Valor Econômico, 18 dezembro 2015
A agonia da crise final
Por Monica
Gugliano | Para o Valor, de São Paulo
Amanhã
clara e ensolarada dera lugar a um início de tarde cinzento. Pesadas nuvens
carregavam o céu em Higienópolis, bairro de classe média alta em São Paulo. A
rua do prédio de Rubens Ricupero, 78 anos, é razoavelmente tranquila, muito
arborizada. No sexto andar, ele que aguarda em frente da porta aberta do
apartamento abre um sorriso e estende a mão para cumprimentar a repórter.
O almoço
foi marcado no apartamento do ex-ministro da Fazenda depois de ele apresentar
dois argumentos praticamente irrefutáveis: em restaurante algum de São Paulo se
come tão bem quanto ali e a conversa não será atrapalhada por pessoas acima do
tom em outras mesas. "Morei muitos anos, quase dez, em Genebra. Lá era
tudo tão tranquilo, as pessoas tão silenciosas que, quando voltei para o
Brasil, achei que não me acostumaria a morar em São Paulo e teria que arrumar
um lugar no interior", diz.
Os tempos
na Europa não são mais tão silenciosos como quando Ricupero vivia lá. Depois
que 137 pessoas foram mortas e mais de 350 feridas por integrantes do Estado
Islâmico (Isis), no mês passado, a França está em guerra contra o terror. E o
diplomata está bastante apreensivo - também por questões pessoais. Três filhas
suas moram no exterior. Uma em Genebra e duas na França, uma delas em Paris,
palco dos atentados. "No documento do Isis, estava prevista mais uma ação
no XVIIIe. 'arrondissement', onde fica Montmartre. Minha filha mora ali, bem
próximo ao local onde foi deixado um dos carros dos terroristas. Fiquei muito
impressionado com isso. É um cenário de horror que me toca muito de perto."
Seu filho caçula vive na capital paulista e é professor de ciência política na
Universidade de São Paulo (USP).
O
terrorismo que atinge de perto a família Ricupero, entre outras consequências,
comprometeu o acordo de Schengen, um dos pilares da União Europeia que
permitiram a abertura das fronteiras e a livre circulação de pessoas entre os
países signatários. Cercas de arame farpado são erguidas, impedindo a entrada
dos imigrantes que fogem dos absurdos da guerra na Síria, no Líbano e no
Iraque. Os postos fronteiriços são vigiados com rigor. Controles de entrada e
saída se tornaram implacáveis com todos os cidadãos, sem distinção. "Esse
problema não tem nenhuma saída à vista, nenhuma solução fácil. E começa a
afetar a globalização."
Ricupero
observa que a força básica que impulsiona a globalização, seguindo o conceito
de que ela significa a unificação do planeta para todos os tipos de
intercâmbio, é a revolução tecnológica. Um paradoxo. Afinal, é também a
internet que amplifica o poder dos terroristas, permite o recrutamento de novos
seguidores mundo afora e divulga as bárbaras execuções que eles cometem em nome
da religião. "É um fenômeno curioso. A globalização significava eliminar
fronteiras, inclusive com o poder da internet. As fronteiras da União Europeia
estavam acabando, os muros caíram. Agora, eles voltam. É um retrocesso para a
civilização que terá um profundo impacto no comércio e na economia
mundiais", afirma.
Ricupero: "As fronteiras da União
Europeia estavam acabando, os muros caíram. Agora, eles voltam"
Os países
na América Latina ainda não estão na mira do terror, mas os reflexos chegam ao
continente, que contava com novos investimentos, incremento nas relações
comerciais que pudessem atrair investimentos e financiamentos. "Aí é que o
que acontece no mundo hoje é uma ameaça para nós. A reunião do G-20, antes
desse ataque, ia ser basicamente dedicada à discussão de como enfrentar essa
tendência dos países emergentes que não estão crescendo, como reativar a
economia mundial. Esse tema sumiu do mapa", afirma o ex-embaixador, com a
autoridade de quem conhece em profundidade o comércio internacional. De 1995 a
2004, Ricupero cumpriu dois mandatos de secretário-geral da Conferência das
Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad).
A
entrevista é interrompida por alguns minutos, quando chega Marisa, a mulher do
diplomata. No apartamento de amplas varandas, a sala é dividida em três
ambientes, com móveis confortáveis e decorada com objetos de arte e recordações
trazidas de outros países. Ele e Marisa moraram em Buenos Aires, Quito, Viena,
Roma, Washington e Genebra. É ela quem prepara o almoço e, enquanto não fica
pronto, oferece suco de tomate, água, castanhas e palitinhos de cenoura. Logo
depois, se acomoda em um dos sofás e conta que os dois se conheceram muito
jovens. Estavam noivos em 1960, quando Brasília foi inaugurada e chegavam os
primeiros moradores. O Itamaraty, como quase todos os órgãos federais, ainda
funcionava no Rio, então capital federal.
Convencer
os servidores públicos federais a deixar a vida de luz, sol e mar para
embrenhar-se naquela terra vermelha e árida, em meio aos redemoinhos de vento e
poeira, era bastante difícil. Os pioneiros voluntários que concordavam em
encarar aquele lugar inóspito eram recompensados. "Recebíamos a
dobradinha", recorda-se Marisa, explicando que esse era o nome dado ao
pagamento do salário em dobro, além de uma gratificação.
Outro
atrativo eram as moradias. Os apartamentos, vendidos quase a preço de banana e
em prestações a perder de vista, tinham três quartos grandes, sala espaçosa.
Eram muito diferentes das habitações apertadas e caras no Rio. E ainda havia um
ponto que faria toda a diferença na carreira de um jovem diplomata. "O
grupo do Itamaraty era muito pequeno. Eu tinha acesso a pessoas com as quais
jamais falaria se estivesse no Rio. Cheguei a despachar com Jango [o presidente
João Goulart] e com Tancredo Neves [primeiro-ministro no curto período
parlamentarista brasileiro]. É claro que gostei. Sentia que estava acompanhando
a história de perto", diz o ex-embaixador. Marisa vai até a cozinha e
volta com o convite: "Já está tudo pronto. Querem almoçar?"
[O terrorismo religioso] é um retrocesso para a civilização que terá um
profundo impacto no comércio e na economia mundiais
Ricupero
está no meio de uma boa história e segue a narrativa. "Você sabe que
conheci o Che Guevara quando ele veio ao Brasil para ser condecorado pelo
presidente Jânio Quadros, em 1961? Fui designado para acompanhá-lo e
conversamos muito. Fiquei surpreso. Imaginava ele uma figura feroz, um homem
belicoso. Afinal, era um líder guerrilheiro. Natural que, em gestos e palavras,
mostrasse estar habituado ao combate. Nada disso. Che era muito suave. Era um
homem que tinha gravidade. Mas muito afável. Vai ver que, por isso, dizia
aquela frase: 'Hay que endurecer, pero sin perder la ternura jamás'."
O
diplomata cita a frase mais famosa do argentino Ernesto Guevara, o Che,
revolucionário que, ao lado de Fidel Castro, derrubou o regime de Fulgencio
Batista, em Cuba, e pavimentou o caminho para a efetivação do longevo regime
comunista.
"Vamos
almoçar?", repete Marisa, dessa vez já encaminhando todos à mesa. Ela
pergunta onde cada um gostaria de sentar-se. "Marisa é a chefe do
cerimonial", brinca o ex-embaixador. "No Itamaraty, normalmente,
marido e mulher nunca ficam um ao lado do outro. Supõe-se que eles já se falam
muito todos os dias. Nas ocasiões sociais é preciso variar." O cerimonial
fica para outra ocasião e nos sentamos da forma mais prática. Entrevistado e
repórter frente à frente.
O
cardápio, a elaboração dos pratos e a escolha do vinho - um branco chileno
Tarapacá - ficaram por conta de Marisa. Ela serve a bebida e a entrada:
"vichyssoise", clássica sopa fria francesa, à base de alho-poró,
batatas, creme de leite e manteiga. "A minha é uma versão light. Pouca
manteiga, pouco creme", esclarece, tranquilizando jornalista e fotógrafa.
Diretor
do curso de relações internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado
(Faap), Ricupero toma a sopa e retoma o assunto do terrorismo, uma de suas
grandes preocupações atuais. Em 2009, há seis anos, escreveu um artigo - quase
profético - com o título "A islamização da agenda internacional". Ele
chamava de "arco de crises" a curva de violência e conflitos que
passava pelo Líbano, a Faixa de Gaza, Israel e Síria, chegando ao centro e
norte da África. Ressalvadas as especificidades próprias de cada um desses conflitos,
ele mostrava no texto que todos tinham em comum o fato de opor ocidentais (os
americanos e seus aliados na Otan) a uma variedade de movimentos e facções
muçulmanas. "Os americanos têm uma responsabilidade grande nisso. Eles
militarizaram o conflito. O Iraque tinha todos os problemas, menos o terror. A
guerra no Afeganistão não terminou até hoje", observa.
Com a
ajuda da empregada, Marisa retira as delicadas tigelas de sopa, de porcelana
comprada em Praga. Alguns minutos depois, serve o prato principal: atum com
alho assado, cebolas caramelizadas e brócolis. "Falei que o restaurante da
Marisa é bem sofisticado, mereceria uma estrela", elogia Ricupero.
"Eu e você vamos dividir um pedaço do atum", afirma ela, servindo o
prato do marido. Ele concorda.
"Marisa
é mais requintada", observa o ex-ministro, educado em uma casa de mãe
napolitana. "Estou acostumado com a comida do sul da Itália. Muito molho de
tomate, berinjela. Ela é do Norte, está acostumada às combinações mais
sofisticadas."
A família
de Marisa é da região de Trento, que só passou definitivamente para o domínio
italiano depois da Primeira Guerra. A culinária local é fortemente influenciada
pela França, Áustria e Hungria, e as receitas mais refinadas, se comparadas às
do sul do país, usam creme de leite, bastante manteiga e bastante condimento.
Da região de origem da família Ricupero vêm os italianos mais expansivos e
comunicativos e os pratos têm influência mediterrânea.
O papo
atravessa o oceano e chega ao Brasil. Ricupero comandou a economia do país em
um dos momentos mais delicados da história recente. No início da década de 90,
então embaixador em Washington, ele era o nome do presidente Itamar Franco
(1930-2011) para conduzir a economia. O mineiro Itamar, que sucedeu Fernando
Collor, afastado da Presidência por um processo de impeachment, gostava das
ideias de Ricupero. Comungava da preocupação que o diplomata manifestava sobre
a inclusão social e o crescimento econômico. Ricupero agradeceu, mas preferiu
ficar no exterior.
Em 1994,
Fernando Henrique Cardoso - que era o ministro da Fazenda - saiu do governo
para disputar a sucessão presidencial. Ricupero não rejeitou o segundo convite.
Itamar o chamava de "sacerdote". Não apenas pela dedicação sacerdotal
que Ricupero dedicou ao Plano Real. O diplomata é - assim como era Itamar -
devoto de Santa Terezinha e um homem de profundas convicções religiosas.
A grande ameaça ao ser humano não é o fundamentalismo islâmico, mas o
aquecimento global. As pessoas não percebem
No
Ministério da Fazenda, conheceu a glória do êxito do Plano Real, mas, também, o
amargor de um deslize que o obrigou a deixar o cargo. Em uma conversa, antes de
começar uma entrevista para a Rede Globo, comentou: "O que é bom a gente
mostra. O que não, a gente esconde". O áudio, como se diz no jargão da TV,
"vazou" na transmissão pela antena parabólica e a frase virou arma da
campanha do petista Luiz Inácio Lula da Silva - àquela altura em desvantagem
nas pesquisas de intenção de voto - contra Fernando Henrique. Poucas horas
depois da transmissão, Ricupero disse a Itamar que não teria mais condições de
ficar no posto.
A
contragosto, o presidente aceitou. "Eu estava cansado, dava muitas
entrevistas. Fiz um comentário. Não sei se foi um momento de vaidade.
Penitencio-me até hoje", justifica o ex-ministro.
Os pratos
já estão limpos. Que melhor elogio pode ser dado a um chef? Marisa também serve
a sobremesa: creme de abacate e frutas. E Ricupero volta a falar sobre a crise
brasileira. Em sua opinião, a presidente Dilma Rousseff deveria renunciar.
Pouparia, assim, o desgaste e os prejuízos econômicos e institucionais que se
abatem sobre o país. E critica, também, aqueles que veem o país submergir, mas
elogiam o bom funcionamento das instituições.
"É
até contraditório dizer que o Brasil está mergulhado em uma profunda crise
política, moral e de corrupção e que tem instituições fortes. Se o Brasil
tivesse instituições fortes, elas teriam impedido que isso ocorresse. As crises
ocorrem nas instituições."
Quase
três horas depois de começar este "À Mesa com o Valor", desabafa:
"Os grandes ciclos econômicos, políticos e sociais da história do Brasil
têm um desdobramento parecido. São ciclos longos. O segundo mandato de Dilma,
para mim, é a agonia da crise final. Só não creio que o desenlace seja militar.
Vamos ter a agonia final desse sistema. Vai acontecer aquela definição que
[Antonio] Gramsci [1891-1937] dava à crise: o velho não acaba de morrer e o
novo não consegue nascer. Nesse interregno, todo tipo de sintoma mórbido sobe à
superfície."
Marisa
avisa que serviu o café na sala de estar. Voltamos ao sofá. Ricupero não está
nada otimista em relação ao futuro. A crise no Brasil, pondera, terá um tempo
curto e um tempo longo. A curto prazo será preciso esperar para saber o que vai
ocorrer com a presidente Dilma. "Temos que ver se ela conseguirá deter
essa deterioração da economia. No momento parece difícil, pouco provável que
esse governo tenha condições de recuperar uma ação mais efetiva. A situação é
mais complexa e difícil do que se diz. Falam que é sobretudo falta de
confiança. Recuperada a confiança, os investimentos retornariam. Se fosse só
confiança, seria uma questão política e econômica, apenas."
No
entanto, em sua opinião, muitos dos problemas do Brasil estão inseridos na
economia mundial. "A análise e a discussão econômica no Brasil são muito
monótonas, dominadas pelos problemas locais e superficiais", critica. A
discussão ignorada no país diz respeito aos rumos da globalização. Teria esse
processo atingindo seu pico e entraria em declínio? "Muitos pensam que o
pico da globalização econômica foi atingido antes da crise. Para alguns é uma
tendência passageira por causa da crise, para outros não."
Nos
Estados Unidos, esse debate conta com vozes como a do ex-secretário do Tesouro
do governo de Bill Clinton e economista Lawrence Summers, que, no ano passado,
relançou o tema da "estagnação secular" - expressão que designa
longos períodos de baixo crescimento mundial.
"Muitos comparam a crise financeira de
2008 à de 1929. A do século passado foi muito pior", diz
As
opiniões estão divididas entre analistas que dão ênfase à perda de influência
relativa da economia americana no contexto global e os que encontram semelhança
no momento atual com as crises de emergentes nos anos 90. Os historiadores
econômicos, por exemplo, já assinalam que essas taxas de crescimento de 3, 4,
5% per capita nos países ricos são fenômenos raríssimos na história da
economia. O normal, diz o ex-embaixador, não é crescer muito, mas crescer
pouco. No passado, porque a própria demografia não aumentava, controlada pelas
epidemias, fomes, recursos limitados. Hoje, a estagnação secular se aplica ao
fato de que os três grandes motores da economia capitalista avançada, Estados
Unidos, a Europa em conjunto e o Japão, estão com muita dificuldade para voltar
a crescer.
"Muitos
comparam a crise financeira de 2008 à de 1929. A do século passado foi muito
pior. Naquela época, o erro foi fechar o crédito. Agora foi o contrário. O ser
humano aprende algumas lições. O que não quer dizer que não haja novos
problemas. O homem é um ser problemático por natureza", observa.
A
Revolução Industrial resolveu o problema da escassez de bens, mas, na opinião
de Ricupero, criou um novo problema: o aquecimento global. "Considero que
a grande ameaça ao ser humano não é o fundamentalismo islâmico, mas o
aquecimento global", avalia. "As pessoas não percebem. A grande
diferença com a ameaça da destruição dos terroristas é que a deles é já, é
imediata, está aí à nossa frente. A do aquecimento vai se concretizar só dentro
de 30 anos. Parece tanto tempo que muitos acreditam que até lá vamos inventar
alguma coisa."
Nem tudo
é desesperança sobre o amanhã. Ricupero vê com entusiasmo o acordo global para
frear as emissões de gases do efeito estufa e para lidar com os impactos da
mudança climática assinado na conferência do clima da ONU (a CoP-21), encerrada
no sábado, em Paris. "Foi muito acima do que eu imaginava. Pela primeira
vez Estados Unidos e China fizeram um movimento expressivo no sentido de
combater as mudanças climáticas", avalia o ministro do Meio Ambiente e da
Amazônia Legal, entre 1993 e 1994. Ele comemora também a positiva sinalização
sobre o fim dos combustíveis fósseis. "Isso põe um grande ponto de
interrogação no pré-sal e deixa claro que se perdeu tempo com a euforia. É provável
que esse petróleo nunca venha a sair do fundo do mar. Não digo que não terá
nenhuma importância. Mas a corrupção na Petrobras, o preço do petróleo cada vez
menor e a mudança de postura nas questões climáticas vão empalidecer o que se
esperava do pré sal."
O
ex-embaixador está escrevendo um livro em que trata do papel que a diplomacia
teve não só em explicar a formação do Brasil e como se tornou independente,
mas, também, como ajudou a plasmar os valores brasileiros e a ideia que o povo
faz de si mesmo.
A conversa
poderia prosseguir o resto da tarde - e já dura mais de três horas. Mas quando
fala da globalização por meio da tecnologia, Ricupero não usa figura de
retórica. A campainha toca: é o professor que o ensina os segredos dos
computadores. A aula tem de começar.
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