar indiferentes. Isso que os militares brasileiros receiam é uma alternativa plausível. De fato, embora não haja esse descontrole, não acho impossível. Mas acho pouco provável.

O senhor acha que Lula deveria ter sido mais duro com o presidente da Venezuela?

A primeira coisa que eu acho bom dizer é que esse caso mostra claramente que, além de um problema de princípios, é um erro. Quando não se critica uma política de indiferença às violações dos direitos humanos, como essa política que o PT e Lula costumam conduzir que, por afinidades ideológicas, não querem criticar a Venezuela, a Nicarágua, Cuba, além do problema de princípios, se comete um erro. Por que há outro aspecto: o ditador, o homem que viola a democracia e os direitos humanos é sempre causa de perigo. Você vê quem é que atacou a Ucrânia? Foi o Putin (Vladimir Putin, presidente da Rússia), ditador. Quem está criando esse problema com a Guiana? É o Maduro. Então, a gente vê claramente que é preciso condenar com firmeza as ditaduras e as violações, porque quem faz isso prejudica não só os próprios cidadãos, mas, na primeira oportunidade que aparecer, se torna uma ameaça aos demais, como estamos vendo na Venezuela.

O senhor diria que o Brasil está perdendo a liderança no continente?

Para o Brasil, que sempre disse que a prioridade era a América Latina, a América do Sul, especialmente, a situação está ficando cada vez mais difícil. A América do Sul está se tornando um terreno muito complicado. Com a eleição na Argentina, Lula perdeu seu principal interlocutor, seu principal aliado, que era o governo peronista. E não é um aliado qualquer, é o mais importante na América do Sul. Aí, ele perde também dentro do Mercosul, em que nem o Uruguai nem o Paraguai têm posições ideológicas parecidas às do PT. E, além disso, no resto do continente, o Brasil está numa situação duvidosa. O Chile pela segunda vez rejeitou a proposta de mudança na constituição, e o governo está com uma popularidade muito baixa. O Peru é um país com muita instabilidade política, até agora está aquela presidente interina, depois que o impeachment derrubou o presidente, vive uma situação tão agitada que praticamente não conta na política do continente. Colômbia, que poderia ser mais simpática às posições daqui, Gustavo Petro (presidente colombiano) adotou uma postura que é oposta à do Brasil. Petro sugeriu não explorar o petróleo da Amazônia, coisa que o Lula não quis aceitar. Neste continente, agora, Lula tem um espaço muito pequeno. Tanto que a ideia que ele tinha de refazer a Unasul não deu certo.

Mas no caso da Guiana, o Brasil tem feito uma certa mediação...

No caso da Guiana é verdade que ele contribuiu para essa reunião que houve entre Maduro e o presidente da Guiana, Irfaan Ali, tanto que o segundo encontro vai ser aqui. Mas é um problema que não precisava existir se não fosse Maduro ter criado essa dificuldade. Um panorama que ficou muito mais desfavorável para o Lula. Não digo que seja culpa dele, mas que ele apostou num homem e deu errado.

O senhor acha que Lula atingiu os objetivos que se propôs na política externa para este primeiro ano de governo?

Alguns dos primeiros objetivos que ele anunciou, ele conseguiu atingir. O Brasil estaria de volta, sairia da situação de pária. Delineou um programa que ele cumpriu. Voltou a se tornar um parceiro ativo e, graças à política de meio ambiente, ele conseguiu romper aquele isolamento, a condição de pária que o Bolsonaro havia criado. Grande parte do isolamento se devia à política de meio ambiente, povos indígenas. Isso mudou e é uma parte positiva do governo. E não mudou só no discurso. Mudou de verdade. Teve a nomeação de Marina Silva, a campanha contra o garimpo ilegal em Roraima, com a destruição dos equipamentos, a campanha para diminuir o desmatamento da Amazônia, que diminuiu muito. Então, esse lado, eu acho altamente positivo. Há uma situação bem melhor.Mas o mundo é muito diferente daquele dos dois primeiros mandatos dele...Ele não conseguiu voltar a ter a admiração que tinha nos dois primeiros mandatos porque, naquela ocasião, ele aparecia como um homem que defendia causas que os ocidentais também defendiam. Mas, neste momento, algumas causas que o Lula tem procurado são diferentes dos países ocidentais. A começar pela Ucrânia, que ele teve, desde o início, uma posição muito de zigue zague, muito incerta. Ele já deu cinco ou seis declarações, e o que se sustenta é que, no fundo, ele tem uma atitude benevolente em relação ao Putin, à Rússia. Esse tipo de coisa o coloca num rumo de colisão com os Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha. Ninguém simpatiza com essa posição do Brasil em relação à Ucrânia. Também no caso de Israel, ele tem exagerado um pouco nas palavras, embora haja no mundo uma grande preocupação com o que está acontecendo lá. Ele é admirado hoje pelos direitos humanos e sobretudo pelo meio ambiente em que ele realizou muita coisa.


quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Diplomatas criticam forma de promoção no Itamaraty - Monica Gugliano (OESP)

 Diplomatas criticam forma de promoção no Itamaraty

O Estado de S. Paulo | Política
22 de novembro de 2023

MONICA GUGLIANO

Um grupo de diplomatas cada vez maior tem reclamado dos critérios de promoções e de ascensão na carreira no Itamaraty. As queixas já não dizem mais respeito apenas ao número reduzido de mulheres que atingem osaltos postos. Mas ganharam corpo e se ampliaram atingindo, em especial, os preceitos e normas que determinam a trajetória de cada um.

Há menos de um mês, a insatisfação chegou à mesa da secreária-geral da Casa, Maria Laura da Rocha, em um documento de cinco páginas que arrola discordâncias. "A carreira de diplomata, em sua atual configuração, apresenta distorções no reconhecimento do mérito individual de seus integrantes que prejudicam o desempenho profissional", diz o texto.

A Assembleia-Geral da Associação e Sindicato dos Diplomatas Brasileiros (ADB), organização que conta com mais de 1,6 mil associados, endossou o documento "Fluxo e Reforma da Carreira de Diplomata".



300 diplomatas assinam documento com críticas à gestão do  Itamaraty  e que pede previsibilidade para as promoções diretriz a ser seguida em futuras negociações. Propõe maior transparência das decisões tomadas pela Comissão de Promoções, além de adoção de uma reforma estrutural da carreira, como progressão funcional "previsível, transparente e equânime",ea criação de mecanismos para combater o desequilíbrio de gênero e de raça, entre outras.

Os mais de 300 diplomatas queassinam o documento acreditam que, se houve melhora em relação ao período do chanceler Ernesto Araújo - durante o qual ocorreram perseguições ideológicas -, por outro lado, distorções de diferente natureza passaram a atingir os degraus mais baixos da carreira.

Outros documentos têm circulado argumentando que, apesar de expectativas da classe de que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva pudesse revalorizar o Itamaraty, os dois ciclos de promoções de 2023 representaram uma ducha de água fria.



"DIÁLOGO". 


Procurado, o Ministério das Relações Exteriores comentou as críticas aos mecanismos de promoção: "Manifestações e sugestões de mudanças fazem parte de um diálogo institucional iniciado pela atual administração em janeiro deste ano e fazem parte de uma reflexão coletiva sobre oa carreira diplomática e a lei que rege o serviço exterior brasileiro". 

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Uma família de mascates ou de larápios? Bolsojoias, Micheques e outras coisas - Monica Gugliano (OESP)

 Uma família de mascates ou de larápios? (PRA)


Vêm aí novas e fortes emoções para quem acompanha os capítulos do seriado das joias do ex-presidente Jair Bolsonaro e de sua cônjuge Michelle. 

Monica Gugliano
O Estado de S. Paulo, 29/08/2023

    Até o fim do mês de setembro, o Tribunal de Contas da União (TCU) deve ter em mãos uma relação completa de todos os presentes que ele recebeu nas viagens em quatro anos de governo, e que até agora não foram declarados publicamente e se desconhece o paradeiro deles. 
    O levantamento está quase terminado e deverá trazer novas e contundentes provas do hábito presidencial de guardar para si mesmo objetos de alto valor, alguns dos quais acabaram sendo revendidos e recomprados em estranhíssimas transações levadas a cabo em Miami. E o TCU ainda desconhece o total, mas cresce a suposição de que há muitos mais relógios e “lembrancinhas” valiosas voando por aí. 
    É que, como se sabe, as comitivas que acompanhavam Bolsonaro também eram presenteadas. Certamente com menos brilhantes, mas não com grifes menos valorizadas, como Cartier e Piaget. 
    Até o final do mandato de Bolsonaro, apenas três ministros haviam devolvido seus mimos: Onyx Lorenzoni (que passou pela Casa Civil e pelo ministério do Trabalho); general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional – GSI) e o diplomata Carlos França, que foi ministro das Relações Exteriores. A devolução envolveu uma história peculiar. Na prática, segundo fontes ouvidas pelo Estadão, a ideia de entregar os relógios para a Comissão de Ética teria partido dos três ministros presenteados. 

    Mas, na verdade, também de acordo com assessores que participaram da operação, eles queriam que um diplomata do Ministério das Relações Exteriores carregasse em sua mala os objetos e os levasse para Brasília, pois não havia intenção de devolvê-los. O funcionário do Itamaraty, uma das carreiras mais tradicionais do serviço público brasileiro, achou que não era conveniente ser o portador da carga e se recusou a trazê-los. Já de volta ao Brasil, consultou, por sua própria conta e risco, a Comissão no Palácio do Planalto. Foi informado que ninguém estava autorizado a manter o relógio no pulso, devolveu o seu e avisou os outros três ministros. 
    Na semana passada, o ex-presidente anunciou, em tom de bravata, que buscaria as joias e relógios que estão em posse do governo federal porque lhe pertenciam. Segundo fontes que acompanham o caso, não há nada de novo em relação às joias e o que Bolsonaro estaria tentando fazer seria mobilizar seus seguidores. Esses mesmos interlocutores do Estadão observaram que tudo não passa de uma jogada política, talvez para criar contradições que lhe permitam levar todo processo para a primeira instância. 
    O problema é que, por mais que o ex-presidente queira reaver os presentes ou procure justificativas para isso, é de 2016 o decreto 4.344/2002 com a determinação para que, a exceção dos itens de natureza personalíssima ou de consumo próprio – como finas caixas de tâmaras que a comitiva bolsonarista trouxe de países árabes – sejam incorporados ao patrimônio da União. 
    Nessa época, os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff devolveram objetos que estavam com eles. Da mesma forma, o acórdão 443/2023, relatado pelo ministro Augusto Nardes, determinou ao ex-presidente da República Jair Messias Bolsonaro que, “nos termos do item 3, inciso, III, da Resolução 3, de 23 de novembro de 2000, da Comissão de Ética Pública, entregue os itens em seu poder oriundos dos presentes recebidos na visita da comitiva presidencial à Arábia Saudita e também as armas recebidas dos Emirados Árabes Unidos à Secretaria-Geral da Presidência da República no prazo de 5 (cinco) dias úteis, devendo ser juntado, de imediato, a este processo o correspondente comprovante da entrega”. 
    Como já se sabe, foi aí que a coisa complicou. Boa parte dos objetos já havia sido vendida em Miami numa operação que envolveu o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, tenente-coronel Mauro César Cid – que está preso – e seu pai, o general de Exército na reserva, Mauro Lourena Cid. Coube ao advogado do ex-presidente Frederick Wassef – que conforme o Estadão acumula dívidas no total de R$ 60 mil – recomprar um dos relógios Rolex, pagando por ele quase R$ 300 mil. Ele ainda nem explicou direito a razão de tamanho altruísmo. 
    Pelo andar das investigações e a quantidade de “surpresinhas” que aparecem, a história das joias ainda está longe de acabar. 

https://www.estadao.com.br/politica/monica-gugliano/lista-de-presentes-preciosos-para-bolsonaro-e-michelle-e-maior-e-vem-surpresa-por-ai/

sábado, 19 de dezembro de 2015

Rubens Ricupero: um depoimento para a Historia - Monica Gugliano (Valor)



Valor Econômico, 18 dezembro 2015
A agonia da crise final
Por Monica Gugliano | Para o Valor, de São Paulo

Amanhã clara e ensolarada dera lugar a um início de tarde cinzento. Pesadas nuvens carregavam o céu em Higienópolis, bairro de classe média alta em São Paulo. A rua do prédio de Rubens Ricupero, 78 anos, é razoavelmente tranquila, muito arborizada. No sexto andar, ele que aguarda em frente da porta aberta do apartamento abre um sorriso e estende a mão para cumprimentar a repórter.
O almoço foi marcado no apartamento do ex-ministro da Fazenda depois de ele apresentar dois argumentos praticamente irrefutáveis: em restaurante algum de São Paulo se come tão bem quanto ali e a conversa não será atrapalhada por pessoas acima do tom em outras mesas. "Morei muitos anos, quase dez, em Genebra. Lá era tudo tão tranquilo, as pessoas tão silenciosas que, quando voltei para o Brasil, achei que não me acostumaria a morar em São Paulo e teria que arrumar um lugar no interior", diz.
Os tempos na Europa não são mais tão silenciosos como quando Ricupero vivia lá. Depois que 137 pessoas foram mortas e mais de 350 feridas por integrantes do Estado Islâmico (Isis), no mês passado, a França está em guerra contra o terror. E o diplomata está bastante apreensivo - também por questões pessoais. Três filhas suas moram no exterior. Uma em Genebra e duas na França, uma delas em Paris, palco dos atentados. "No documento do Isis, estava prevista mais uma ação no XVIIIe. 'arrondissement', onde fica Montmartre. Minha filha mora ali, bem próximo ao local onde foi deixado um dos carros dos terroristas. Fiquei muito impressionado com isso. É um cenário de horror que me toca muito de perto." Seu filho caçula vive na capital paulista e é professor de ciência política na Universidade de São Paulo (USP).
O terrorismo que atinge de perto a família Ricupero, entre outras consequências, comprometeu o acordo de Schengen, um dos pilares da União Europeia que permitiram a abertura das fronteiras e a livre circulação de pessoas entre os países signatários. Cercas de arame farpado são erguidas, impedindo a entrada dos imigrantes que fogem dos absurdos da guerra na Síria, no Líbano e no Iraque. Os postos fronteiriços são vigiados com rigor. Controles de entrada e saída se tornaram implacáveis com todos os cidadãos, sem distinção. "Esse problema não tem nenhuma saída à vista, nenhuma solução fácil. E começa a afetar a globalização."
Ricupero observa que a força básica que impulsiona a globalização, seguindo o conceito de que ela significa a unificação do planeta para todos os tipos de intercâmbio, é a revolução tecnológica. Um paradoxo. Afinal, é também a internet que amplifica o poder dos terroristas, permite o recrutamento de novos seguidores mundo afora e divulga as bárbaras execuções que eles cometem em nome da religião. "É um fenômeno curioso. A globalização significava eliminar fronteiras, inclusive com o poder da internet. As fronteiras da União Europeia estavam acabando, os muros caíram. Agora, eles voltam. É um retrocesso para a civilização que terá um profundo impacto no comércio e na economia mundiais", afirma.
 Ricupero: "As fronteiras da União Europeia estavam acabando, os muros caíram. Agora, eles voltam"

Os países na América Latina ainda não estão na mira do terror, mas os reflexos chegam ao continente, que contava com novos investimentos, incremento nas relações comerciais que pudessem atrair investimentos e financiamentos. "Aí é que o que acontece no mundo hoje é uma ameaça para nós. A reunião do G-20, antes desse ataque, ia ser basicamente dedicada à discussão de como enfrentar essa tendência dos países emergentes que não estão crescendo, como reativar a economia mundial. Esse tema sumiu do mapa", afirma o ex-embaixador, com a autoridade de quem conhece em profundidade o comércio internacional. De 1995 a 2004, Ricupero cumpriu dois mandatos de secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).
A entrevista é interrompida por alguns minutos, quando chega Marisa, a mulher do diplomata. No apartamento de amplas varandas, a sala é dividida em três ambientes, com móveis confortáveis e decorada com objetos de arte e recordações trazidas de outros países. Ele e Marisa moraram em Buenos Aires, Quito, Viena, Roma, Washington e Genebra. É ela quem prepara o almoço e, enquanto não fica pronto, oferece suco de tomate, água, castanhas e palitinhos de cenoura. Logo depois, se acomoda em um dos sofás e conta que os dois se conheceram muito jovens. Estavam noivos em 1960, quando Brasília foi inaugurada e chegavam os primeiros moradores. O Itamaraty, como quase todos os órgãos federais, ainda funcionava no Rio, então capital federal.
Convencer os servidores públicos federais a deixar a vida de luz, sol e mar para embrenhar-se naquela terra vermelha e árida, em meio aos redemoinhos de vento e poeira, era bastante difícil. Os pioneiros voluntários que concordavam em encarar aquele lugar inóspito eram recompensados. "Recebíamos a dobradinha", recorda-se Marisa, explicando que esse era o nome dado ao pagamento do salário em dobro, além de uma gratificação.
Outro atrativo eram as moradias. Os apartamentos, vendidos quase a preço de banana e em prestações a perder de vista, tinham três quartos grandes, sala espaçosa. Eram muito diferentes das habitações apertadas e caras no Rio. E ainda havia um ponto que faria toda a diferença na carreira de um jovem diplomata. "O grupo do Itamaraty era muito pequeno. Eu tinha acesso a pessoas com as quais jamais falaria se estivesse no Rio. Cheguei a despachar com Jango [o presidente João Goulart] e com Tancredo Neves [primeiro-ministro no curto período parlamentarista brasileiro]. É claro que gostei. Sentia que estava acompanhando a história de perto", diz o ex-embaixador. Marisa vai até a cozinha e volta com o convite: "Já está tudo pronto. Querem almoçar?"
[O terrorismo religioso] é um retrocesso para a civilização que terá um profundo impacto no comércio e na economia mundiais
Ricupero está no meio de uma boa história e segue a narrativa. "Você sabe que conheci o Che Guevara quando ele veio ao Brasil para ser condecorado pelo presidente Jânio Quadros, em 1961? Fui designado para acompanhá-lo e conversamos muito. Fiquei surpreso. Imaginava ele uma figura feroz, um homem belicoso. Afinal, era um líder guerrilheiro. Natural que, em gestos e palavras, mostrasse estar habituado ao combate. Nada disso. Che era muito suave. Era um homem que tinha gravidade. Mas muito afável. Vai ver que, por isso, dizia aquela frase: 'Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás'."
O diplomata cita a frase mais famosa do argentino Ernesto Guevara, o Che, revolucionário que, ao lado de Fidel Castro, derrubou o regime de Fulgencio Batista, em Cuba, e pavimentou o caminho para a efetivação do longevo regime comunista.
"Vamos almoçar?", repete Marisa, dessa vez já encaminhando todos à mesa. Ela pergunta onde cada um gostaria de sentar-se. "Marisa é a chefe do cerimonial", brinca o ex-embaixador. "No Itamaraty, normalmente, marido e mulher nunca ficam um ao lado do outro. Supõe-se que eles já se falam muito todos os dias. Nas ocasiões sociais é preciso variar." O cerimonial fica para outra ocasião e nos sentamos da forma mais prática. Entrevistado e repórter frente à frente.
O cardápio, a elaboração dos pratos e a escolha do vinho - um branco chileno Tarapacá - ficaram por conta de Marisa. Ela serve a bebida e a entrada: "vichyssoise", clássica sopa fria francesa, à base de alho-poró, batatas, creme de leite e manteiga. "A minha é uma versão light. Pouca manteiga, pouco creme", esclarece, tranquilizando jornalista e fotógrafa.
Diretor do curso de relações internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), Ricupero toma a sopa e retoma o assunto do terrorismo, uma de suas grandes preocupações atuais. Em 2009, há seis anos, escreveu um artigo - quase profético - com o título "A islamização da agenda internacional". Ele chamava de "arco de crises" a curva de violência e conflitos que passava pelo Líbano, a Faixa de Gaza, Israel e Síria, chegando ao centro e norte da África. Ressalvadas as especificidades próprias de cada um desses conflitos, ele mostrava no texto que todos tinham em comum o fato de opor ocidentais (os americanos e seus aliados na Otan) a uma variedade de movimentos e facções muçulmanas. "Os americanos têm uma responsabilidade grande nisso. Eles militarizaram o conflito. O Iraque tinha todos os problemas, menos o terror. A guerra no Afeganistão não terminou até hoje", observa.
Com a ajuda da empregada, Marisa retira as delicadas tigelas de sopa, de porcelana comprada em Praga. Alguns minutos depois, serve o prato principal: atum com alho assado, cebolas caramelizadas e brócolis. "Falei que o restaurante da Marisa é bem sofisticado, mereceria uma estrela", elogia Ricupero. "Eu e você vamos dividir um pedaço do atum", afirma ela, servindo o prato do marido. Ele concorda.
"Marisa é mais requintada", observa o ex-ministro, educado em uma casa de mãe napolitana. "Estou acostumado com a comida do sul da Itália. Muito molho de tomate, berinjela. Ela é do Norte, está acostumada às combinações mais sofisticadas."
A família de Marisa é da região de Trento, que só passou definitivamente para o domínio italiano depois da Primeira Guerra. A culinária local é fortemente influenciada pela França, Áustria e Hungria, e as receitas mais refinadas, se comparadas às do sul do país, usam creme de leite, bastante manteiga e bastante condimento. Da região de origem da família Ricupero vêm os italianos mais expansivos e comunicativos e os pratos têm influência mediterrânea.
O papo atravessa o oceano e chega ao Brasil. Ricupero comandou a economia do país em um dos momentos mais delicados da história recente. No início da década de 90, então embaixador em Washington, ele era o nome do presidente Itamar Franco (1930-2011) para conduzir a economia. O mineiro Itamar, que sucedeu Fernando Collor, afastado da Presidência por um processo de impeachment, gostava das ideias de Ricupero. Comungava da preocupação que o diplomata manifestava sobre a inclusão social e o crescimento econômico. Ricupero agradeceu, mas preferiu ficar no exterior.
Em 1994, Fernando Henrique Cardoso - que era o ministro da Fazenda - saiu do governo para disputar a sucessão presidencial. Ricupero não rejeitou o segundo convite. Itamar o chamava de "sacerdote". Não apenas pela dedicação sacerdotal que Ricupero dedicou ao Plano Real. O diplomata é - assim como era Itamar - devoto de Santa Terezinha e um homem de profundas convicções religiosas.
A grande ameaça ao ser humano não é o fundamentalismo islâmico, mas o aquecimento global. As pessoas não percebem
No Ministério da Fazenda, conheceu a glória do êxito do Plano Real, mas, também, o amargor de um deslize que o obrigou a deixar o cargo. Em uma conversa, antes de começar uma entrevista para a Rede Globo, comentou: "O que é bom a gente mostra. O que não, a gente esconde". O áudio, como se diz no jargão da TV, "vazou" na transmissão pela antena parabólica e a frase virou arma da campanha do petista Luiz Inácio Lula da Silva - àquela altura em desvantagem nas pesquisas de intenção de voto - contra Fernando Henrique. Poucas horas depois da transmissão, Ricupero disse a Itamar que não teria mais condições de ficar no posto.
A contragosto, o presidente aceitou. "Eu estava cansado, dava muitas entrevistas. Fiz um comentário. Não sei se foi um momento de vaidade. Penitencio-me até hoje", justifica o ex-ministro.
Os pratos já estão limpos. Que melhor elogio pode ser dado a um chef? Marisa também serve a sobremesa: creme de abacate e frutas. E Ricupero volta a falar sobre a crise brasileira. Em sua opinião, a presidente Dilma Rousseff deveria renunciar. Pouparia, assim, o desgaste e os prejuízos econômicos e institucionais que se abatem sobre o país. E critica, também, aqueles que veem o país submergir, mas elogiam o bom funcionamento das instituições.
"É até contraditório dizer que o Brasil está mergulhado em uma profunda crise política, moral e de corrupção e que tem instituições fortes. Se o Brasil tivesse instituições fortes, elas teriam impedido que isso ocorresse. As crises ocorrem nas instituições."
Quase três horas depois de começar este "À Mesa com o Valor", desabafa: "Os grandes ciclos econômicos, políticos e sociais da história do Brasil têm um desdobramento parecido. São ciclos longos. O segundo mandato de Dilma, para mim, é a agonia da crise final. Só não creio que o desenlace seja militar. Vamos ter a agonia final desse sistema. Vai acontecer aquela definição que [Antonio] Gramsci [1891-1937] dava à crise: o velho não acaba de morrer e o novo não consegue nascer. Nesse interregno, todo tipo de sintoma mórbido sobe à superfície."
Marisa avisa que serviu o café na sala de estar. Voltamos ao sofá. Ricupero não está nada otimista em relação ao futuro. A crise no Brasil, pondera, terá um tempo curto e um tempo longo. A curto prazo será preciso esperar para saber o que vai ocorrer com a presidente Dilma. "Temos que ver se ela conseguirá deter essa deterioração da economia. No momento parece difícil, pouco provável que esse governo tenha condições de recuperar uma ação mais efetiva. A situação é mais complexa e difícil do que se diz. Falam que é sobretudo falta de confiança. Recuperada a confiança, os investimentos retornariam. Se fosse só confiança, seria uma questão política e econômica, apenas."
No entanto, em sua opinião, muitos dos problemas do Brasil estão inseridos na economia mundial. "A análise e a discussão econômica no Brasil são muito monótonas, dominadas pelos problemas locais e superficiais", critica. A discussão ignorada no país diz respeito aos rumos da globalização. Teria esse processo atingindo seu pico e entraria em declínio? "Muitos pensam que o pico da globalização econômica foi atingido antes da crise. Para alguns é uma tendência passageira por causa da crise, para outros não."
Nos Estados Unidos, esse debate conta com vozes como a do ex-secretário do Tesouro do governo de Bill Clinton e economista Lawrence Summers, que, no ano passado, relançou o tema da "estagnação secular" - expressão que designa longos períodos de baixo crescimento mundial.
 "Muitos comparam a crise financeira de 2008 à de 1929. A do século passado foi muito pior", diz

As opiniões estão divididas entre analistas que dão ênfase à perda de influência relativa da economia americana no contexto global e os que encontram semelhança no momento atual com as crises de emergentes nos anos 90. Os historiadores econômicos, por exemplo, já assinalam que essas taxas de crescimento de 3, 4, 5% per capita nos países ricos são fenômenos raríssimos na história da economia. O normal, diz o ex-embaixador, não é crescer muito, mas crescer pouco. No passado, porque a própria demografia não aumentava, controlada pelas epidemias, fomes, recursos limitados. Hoje, a estagnação secular se aplica ao fato de que os três grandes motores da economia capitalista avançada, Estados Unidos, a Europa em conjunto e o Japão, estão com muita dificuldade para voltar a crescer.
"Muitos comparam a crise financeira de 2008 à de 1929. A do século passado foi muito pior. Naquela época, o erro foi fechar o crédito. Agora foi o contrário. O ser humano aprende algumas lições. O que não quer dizer que não haja novos problemas. O homem é um ser problemático por natureza", observa.
A Revolução Industrial resolveu o problema da escassez de bens, mas, na opinião de Ricupero, criou um novo problema: o aquecimento global. "Considero que a grande ameaça ao ser humano não é o fundamentalismo islâmico, mas o aquecimento global", avalia. "As pessoas não percebem. A grande diferença com a ameaça da destruição dos terroristas é que a deles é já, é imediata, está aí à nossa frente. A do aquecimento vai se concretizar só dentro de 30 anos. Parece tanto tempo que muitos acreditam que até lá vamos inventar alguma coisa."
Nem tudo é desesperança sobre o amanhã. Ricupero vê com entusiasmo o acordo global para frear as emissões de gases do efeito estufa e para lidar com os impactos da mudança climática assinado na conferência do clima da ONU (a CoP-21), encerrada no sábado, em Paris. "Foi muito acima do que eu imaginava. Pela primeira vez Estados Unidos e China fizeram um movimento expressivo no sentido de combater as mudanças climáticas", avalia o ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal, entre 1993 e 1994. Ele comemora também a positiva sinalização sobre o fim dos combustíveis fósseis. "Isso põe um grande ponto de interrogação no pré-sal e deixa claro que se perdeu tempo com a euforia. É provável que esse petróleo nunca venha a sair do fundo do mar. Não digo que não terá nenhuma importância. Mas a corrupção na Petrobras, o preço do petróleo cada vez menor e a mudança de postura nas questões climáticas vão empalidecer o que se esperava do pré sal."
O ex-embaixador está escrevendo um livro em que trata do papel que a diplomacia teve não só em explicar a formação do Brasil e como se tornou independente, mas, também, como ajudou a plasmar os valores brasileiros e a ideia que o povo faz de si mesmo.
A conversa poderia prosseguir o resto da tarde - e já dura mais de três horas. Mas quando fala da globalização por meio da tecnologia, Ricupero não usa figura de retórica. A campainha toca: é o professor que o ensina os segredos dos computadores. A aula tem de começar.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O Itamaraty e o poder - Monica Gugliano (Valor)

Sob nova direção
Monica Gugliano
Para o Valor, de Brasília, 11/10/2013

Ao substituir Antonio Patriota por Luiz Alberto Figueiredo, Dilma decidiu que havia chegado a hora de mudar, mas não apenas o titular do Ministério
Na Esplanada dos Ministérios, a Casa do Barão do Rio Branco, tão conhecida pela eloquência, está em silêncio. Não é a primeira vez nem será a última em que divergências afetam as relações entre quem deve formular a política externa, no caso a presidente da República, e aqueles que devem executá-la, os diplomatas. "Ela não aprecia as tradições, os protocolos, os hábitos. Não demonstra paciência para as longas conversas. Detesta tanta pompa e tanta cautela. Há uma intransponível incompatibilidade de gênios entre a presidente e o Itamaraty", explica um auxiliar da presidente. Se o temperamento de Dilma não se casa com os costumes da diplomacia, servidores reclamam de sua impaciência e das cobranças ríspidas. "A sensação é de que os diplomatas são um estorvo e que a diplomacia não serve para nada", queixa-se um graduado diplomata, servindo no exterior.
Ao demitir, há pouco mais de dois meses, o ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, Dilma decidiu que havia chegado a hora de mudar. Mas não apenas o titular da pasta, substituído imediatamente pelo embaixador Luiz Alberto Figueiredo. A presidente, segundo interlocutores, quer arejar o estilo e as práticas de uma das mais antigas instituições brasileiras. Até mesmo o Instituto Rio Branco, a escola que forma os diplomatas, deverá ser atingida. Na última formatura, Dilma perguntou a um assessor: "Quantos são engenheiros?" Nenhum era. Engenheiros, acredita a presidente, teriam uma visão mais objetiva e direta para solucionar os problemas e desafios apresentados por um mundo tão complexo como o do século XXI. Mas a carreira desperta maior interesse entre formados em áreas humanas, como filosofia, história, direito, sociologia, relações internacionais e outras afins. Isso, porém, não significa que profissionais das ciências exatas sejam inexistentes no Itamaraty. O atual diretor- geral da Organização Mundial de Comércio (OMC), Roberto Azevedo, formou-se em engenharia elétrica pela Universidade de Brasília (UNB).
O Brasil tem 141 representações no exterior e o Instituto Rio Branco abre uma média de 30 vagas por ano para o curso de diplomata. Depois de dois anos, os aprovados estão aptos a começar a carreira como terceiro-secretário, recebendo um salário de pouco mais de R$ 13.000. Dali em diante, seguirão galgando postos e promoções de acordo com seus méritos e suas boas relações. Podem levar mais de 20 anos para chegar a embaixador. Muitos nem chegarão. Assim como poucos também chegam ao posto máximo (general, almirante ou brigadeiro de quatro estrelas) nas Forças Armadas. As carreiras têm semelhanças, a começar pela rígida hierarquia.

O concursos para o Instituto Rio Branco é um dos mais difíceis exames de ingresso para uma função pública no país. Há uma média de 260 candidatos por vaga. As provas são rigorosas, exigem conhecimentos sólidos de história, relações internacionais, inglês avançado, francês e espanhol razoável. Mas agora, se depender da vontade da presidente, exames e curso terão mais exigências. Ela acha que os futuros representantes do país no exterior devem aprender e saber expressar-se em árabe, mandarim e russo, além dos imprescindíveis inglês, francês e espanhol. A presidente defende também que os jovens estudantes intensifiquem o conhecimento de relações comerciais e negócios e que reforcem o domínio do uso das redes sociais. É provável que as novas qualificações requeridas, no entanto, não afastem os candidatos.
Mas a presidente quer outras mudanças, que vão atingir a carreira naquilo que ela tem de mais estereotipado: o glamour. Dilma mandou cortar os orçamentos das representações no exterior destinados a almoços, jantares, coquetéis, aluguéis de carros. Ela, dizem seus assessores, acha que esses eventos são desperdício de tempo. Os diplomatas discordam e afirmam que os eventos constroem relações que resultam em negócios e oportunidades. "O Itamaraty sempre fez isso. É uma das chancelarias mais profissionais do mundo. A diplomacia é uma carreira de Estado. A presidente, é claro, pode promover mudanças. Mas elas não vão alterar os alicerces do que fazemos há um século, quase", afirma um embaixador.
Os alicerces das relações internacionais estão consolidados na Constituição, que acaba de completar 25 anos. O artigo 4º diz que o Brasil segue os princípios da independência nacional, dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos, da não intervenção e da igualdade entre os Estados. Assim como o Barão do Rio Branco traçou parte das fronteiras nacionais optando pelo caminho do diálogo, o Brasil prega e defende a solução pacífica dos conflitos, repudia o terrorismo e o racismo. Por último, num parágrafo único está dito que o país buscará formar uma comunidade latino-americana de nações, por meio da integração econômica, social e cultural dos povos da região.

Se os princípios estão na Constituição, a maneira de interpretá-los e até de implementar as ações é muito particular de cada chefe de Estado. Nos últimos tempos, dois temas disputam a atenção de diplomatas e acadêmicos. Um deles é o de que a presidente Dilma gosta da política externa, mas não da diplomacia. O diplomata inglês Harold Nicolson, autor de um clássico sobre o tema, diz que a diplomacia é o meio pelo qual se executa a política externa. Portanto, seriam indissociáveis. "A presidente Dilma tem uma visão estreita do dia a dia da diplomacia. É por isso que os diplomatas atualmente se sentem tão marginalizados. Ela não entende que é impossível separar diplomacia e política externa. Ela não entende que os tempos das ações são diferentes. Não há comparação entre erguer um prédio e construir uma boa relação entre Estados", afirma o embaixador e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero.
Outro tema é que os partidos políticos têm usado a política externa para colher dividendos eleitorais internamente. É a chamada partidarização da política externa. "Isso é um assunto de Estado. A política externa é de Estado. O presidente da República conduz a política externa e dará ênfase aos assuntos que considerar mais importantes. Mas essa política não pode ser resumida aos objetivos de um partido", observa Celso Lafer, ministro das Relações Exteriores do governo de Fernando Henrique Cardoso.
O cientista político e superintendente executivo da Fundação Fernando Henrique Cardoso, Sergio Fausto, diz que a política externa dos governos do PT incorporou o que há de pior no conceito da partidarização. "O petismo percebeu que a política externa passou a pagar dividendos internos e soube trabalhar esse tema. Lula, principalmente, passou a usar slogans que cabem muito mais numa campanha eleitoral do que numa política que se supõe de Estado e de longo prazo", critica Fausto. O slogan ao qual se refere é "uma política altiva e ativa", cunhado durante a gestão do ministro das Relações Exteriores do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o embaixador Celso Amorim. A frase era uma crítica direta a Celso Lafer, que concordara em tirar os sapatos para submeter-se a uma revista em um aeroporto americano.
Lafer fala do assunto até hoje com naturalidade. "Tirei os sapatos, sim. Achei que não cabia criar caso e dar carteirada", conta. Fausto é mais duro. "Essa ideia é uma bobagem. É como se tudo que não fosse a tal política altiva e ativa fosse submissão aos interesses externos. E não é verdade. Ou vamos dizer que Fernando Henrique foi um presidente submisso?"

Há um fato, porém, que mesmo entre opositores políticos, é incontestável. A rara afinidade que existiu entre o ex-presidente Lula e o ministro Amorim fez o Itamaraty viver uma "era de ouro e prestígio" e, do chanceler, o estrategista dos grandes objetivos da política externa de Lula: a mobilização por um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU; a inserção e a busca de voz ativa para o Brasil nos mais importantes organismos internacionais e, também, a ênfase no papel de liderança do Brasil na América Latina. Sem esquecer, é claro, de ações como a polêmica intermediação do diálogo entre Irã e Turquia, que acabou derrubada pelos Estados Unidos.
"Os partidos tendem a exagerar as diferenças", diz a professora do Instituto de Relações Internacionais da USP Maria Hermínia Tavares de Almeida. Ela coordenou uma equipe, composta também pelos professores Janina Onuki, Leandro Piquet Carneiro e Feliciano de Sá Guimarães, que realizou a pesquisa "O Brasil, as Américas e o Mundo - Opinião Pública e Política Externa". O estudo mostra que 85% dos pesquisados consideram que o país conseguiu firmar uma imagem de independência perante o mundo. Mais de 90% acreditam que o Brasil terá um papel mais importante nos próximos anos. A maior parte dos entrevistados é de um público considerado informado e interessado pelo tema. "Em regimes democráticos, existem pontos de vista diferentes sobre como chegar a determinados objetivos. Mas, sejam quais forem os dos políticos brasileiros, é inegável que nossos governantes buscam um papel de destaque para o Brasil na comunidade internacional, buscam o protagonismo", explica a professora.
Uma linha do tempo traçada a partir da redemocratização do Brasil permitirá perceber essa busca em maior ou menor dimensão. José Sarney, apesar de envolvido em consolidar a frágil democracia brasileira e consumido pela hiperinflação, ainda assim teria começado a plantar as primeiras sementes do Mercosul; Fernando Collor, apesar de ter vivido parte de seu mandato encurralado pelas denúncias que o levaram ao impeachment, iniciou a abertura do país ao mundo. Itamar Franco teve pouco tempo e menos gosto ainda para tratar da política externa. Assim, coube a Fernando Henrique Cardoso, chanceler dele próprio, como se costumava dizer em Brasília, retomar o gosto e a importância pela diplomacia e pelas relações internacionais. E Lula, aproveitando ventos favoráveis no mundo e na estabilidade herdada de seu antecessor, consolidou conquistas. A grande diferença entre Fernando Henrique e Lula, dizem os analistas, é que, enquanto o primeiro deu muita ênfase ao aspecto comercial das relações, o segundo teria priorizado a política. Esses mesmos analistas citam como exemplo o Mercosul. Fernando Henrique teria visto o grupo como uma forma de fortalecer o continente em negociações comerciais diante de outros blocos. Lula teria buscado a unificação por aspectos políticos.

De acordo com a professora do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da UERJ e coordenadora do Observatório Político Sul Americano, Maria Regina Soares de Lima, a politização ou partidarização da política externa é, muitas vezes, interpretada como algo negativo. "A ideia é que essa característica afastaria a política externa das orientações, princípios e normas emanados de um suposto interesse nacional", diz, e acrescenta: "É uma das políticas de qualquer governo. A oposição também usa o tema partidariamente, ao criticar a atual condução que se dá ao tema".
Em julho deste ano, durante a Conferência Nacional "2002-2013", promovida pela Universidade Federal do ABC e pelo Grupo de Reflexão de Relações Internacionais, o assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, abriu sua palestra tocando exatamente nesse ponto. Ao observar que o debate acontecia 34

numa sala batizada com o nome do ex-ministro San Tiago Dantas, considerado um dos criadores da chamada política externa independente - ao lado de Afonso Arinos e João Augusto de Araújo Castro - Marco Aurélio reafirmou sua convicção de que a política externa tem, sim, muito a ver com política interna. "Diz-se que, nos últimos dez anos, o governo petista introduziu a cizânia na política externa brasileira. Falam, também, que ideias antes consensuais passaram a dividir o Brasil. Isso é uma mentira. A política externa sempre dividiu. E todos que conduziram o assunto com independência sofreram pesadas críticas dos antecessores dos governos de Lula e Dilma. Se a política externa não dividisse e todos concordassem, isso seria o totalitarismo."

Em artigo com o título "A politização da política externa - Fazer Política externa lá fora é fácil, o difícil é fazê-la aqui dentro", a professora Maria Regina recorda que o embaixador Ítalo Zappa, um dos principais construtores da política para a África do governo Geisel, costumava dizer que a politização da política externa era a demonstração de que as decisões, ainda que tomadas em relação a outros Estados, não eram o fruto de uma vontade única. Zappa referia-se à negociação política interna que Geisel conduzira para convencer e persuadir a chamada "linha dura" do regime militar de que era necessário reconhecer o governo socialista de Angola, em 1975.
Em longa entrevista ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas, organizada por Maria Celina D'Araújo e Celso de Castro, o ex-presidente Geisel expressou um pensamento sobre os diplomatas semelhante ao que se atribui à presidente Dilma: " A diplomacia é muito sutil. Nem sempre concordei com os diplomatas". Um dos temas em que ele mais discordava era também a relação entre Brasil e Estados Unidos. Geisel, assinala Octávio Amorim Neto, cientista político e professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape), da Fundação Getúlio Vargas (FGV-RJ), rompeu o paradigma que vigorara até o governo Médici, de convergência com os americanos.

No livro "De Dutra a Lula - A Condução e os Determinantes da Política Externa Brasileira", Amorim Neto pesquisa as relações entre Estados Unidos e Brasil. Utilizando as votações nas Nações Unidas para medir a convergência entre os dois países, o professor mostra que o Brasil mais divergiu do que concordou com a potência mundial. E isso não é recente. É uma postura que vem desde a metade do século passado, quando, após a vitória dos aliados na Segunda Guerra Mundial, os governantes perceberam que o fato de haver mandado tropas à Europa não garantiria aos brasileiros um tratamento diferenciado no continente. "Mas é bom assinalar que nossa trajetória com os americanos quase sempre teve um padrão marcado por decepções mútuas.

Agora, com a última crise, [as relações] não são hostis. Mas se tornaram completamente frias", assinala o professor.
Com o cancelamento da visita de Estado que a presidente Dilma faria este mês a Washington, as relações bilaterais praticamente congelaram. Para a presidente, não há explicação que justifique a espionagem americana aos seus documentos pessoais, aos de empresas e órgãos brasileiros. Uma visita de Estado, simploriamente, poderia ser comparada a um baile de gala entre países. É recheada de simbolismos, embora nem sempre traga resultados concretos como aqueles tão prezados pela presidente. Basicamente, o encontro sela um grau de amizade, de proximidade. O último presidente brasileiro a fazer uma visita com esse status aos Estados Unidos foi Fernando Henrique Cardoso, recebido por Bill Clinton. Talvez, Dilma, entre outros tantos argumentos que discutiu com seus assessores ao decidir cancelar a viagem, tenha lembrado de uma das fotos em que Fernando Henrique e dona Ruth, em trajes de gala, posavam ao lado do casal Clinton na Casa Branca, para dizer que, em meio às notícias da espionagem, não se prestaria a posar para retratos festivos com os Obama.

No Palácio do Itamaraty, o prédio de linhas espetaculares projetado por Oscar Niemeyer, repleto de obras de arte, tapetes e antiguidades, os diplomatas esperam que a gestão do embaixador Luiz Alberto Figueiredo traga dias menos tumultuados. Mas, enquanto ele vai tomando pé da situação e tenta implementar as primeiras mudanças ordenadas por Dilma, servidores da casa, em tom de brincadeira, gostam de contar a seguinte história, para explicar qual seria a diplomacia ideal: "A rainha Vitória soubera que o embaixador britânico fora humilhado publicamente pelo então ditador boliviano Mariano Melgarejo. O episódio, que teria acontecido por volta de 1870, enfureceu a soberana. Convencida de que deveria reagir sem piedade, ela mandou que lhe mostrassem o mapa-múndi. Viu que a Bolívia, cercada por Chile e Peru de um lado e pelo Brasil de outro, era inatingível pelo mar. A não ser que ordenasse um ataque por terra - uma guerra longa e caríssima - a reação pretendida seria impossível. Vitória resolveu o problema com um gesto simples: riscou a Bolívia do mapa das Américas. O país não mais existiria".