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quarta-feira, 13 de setembro de 2023

Sobre a necessidade de História para os diplomatas:-George Kennan

 Uma citação que vale um frontspicio:


George Kennan, sobre a necessidade de História para os diplomatas:

Enviado pelo embaixador Rubens Ricupero: 

“… artigo de Kennan em The Atlantic Monthly (Training for Statesmanship, 191, maio 1953, p.40/43). 

A opinião de Kennan me impressionou por resumir o que também sinto em relação ao estudo da diplomacia e das relações internacionais. Citando o artigo de GFK, Gaddis dizia: 

“The only useful preparation for diplomacy came from history, as well ‘from the more subtle and revealing expressions of man’s nature’ found in art and literature. Students should be reading ‘their Bible and their Shakespeare, their Plutarch and their Gibbon, perhaps even their Latin and their Greek’. These alone would build those qualities of ‘honor, loyalty, generosity [and] consideration for others’ that had been the basis for effectiveness in the Foreign Service”.

A História continua sendo a mãe de todas as ciências: nasceu na Grécia, com Herodoto e sobretudo Tucidides.

terça-feira, 4 de julho de 2023

Tratado de Cooperação Amazônica, que reúne 8 países, completa 45 anos: Rubens Ricupero (Agência Brasil)

Tratado de Cooperação Amazônica, que reúne 8 países, completa 45 anos

JULHO 4, 2023

 

A ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, participou, nesta segunda-feira (3), em Brasília, da celebração dos 45 anos da assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) pelos oito países do bioma amazônico: Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. Pelo tratado, de julho de 1978, os países assumiram o compromisso comum para a preservação do meio ambiente e o uso racional dos recursos naturais da Amazônia.

No evento comemorativo, a ministra Marina Silva adiantou o posicionamento do Brasil que será adotado na Cúpula da Amazônia, a ser realizada em 8 e 9 de agosto deste ano, em Belém. “Queremos fazer uma articulação pensando em outra oferta de cooperação, que considere eixos estratégicos para o desenvolvimento sustentável, tanto nas ações de infraestrutura, quanto nos projetos que sejam capazes de criar sinergia positiva para os nossos países, principalmente, no espaço da cooperação técnico-científica”.

Além de priorizar a preservação do meio ambiente, o Tratado de Cooperação Amazônica tem o objetivo de promover o desenvolvimento dos territórios amazônicos, de maneira que as ações conjuntas gerem resultados equitativos e mutuamente benéficos para alcançar o desenvolvimento sustentável das oito nações.

Alexandra Moreira, secretária-geral da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), entidade intergovernamental que reúne os oito países amazônicos, relembrou os 45 anos de existência do tratado de cooperação. “Um pilar para implementar ações que são demandadas nesta região”.

O embaixador Rubens Ricupero, durante comemoração dos 45 anos da assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica. Foto: José Cruz/ Agência Brasil

O diplomata brasileiro Rubens Ricupero é considerado o principal negociador, pelo Brasil, para assinatura do tratado regional. Aos 86 anos de idade, Ricupero lamentou que a maior parte da destruição da Floresta Amazônica ocorreu, justamente, após da assinatura do acordo, há 45 anos, com a expansão da pecuária, a mineração clandestina e a extração ilegal de madeiras. E defendeu que a Amazônia precisa de pesquisas científicas. “Não sabemos o suficiente sobre a Amazônia”.

O embaixador lembrou que o mercado de carbono no país ainda não está regulamentado. “Estamos muito atrasados. O mercado de carbono é fundamental, é a primeira parte, a alavanca. Tem que ter dinheiro e o pagamento para conservação do serviço que a floresta presta, ter iniciativas econômicas muito além do açaí, que são louváveis, mas não vão ser de grande escala. Esse é o desafio”.

No encontro foi inaugurada a placa onde funciona, desde 2021, a sala de situação de monitoramento em tempo real da Bacia Amazônica, uma cooperação da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica com a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), do Ministério das Relações Exteriores.

A sala de situação analisa as informações enviadas pelas redes compartilhadas de monitoramento dos países amazônicos. Entre os índices avaliados estão o hidrometeorológico, com a quantidade de chuvas e possíveis zonas inundáveis na Amazônia e a qualidade de água, por exemplo, com indicador de contaminação de humanos e peixes, por mercúrio.

A meteorologista e analista de geoprocessamento da sala de situação Ingrid Peixoto disse que a maior preocupação é com o fenômeno climático El Niño, que neste ano poderá aumentar o risco de fogo sem controle na Amazônia. “Nas posições central, sul e leste da região, pode haver uma configuração grave relacionando a seca a incêndios, nesta época de temperaturas altas e baixa umidade. O que funciona como combustível para o aquecimento global”, esclarece a meteorologista.


domingo, 18 de junho de 2023

Os militares na política, sempre eles. Resenha de Fernando Mello Barreto: Os sucessores do Barão, 1964-1985 - Paulo Roberto de Almeida

 O livro não é tanto sobre os militares, mas sobre a diplomacia da era militar, focando das relações exteriores do Brasil, tal como conduzidas pelos chanceleres do período, dois politicos e quatro diplomatas, por sinal. Como a resenha já não está mais disponível em nenhuma das três revistas nas quais foi originalmente publicada, eu a reposto aqui, para acesso amplo: 

1682. “Sucessores bem-sucedidos? Um balanço realista (e completo) da diplomacia na era militar”, Brasília, 4 novembro 2006, 6 p. Resenha de Fernando de Mello Barreto: Os Sucessores do Barão, 2: relações exteriores do Brasil, 1964-1985 (São Paulo: Paz e Terra, 2006, 519 p.; ISBN: 85-7753-004-3). Revista Política Externa (São Paulo: vol. 15, n. 3, dez. 2006-fev 2007, p. 191-196; ISSN: 1518-6660). Versão resumida publicada, sob o título de “Diplomacia durante a ditadura”, na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: ano 3, nº 29, dezembro 2006, p. 63). Plenarium (Brasília: Câmara dos Deputados; ano V, n. 5, maio 2008, p. 310-315; ISSN: 1981-0865). Relação de Publicados n. 728, 729.



Sucessores bem-sucedidos? 

um balanço realista (e completo) da diplomacia na era militar

 

 

Fernando de Mello Barreto: 

Os Sucessores do Barão2: 1964-1985 - relações exteriores do Brasil

(São Paulo: Paz e Terra, 2006, 519 p.; ISBN: 85-7753-004-3)

 

 

A exemplo do primeiro volume desta obra – que cobria, de fato, o período pós-Barão, ainda que de modo lato: Os Sucessores do Barão: relações exteriores do Brasil, 1912-1964 (Paz e Terra, 2001) –, Fernando Mello Barreto oferece, no presente livro, uma história das relações internacionais e da política externa do Brasil, em seu sentido mais amplo, cobrindo tanto os episódios diplomáticos, estrito senso, como o quadro mais abrangente da economia e da política mundiais. A perspectiva é linear, método já adotado no volume precedente: seis chanceleres (dois políticos e quatro de carreira) sucederam-se de 1964 a 1985 à frente do Itamaraty, ou seja, durante o regime autoritário, quando cinco generais do Exército e uma junta militar (au complet) ocuparam o poder no Brasil. 

Da intervenção na República Dominicana à Guerra das Malvinas, da recusa do TNP e do Acordo Nuclear com a Alemanha à “pacificação nuclear” com a Argentina, do apoio ao colonialismo português ao reconhecimento dos novos regimes surgidos depois da “revolução dos cravos”, passando pelos tratados de cooperação com os países vizinhos (Bacia do Prata, Amazônia, Itaipu, entre outros), os principais episódios da diplomacia brasileira são tratados de forma minuciosa, fazendo desta obra uma referência indispensável para o conhecimento e o enquadramento cronológico desses anos cruciais de transformações geopolíticas no plano mundial e de grandes mudanças econômicas no próprio Brasil. Um sintético epílogo retraça as mudanças mais relevantes, na fase recente, em relação ao período militar, como por exemplo a aceitação do TNP e a inserção nos mecanismos de controle de tecnologias sensíveis. 

O prefácio de Rubens Ricupero já levanta uma primeira questão, pertinente, quanto ao título desta obra em três volumes, que vai da morte do Barão até a atualidade (estando seu autor ocupado agora na feitura do terceiro). Compreende-se a designação de “sucessores” para aqueles que ocuparam, na primeira metade do século XX, a chefia da chancelaria brasileira, quando a presença de Rio Branco era uma sombra gigantesca a apequenar a obra dos que lhe seguiram imediatamente. Mas, como atribuir a mesma classificação aos condutores das relações exteriores em meados da segunda metade desse século, quando os problemas regionais e internacionais enfrentados pelo Brasil eram bastante diferentes daqueles que tinham mobilizado a atenção do grande chanceler? Recorda Ricupero, a esse propósito, a frase de um humorista argentino sobre “los venidos a más”, como a sugerir que todos os chanceleres, depois do Barão, terão sido meramente “suplementares”. 

A rigor, os “herdeiros involuntários” enfrentaram problemas similares: as relações sempre delicadas com os vizinhos da América do Sul, a começar pela Argentina; a indiferença das grandes potências em face das pretensões do Brasil no sentido de querer ocupar um espaço mais afirmado na cena internacional (ou seja, a busca de um statuspreeminente na Liga das Nações e, depois e ainda hoje, no CSNU); o acesso a tecnologias sensíveis, geralmente cerceado pelas mesmas potências; o aproveitamento dos recursos energéticos no entorno geográfico; a defesa contra choques adversos vindos do cenário internacional (no plano financeiro, no comercial e no do, então indispensável, petróleo); o alinhamento, enfim, com os pequenos (países em desenvolvimento) ou o “desalinhamento” com os grandes, como opções basicamente políticas, quando não de origem econômica e tecnológica. Esses mesmos problemas ocuparam todos e cada um dos “seguidores” do Barão, em intensidade variável segundo as épocas, com destaque para os formidáveis desequilíbrios e as carências temporárias – nossa tradicional “vulnerabilidade externa” – introduzidos a partir de 1929 e, sobretudo, no decurso da Segunda Guerra Mundial. 

Mas, as condições externas, o ambiente regional, as circunstâncias históricas e, sobretudo, a situação econômica e a política doméstica foram fundamentalmente diferentes, para esses “sucessores” do período militar, do que elas tinham sido para os titulares da chancelaria brasileira na primeira metade do século XX. Estes não cabiam nos “sapatos” do Barão, tão impressionante tinha sido a sua presença à frente do Itamaraty entre 1902 e 1912 – e certamente desde antes, na resolução de várias pendências lindeiras –, mas os segundos, constrangidos pela geopolítica algo maniqueísta do período militar, foram, mais do que sucessores, um conjunto heteróclito de herdeiros distantes do Barão do Rio Branco. A sucessão, se o termo se aplica, se justificaria, provavelmente, pelo que Ricupero chama de “paradigma Rio Branco” – uma agenda institucional fixada pelo próprio Itamaraty, raramente deixada, portanto, ao humor mutável de políticos ignorantes em política internacional – e a notável continuidade que isso implicou para a nossa política externa. De fato, o termo sucessores só se compreende nessa perspectiva, a de uma mesma linha de atuação ao longo do tempo, o que nem sempre foi o caso de nossos vizinhos mais voláteis politicamente e, em conseqüência, mais erráticos em suas respectivas diplomacias. 

Lido o prefácio de Ricupero e a introdução do autor – que ressalta os elementos principais da cronologia econômica e política desses anos –, recomenda-se ao leitor saltar ao epílogo, pois ali se faz uma síntese das diferenças e particularidades daquela época em relação às ulteriores, o que permitirá começar a ler os capítulos vinculados a cada chanceler com uma noção do que é permanente e do que foi diferente no tocante aos problemas enfocados, seja no plano sincrônico, seja em perspectiva diacrônica. Permito-me transcrever dois trechos importantes desse epílogo: “Apresentar balanço da política externa executada pelos Sucessores do Barão durante o regime militar brasileiro constitui tarefa complexa, pois a leitura dos fatos ocorridos no período entre 1964 e 1985 não permite julgamentos categóricos, uma vez que não houve uniformidade nas ações diplomáticas, embora tenham se apresentado algumas características constantes. A falta de uniformidade se evidencia quando se compara, por exemplo, de um lado a prioridade dada ao relacionamento com os Estados Unidos durante o governo Castello Branco (especialmente com Juracy Magalhães) e, de outro, a distância entre Washington e Brasília durante os governos de Geisel e Carter. As diferenças aparecem também no relacionamento com Portugal e territórios de expressão portuguesa, bem como na política com relação ao Oriente Médio que passou de eqüidistância para claro apoio a várias das teses árabes e palestinas” (p. 439). Fernando Mello Barreto chama a atenção, logo em seguida, para a constância do binômio “segurança com desenvolvimento”, que seria o mote do governo militar, manifestada na vertente externa pela defesa acirrada da soberania nacional, embora comprometida esta pelas nossas limitadas possibilidades de mudar, de modo sensível, o sistema internacional. 

A transcrição do penúltimo parágrafo oferece um balanço honesto da diplomacia do período militar: “Apesar dos enormes obstáculos econômicos externos que enfrentou a diplomacia, sobretudo no final do período, a política externa do período militar alcançou os objetivos a que se propôs: o Brasil se manteve distante de conflitos internacionais (não enviou tropas ao Vietnã e sua ação militar se limitou à liderança de forças interamericanas na República Dominicana); aproximou-se de seus vizinhos (inclusive a Argentina no último governo do período); assegurou a cooperação amazônica; ampliou as exportações para além de fronteiras ideológicas; neutralizou as ações argentinas contrárias à construção de Itaipu; manteve o fornecimento de petróleo pelos países árabes e resistiu às pressões americanas contrárias ao acordo nuclear com a Alemanha” (p. 495-6). O autor relembra que algumas dessas posturas seriam revistas posteriormente – como a recusa do TNP, a aceitação do sionismo como uma forma de racismo e a resistência soberanista no tratamento das questões ambiental e dos direitos humanos –, objeto de um terceiro volume da obra, que ele fica nos devendo. 

Feito o balanço sumário e incorporada essa perspectiva abrangente da política externa no período militar, cabe agora ao leitor penetrar na leitura detalhada de cada um dos capítulos, que não são numerados nem datados, levando simplesmente os nomes dos titulares da chancelaria. Vasco Leitão da Cunha, da carreira diplomática, inaugura o período, com uma “nova política externa”, na verdade uma volta ao velho alinhamento diplomático com os EUA, política que se acreditava superada a partir da “política externa independente” de Jânio e Jango. Estávamos em plena Guerra Fria e o problema de Cuba dominou as relações interamericanas durante a maior parte da década. Juracy Magalhães, militar e político, foi o segundo chanceler da presidência Castello Branco, tendo ficado tristemente famoso pela frase segundo a qual “o que [era] bom para os EUA, é bom para o Brasil”, o equivalente, como lembra Ricupero, das “relações carnais” que o governo Menem quis ter com os EUA, de uma fidelidade canina ao chamado Ocidente.

O governo Costa e Silva introduz a “diplomacia da prosperidade”, conduzida pelo político e banqueiro Magalhães Pinto. Ocorre, então, uma volta a padrões autônomos de política externa, que, se não chega a ser tão “independente” quanto à do início da década, pratica o “desalinhamento” da recusa ao TNP e o desenvolvimentismo do início da NOEI, a “nova ordem econômica internacional”, que seria mais tarde enterrada por Reagan e Tatcher. A “nuclearização pacífica” do Brasil, prometida por Magalhães Pinto em abril de 1967, logo se chocaria com a realpolitik dos EUA: o Brasil mantinha a posição oficial de que explosões “pacíficas” poderiam ser empregadas em “grandes obras de engenharia, [para] interligar bacias fluviais, abrir canais e portos, consertar enfim a geografia” (p. 128).

Gibson Barboza, diplomata de carreira, foi o chanceler do presidente Médici, na fase mais dura do regime militar, também a de maior crescimento econômico. A despeito do fechamento do governo no binômio “segurança e desenvolvimento” e da disseminação de regimes militares na América Latina, o Itamaraty, paradoxalmente, nunca foi tão livre para conduzir uma diplomacia essencialmente profissionalizada e extremamente ativa, em quase todos os cenários abertos à sua atuação, entre eles o da África. Os EUA continuavam a se opor à política nuclear do Brasil, mas Nixon, de maneira infeliz, proclamou a liderança brasileira na região, o que certamente prejudicou muito os esforços então empreendidos pelo Itamaraty para a integração física do continente. 

Azeredo da Silveira, outro diplomata de carreira, ocupou a chancelaria sob Geisel, o mais desenvolvimentista dos presidentes e o mais interessado em política externa. Todo o governo foi marcado pelo primeiro choque do petróleo, pelo reconhecimento da China e pela guerra civil angolana, temas que mobilizaram intensamente a diplomacia, colocada sob a égide do “pragmatismo responsável”. Silveira presidiu à expansão do serviço exterior e aproximou-o ainda mais dos países em desenvolvimento, mesmo sob críticas internas de setores da direita. Fernando Mello Barreto caracteriza a política externa regional, nessa época, como de “dificuldades platinas e êxito amazônico” (p. 245), em alusão às disputas com a Argentina sobre o aproveitamento dos recursos hidroelétricos do Paraná e à conclusão do Tratado de Cooperação Amazônica. Persistiram os conflitos com os EUA, sobretudo depois da assinatura do acordo nuclear com a Alemanha (1975) e da cessação, por rompimento brasileiro, do acordo militar com os EUA (1977).

Saraiva Guerreiro, também de carreira, foi o último chanceler da era militar, atuando sob o impacto da segunda crise do petróleo e da crise da dívida externa, mas com certa independência, uma vez que o general Figueiredo não se envolvia muito em temas diplomáticos. A política externa foi então considerada como sendo “universalista”, mas o seu principal feito foi mesmo começar o período concluindo um acordo com a Argentina e o Paraguai em torno da questão de Itaipu (1979). Ainda mais surpreendente, foram assinados acordos de cooperação militar e nuclear com o vizinho platino, bases de todo o processo ulterior de cooperação e de integração. Como demonstra Mello Barreto, durante todo o regime militar o PIB brasileiro faria um progresso espetacular, ao passo que o argentino praticamente estagnou. A seção econômica nesse capítulo é a mais longa do livro et pour cause: nunca o Brasil enfrentou tantos problemas como nos anos 1980, com declínio do PIB e aumento da dívida externa. O fim do regime militar e a transição para a democracia no Brasil coincidiu, no plano mundial, com o início do fim do socialismo enquanto regime alternativo ao capitalismo: novos tempos e novas políticas, de que o autor tratará em seu terceiro volume. 

Ricupero sublinha com razão, em seu prefácio, a “solidez do levantamento cuidadoso do encadeamento dos acontecimentos”, a “linguagem clara, direta e sem obscuridades com que a narrativa articula os fatos e decisões mais importantes”, a “rica documentação que ampara e fundamenta cada etapa da construção da trama expositiva, com farta utilização dos mais expressivos e reveladores trechos de discursos e documentos da época, bem como a exaustiva fundamentação do texto em notas de origem ou elucidativas, as quais chegam, em certos capítulos, a mais de 600”. Não se pode deixar de concordar com ele em que se trata de “trabalho pioneiro sobre período histórico ainda próximo, e por isso mesmo, percebido confusamente como magma de lembranças sem forma definida”. Impossível, tampouco, não concluir com Ricupero: “Será, por muito tempo, creio, a obra insubstituível para encetar o estudo de um dos períodos da história da política exterior do Brasil com implicações mais determinantes para a fase que vivemos hoje”. Um importante instrumento de trabalho para os pesquisadores, o índice remissivo, ausente da maior parte dos livros publicadas no Brasil, completa este volume, que passa a figurar em plano elevado na bibliografia especializada. Que venha logo o terceiro volume!

 

Paulo Roberto de Almeida

[Brasília, 4 novembro 2006]

Revista Política Externa (São Paulo: vol. 15, n. 3, dez. 2006-fev 2007, p. 191-196; ISSN: 1518-6660). Versão resumida publicada, sob o título de “Diplomacia durante a ditadura”, na revista Desafios do Desenvolvimento (Brasília: ano 3, nº 29, dezembro 2006, p. 63). Plenarium (Brasília: Câmara dos Deputados; ano V, n. 5, maio 2008, p. 310-315; ISSN: 1981-0865).





quarta-feira, 19 de abril de 2023

Lula abraça visão da esquerda que vê guerra como desafio à hegemonia dos EUA, diz Ricupero - Marcos de Moura e Souza (Valor)

 Lula abraça visão da esquerda que vê guerra como desafio à hegemonia dos EUA, diz Ricupero

Para ex-embaixador, embora não veja risco de retaliações de parceiros aliados aos EUA, o Brasil se enfraquece ao tentar esse caminho

Por Marcos de Moura e Souza

Valor, 18/04/2023

As declarações recentes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia -- de que os dois têm responsabilidade que precisam parar -- dão vazão a uma interpretação que tem sido feita por partidos e por acadêmicos de esquerda, segundo a qual o que está em curso desde o ano passado é uma espécie de guerra por procuração. 

De um lado, EUA e aliados ocidentais por trás da Ucrânia; de outro, Rússia e China. Um confronto entre a hegemonia americana e seus principais contestadores. É o que, na avaliação do ex-embaixador Rubens Ricupero, parece explicar as posições de Lula, que logo foram rebatidas pela Casa Branca e pela União Europeia. Ricupero diz que não há "justificativa para a invasão e muito menos para colocar em pé de igualdade o agressor e o agredido". Para ele, o Brasil não ganha nada com as palavras do presidente, que coincidem mais com as palavras de Moscou e Pequim do que com as de Washington e Bruxelas. E embora não veja risco de retaliações de parceiros aliados aos EUA, Ricupero avalia que o Brasil se enfraquece ao tentar esse caminho.

Aos 86 anos, Ricupero esteve bastante próximo do ex-chanceler Celso Amorim durante a campanha de Lula em 2022. Apoiou publicamente o petista e diz não se arrepender disso. Mas contesta uma linha que considera ser a do PT puro-sangue nas posições relativas à política externa neste início de terceiro mandato. O resultado é um só, diz ele: "Se você olhar as reações dos últimos dias, Lula está sendo criticado urbi et orbi."

A seguir os principais trechos da entrevista:


Valor: O que a declaração do presidente Lula de que Rússia e Ucrânia têm responsabilidade pela guerra revela sobre a percepção dele em relação à invasão russa e a guerra?

Ricupero: Obviamente é inadequado colocar no mesmo pé o agressor e o agredido. Por que o Lula faz isso? Ele, como muitas outras pessoas, faz isso porque entende que a raiz da guerra é a questão da expansão da Otan até as fronteiras da antiga União Soviética. É um argumento que considera o que seriam os temores da Rússia em relação à entrada da Ucrânia na Otan. Mas ainda que para essas pessoas tenha sido um erro à expansão da Otan -- e para mim não foi um erro -- isso não justifica de forma alguma invasão como a que ocorreu em 24 de fevereiro de 2022. Foi uma invasão premeditada e ilegal. Pela carta das Nações Unidas, só há duas hipóteses em que um país pode recorrer à guerra legalmente pelo direito internacional. Uma é em legítima defesa, o que obviamente não aconteceu; a outra é quando o Conselho de Segurança decide que aquele país é uma ameaça à paz e à segurança mundial. Foi o que aconteceu com Afeganistão em 2001, quando o governo afegão se recusou a pôr fim à proteção que dava a Al-Qaeda e o Conselho de Segurança decidiu que era justificável uma operação contra o Afeganistão. Nesse caso da Ucrânia, não existe nem uma hipótese nem outra. Então não é uma justificativa para a invasão e muito menos para colocar em pé de igualdade o agressor e o agredido.


Valor: Essa percepção que o presidente manifesta é uma percepção partilhada, em particular, por partidos e por acadêmicos mais alinhados com uma visão da esquerda?

Ricupero: Nos Estados Unidos há uma tendência entre alguns acadêmicos da chamada escola realista do poder e o mais eminente deles é o professor da universidade de Chicago John Mearsheimer. Antes da guerra e durante a guerra ele escreveu artigos expondo um ponto de vista que foi um erro a expansão da Otan e que os Estados Unidos não deveriam se envolver nesse conflito. A posição dele não é ideológica. Ele considera que a Ucrânia tem um interesse periférico para a segurança americana e que os Estados Unidos só deveriam reagir a interesses vitais do ponto de vista de segurança. E Mearsheimer não tem nada de esquerda.

Agora, existe uma corrente que eu acho que é mais forte fora dos Estados Unidos e que se percebe no Brasil, por exemplo, que vê a situação como Lula colocou na China. Ele disse que gostaria de ajudar a reequilibrar a geopolítica mundial. O que ele quer dizer com isso? Dentro da visão tradicional da esquerda, que no passado era a visão comunista, é a visão segundo a qual a guerra na Ucrânia é, na verdade, uma guerra por procuração. Que atrás da Ucrânia estão os Estados Unidos e do outro lado, Rússia e China.

É a visão de que a guerra é apenas uma manifestação da luta entre o país hegemônico da ordem mundial atual, os Estados Unidos, contra uma aliança da Rússia com a China com alguns outros apoios que querem contestar essa ordem mundial. Essa é, um pouco, a visão da esquerda.


Valor: É uma visão que, na sua avaliação, influencia as posições de Lula?

Ricupero: Tenho impressão que sim. Durante a visita à China, ele declarou que quer colaborar para equilibrar a geopolítica e isso só pode ser interpretado que, na visão de Lula, a geopolítica está desequilibrada. E o que se pode entender disso é que na visão dele a hegemonia americana é que desequilibra o mundo. E que Lula afirma querer ajudar a reequilibrar.

Os chineses vêm isso de outra maneira. Recentemente, chineses e russos assinaram um falando em amizade sem limites que expôs bem essa ideia de que a China e a Rússia querem construir uma nova ordem mundial diferente da ordem dominada pelos Estados Unidos e pelos seus aliados.


Valor: Uma nova ordem que pretenderia ir contra o quê?

Ricupero: Você pode encarar essa expressão de duas maneiras. Uma maneira mais formal: a ordem mundial é representada pela Carta das Nações Unidas, pelas organizações criadas quando terminou a Segunda Guerra: ONU, o Banco Mundial, FMI e outros. Uma ordem criada pelos vencedores da guerra e a União Soviética estava entre os vencedores, é bom lembrar.

A segunda acepção de ordem mundial é a que eles [russos e chineses] têm em mente: que é a acepção do poder por trás da Carta da ONU, por trás da ONU, por trás do FMI, por trás do Banco Mundial, por trás da Organização Mundial do Comércio. Um poder hegemônico que são os Estados Unidos com seus aliados na Otan e fora da Otan. É esse poder hegemônico que russos e chineses contestam por considerar que é um poder desequilibrado.


Valor: Um reequilíbrio, ou uma nova ordem com mais peso para Rússia e China, seria um caminho para melhores soluções de problemas de ordem global?

Ricupero: Quando se diz que o mundo precisa de uma nova governança -- que é uma frase muito repetida pelo presidente Lula -- significa que a governança atual não está sendo capaz de encaminhar soluções para os grandes problemas. E o primeiro, a meu ver, é o aquecimento global. Nesse caso, a questão é: é possível contar com a China para lidar com o aquecimento global? A China, o único grande país do mundo que está aumentando o consumo de carvão? A China está entre os maiores violadores do acordo de Paris.

Um segundo problema, a pandemia. A China não colaborou nas investigações para se descobrir as origens da pandemia e adotou uma estratégia [lockdowns prolongados e muito restritivos] que ninguém mais seguiu durante a pandemia. Então, também não seria por aí uma nova ordem capitaneada pela China.


Que outro tema importante? Direitos humanos? Aí é como dizem os espanhois: ni hablar.

Ou seja, numa lista de problemas é difícil encontrar algum problema concreto importante em que se poderia dizer que a ordem americana não é boa e que a ordem chinesa seria melhor.

Eu, pessoalmente, também tenho reservas com a ordem americana, mas o que seria uma ordem chinesa seria pior.

Portanto, o que sobra, na minha opinião, é só uma coisa: China e Rússia têm uma visão contrária aos Estados Unidos e eu acho que essa também é uma visão aqui. Quem é de esquerda e que no passado adotou uma posição de combate ao imperialismo americano tende a achar que o imperialismo americano é a fonte de todos os males.

Eu não estou defendendo uma ordem americana. Eu prefiro uma ordem que seja a ordem da Carta das Nações Unidas. E os Estados Unidos têm muita culpa no cartório. Da mesma forma como a Rússia invadiu a Ucrânia sem permissão do Conselho de Segurança, os americanos fizeram o mesmo com o Iraque, em 2003. Também violaram a Carta da ONU. Ainda assim, eu não acho que a ordem chinesa e russa ofereça vantagens em relação à ordem que conhecemos dominada pelos EUA.


Valor: Declarações recentes de Lula -- sobre a guerra, sobre o uso do remimbi no lugar do dólar nas transações com o Brasil e outras -- dão a entender um interesse em colocar o Brasil mais próximo do que seria essa ordem defendida por russos e chineses?

Ricupero: O que o Lula tem dito, ainda que com a intenção de promover a paz, objetivamente o que ele fez -- para usar uma expressão dos antigos comunistas -- foi colocar água para o moinho da Rússia e da China.

Quando o Lula afirma que os Estados Unidos e Europa não falam de paz e, ao contrário, continuam armando a Ucrânia o que significa isso? Se um país é vítima de agressão e você é contra que outros países forneçam armas para vítima, objetivamente você está apoiando o agressor. Qualquer que seja o seu raciocínio, na prática, você está querendo que aquele que está mais vulnerável continue vulnerável. E quase todas as declarações que Lula tem feito até agora vão nessa direção, o que na prática equivale que Ucrânia teria de cruzar os braços .


Valor: O Brasil tem defendido uma espécie de clube da paz, um grupo de países que possam fazer a mediação entre Rússia e Ucrânia. Esse é um caminho?

Ricupero: A ideia não tem fundamento. Dizer que a melhor abordagem para a paz é a de um grupo de contato formado por vários países não é verdade.

Normalmente, o país que faz o papel de mediador tem que ter uma vontade unívoca, na mesma direção. O exemplo mais importante que existe foi a mediação feita pelo presidente Ted Roosevelt em 1905 para colocar fim à guerra entre Rússia e Japão. Os russos estavam perdendo. Roosevelt impôs, de certa forma, a mediação. E conseguiu pôr fim à guerra. A mediação é uma atividade que exige vontade única, um processo de paz é muito complicado. Exige cessar-fogo, exige decisões sobre territórios que foram ocupados e exige discussões sobre quem vai pagar a reparação. No caso da Ucrânia, o país foi destruído e quem é que vai pagar? Então existe uma série de problemas e se você tiver 5, 10 ou 20 países envolvidos nessa mediação serão 20 países com 20 abordagens. Pode-se dizer que todos terão a mesma vontade, que é a paz. Mas, na prática, isso não acontece. Cada país que participa da política internacional tem a sua visão própria. Se você tiver 20 países você complica 20 vezes uma atividade de mediação que já é difícil.


Valor: O que o Brasil pode ganhar com aproximação com ponto de vista de Rússia e China?

Ricupero: Se você traduzir isso como dizem os americanos em "dolars and cents", você não vê muito o que o Brasil pode ganhar. O comércio com a China já é muito florescente. O Brasil tem um saldo de US$ 29 bilhões, eu duvido que os chineses vão fazer alguma coisa para aumentar o saldo brasileiro. E o Brasil também já um grande destinatário de investimentos chineses. Com a Rússia o que a Rússia poderia vender? Fertilizante [que já vende]. E a Rússia também tem interesse em vender para a gente. Minha impressão é que o presidente Lula deve achar, como no primeiro mandato, que ele tem uma vocação para grande política mundial. Houve, por exemplo, aquela tentativa de acordo com o Irã [sobre o desenvolvimento iraniano na área nuclear que causava fortes atritos com potências ocidentais] em 2010. Acho que isso [a forma como ele se manifesta sobre Rússia e Ucrânia] está um pouco naquela linha.


Valor: E o que o Brasil pode perder com posições que se assemelham com a da Rússia e da China?

Ricupero: Não vejo que o Brasil vá sofrer qualquer tipo de retaliação, mas o país perde prestígio. O Brasil não tem hard power, não tem bomba atômica, não tem grande Exército. E se uma visão da parte do mundo, que é a parte que tem mais influência na formação da opinião pública, se essa parte do mundo passa a ver o Brasil como parcial, a favor da China e da Rússia, eu acho que o Brasil se enfraquece.


Valor: Esses posicionamentos de Lula indicam que a diplomacia brasileira caminha para um rumo distinto do rumo de sua tradição?

Ricupero: Eu apoiei o Lula desde o primeiro turno. Apoiei não uma pessoa nem um partido, mas uma ideia de frente ampla das forças democráticas para ganhar a eleição e para governar. Essa era a minha ideia. Não me arrependo do meu voto. E faria o mesmo outra vez. Mas eu acho que o atual governo não é uma ampla frente de forças democráticas, embora seja uma coalisão de partidos diferentes. E na área de política externa, eu acho que é PT puro-sangue. O PT critica o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, mas não critica a política externa porque é a política na linha do PT. Não que não seja legítimo do ponto de vista do partido. A questão é que o governo não ouve outras linhas. Se você olhar as reações dos últimos dias, Lula está sendo criticado urbi et orbi. Interna e externamente.

Um comentário adicional. O que, de fato, mudou na política externa brasileira e para melhor é a ênfase no meio ambiente. No governo anterior de Lula, nem ele nem a Dilma eram ambientalistas. Nem Celso Amorim. Agora esse tema se é impôs. Se o Lula transformasse a questão ambiental na base principal da ação externa eu acho que ele ganharia muito prestígio, quem sabe até um Nobel. Mas, curiosamente, embora ele tenha mudado discurso, eu acho que ele não internalizou isso porque ele não dá ao meio ambiente a ênfase que ele está dando à Ucrânia.

E para o mundo, o Brasil não é visto como um potencial mediador da Ucrânia. É visto como o dono da Amazônia. E se o governo tivesse uma atitude mais proativa em relação ao meio ambiente, sua política externa seria de muito mais de êxito.


quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Entrevista com Rubens Ricupero: "Lula sempre soube usar a política externa para obter prestígio" (Terra Notícias)

 "Lula sempre soube usar a política externa para obter prestígio"


Terra Notícias, 5 jan 2023

Ex-embaixador e ex-ministro Rubens Ricupero afirma que meio ambiente deverá ser principal trunfo do novo governo no cenário internacional. Postura em relação a regimes autoritários é ponto fraco do petista, diz.Após um cenário de isolamento internacional do Brasil sob Jair Bolsonaro, as expectativas no exterior em relação ao novo governo Luiz Inácio Lula da Silva são grandes. Logo após a posse do presidente, líderes de vários países manifestaram o desejo de fortalecer parcerias com o Brasil, com destaque para o meio ambiente. A esperança depositada no petista em relação à proteção da Amazônia e do clima já havia ficado clara antes mesmo de ele assumir o poder, durante a COP27.

"Com sua ida à COP27, junto com a [atual ministra do Meio Ambiente] Marina Silva, ele sinalizou que o meio ambiente ia ser o principal trunfo do governo dele. O meio ambiente vai representar 80% ou mais do conteúdo da política externa", aposta o ex-embaixador e ex-ministro Rubens Ricupero em entrevista à DW.

Já nos primeiros dias de seu novo governo, Lula anunciou o destino de suas primeiras viagens internacionais: Argentina, no fim de janeiro, e depois Estados Unidos, Portugal e China.

"Lula sempre utilizou, e muito bem, a política externa como instrumento para, também, aumentar seu prestígio dentro do Brasil. Diferentemente de Bolsonaro, Lula se interessa pelas negociações internacionais, ele tem um prazer grande em participar disso", comenta Ricupero, que foi representante do Brasil junto aos órgãos da Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra (1987-1991) e embaixador nos Estados Unidos (1991-1993).

Para o diplomata e ex-ministro do Meio Ambiente e da Amazônia Legal e da Fazenda, o acordo de livre comércio entre a União Europeia (UE) e o Mercosul e uma possível adesão do Brasil à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) deverão ser encarados com reserva pelo novo governo brasileiro.

Na opinião de Ricupero, o ponto fraco de Lula é sua postura em relação a regimes autoritários como Nicarágua e Venezuela. "A esquerda latino-americana tem dificuldade de evoluir nesse campo. Você tem na América do Sul uma esquerda ainda muito ligada ao anti-americanismo", afirma o diplomata, atual presidente honorário do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial e diretor da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap).

DW Brasil: Bolsonaro saiu do país antes da posse de Lula. Como o senhor avalia esse acontecimento?
Rubens Ricupero: Creio que nunca houve na história do Brasil um caso parecido. Talvez só se pareça com o fim do governo militar. O último presidente militar, o general João Figueiredo, não quis passar a faixa, pois considerava o José Sarney um traidor. É um episódio parecido, até mesmo em relação aos personagens, com a recusa de reconhecer a vitória do outro.

No caso do Bolsonaro, é ainda mais grave, pois ele deixou o país. E antes de viajar, nas últimas semanas, havia uma espécie de vácuo, um vazio. Bolsonaro tinha desaparecido, como se não existisse mais. A impressão que as pessoas tinham era de que o novo governo já estava governando, mesmo sem os instrumentos de poder.

Mas, desde o início, Bolsonaro nunca se comportou pelos padrões normais, com a sua falta de cortesia. Assim, a saída dele não surpreendeu. Ele se comportou como é. E o modelo dele é o Donald Trump, e até o fim ele teve uma atitude parecida à do Trump. Só que aqui ele não conseguiu produzir um movimento violento como o da invasão do Capitólio. Pois aqui tinha as ações do [ministro do Supremo Tribunal Federal] Alexandre de Moraes, que também atuou de forma pouco comum, com um ativismo muito forte.

Assim, é um fim muito melancólico esse do governo Bolsonaro.

Logo depois da sua eleição, Lula viajou à COP27. A questão ambiental será importante no governo dele?
Com sua ida, junto com a Marina Silva, ele sinalizou que o meio ambiente ia ser o principal trunfo do governo dele. É um tema dos sonhos, pois ele pode ter ganhos e dividendos muito grandes de imediato, antes mesmo de fazer alguma coisa. E o custo para ele é muito baixo, pois é só aplicar a lei.

O meio ambiente vai representar 80% ou mais do conteúdo da política externa do governo Lula. Nenhuma outra iniciativa pode chegar perto do meio ambiente na caraterística de produzir grandes benefícios, grandes dividendos quase que automaticamente. Basta ele fazer o que fez quando era presidente.

A diplomacia é um ponto forte de Lula?
Lula sempre utilizou, e muito bem, a política externa como instrumento para, também, aumentar seu prestígio dentro do Brasil. A popularidade que ele tinha no exterior, o fato de que ele foi festejado por causa da sua biografia, ele utilizou de forma inteligente, para ganhar prestígio. Nisso ele é muito diferente do Bolsonaro, que nunca deu atenção à política externa e teve uma política de isolamento.

Lula, diferentemente, se interessa pelas negociações internacionais, ele tem um prazer grande em participar disso. E ele não se intimida pelo fato de não falar línguas. Pois em sua carreira como líder sindical ele estava acostumado a lidar com pessoas ricas e poderosas. Claro, um líder sindical que se amedronta diante dos poderosos não tem futuro. Ele sabe que ele é bom nisso, e tem uma autoconfiança muito grande. E é muito sensível nas questões diplomáticas, tem muita intuição.

Governos na Europa, principalmente os social-democratas como o da Alemanha, querem trabalhar com Lula. Isso é uma grande vantagem…

Para Lula, os interlocutores naturais são os social-democratas. Como candidato, fez uma viagem à Europa um ano atrás, e foi recebido por esses social-democratas. Ele sabe que tem afinidade com eles.

E ele tem sorte de ter sido eleito numa época com Joe Biden como presidente dos Estados Unidos. Em termos americanos, Biden é quem mais se aproxima de ser um social-democrata. É um contexto mais favorável do que se ele tivesse sido eleito numa época como a do Donald Trump. Ele vai aproveitar isso, vai usar muito essa cartada.

Mas vejo também uma outra coisa: o acordo de livre comércio [do Mercosul] com a União Europeia e a ideia de o Brasil se tornar membro da OCDE serão encarados com mais reserva pelo novo governo brasileiro.

Pois o PT está mais à esquerda que a social-democracia europeia. Aqui ainda há mais resistência a uma ideologia totalmente liberal ou neoliberal como a da OCDE.

E no caso do acordo UE-Mercosul: como o governo do PT vai tentar, de novo, dar força à indústria, eles encarem esse acordo com certa reserva. Pois, na minha opinião, o acordo é muito desequilibrado, favorecendo muito a indústria europeia, e concede muito pouco em termos de agricultura aos países do Mercosul. Se eu estivesse no governo, também reabriria esse acordo. E o Celso Amorim [ex-ministro das Relações Exteriores de Lula]) já declarou isso várias vezes. Então, nessa área deve haver dificuldades.

E a postura frente a regimes autoritários na América Latina, como Nicarágua e Venezuela? Isso não vai atrapalhar?
É o ponto fraco de Lula. Tenho a impressão de que isso, no caso do PT, representa mais uma herança simbólica e histórica e não propriamente uma prática. Pois o PT sempre aceitou o jogo democrático. Não é um partido de vocação ditatorial como em Cuba, Nicarágua e Venezuela. Mas a esquerda latino-americana tem dificuldade de evoluir nesse campo.

Você tem na América do Sul uma esquerda ainda muito ligada ao anti-americanismo. Eles têm dificuldade de condenar a Rússia, porque tendem a ver o conflito [na Ucrânia] em termos ainda da presença norte-americana. Mas tem exceções:Gabriel Boric, no Chile, é de uma esquerda mais evoluída. Ele condenou a invasão da Ucrânia pela Rússia.

Mas o PT é mais atrasado, Lula vai ter dificuldade nessa área. Já durante o antigo governo dele, ele tomou decisões favoráveis a esses países, como as obras da Odebrecht em Cuba. Naquela época já foi um desgaste para ele. Mas agora o Brasil mudou, há uma presença de uma direita muito mais forte do que naquele momento. Por isso, ele precisa tomar cuidado nessa área.

Como será a relação com a China? Hoje, a China cresce muito menos que 20 anos atrás…
Pois é. Eu acho que o grande desafio do Lula é o desafio de toda pessoa que volta ao governo depois de ter tido êxito e de ter saído durante muito tempo. Ele está voltando ao poder 12 anos depois de deixá-lo. Em 2010, o mundo e o Brasil eram muito diferentes. Basta ver o caso da China.

O êxito de Lula no primeiro governo dele foi a sorte de ser presidente durante o boom das commodities. A alta dos preços das commodities coincidiu com os dois governos dele. Em 2009, no penúltimo ano de mandato dele, a China se tornou o maior parceiro comercial do Brasil. Então, ele capturou aquele período em que a cada ano os preços subiam mais. E foram os anos do descobrimento do pré-sal. Os três principais produtos que o Brasil exporta para a China são soja em grão, minério de ferro e petróleo bruto.

Mas agora já não tem aquele dinamismo de antes. Mas vai haver prioridade para a China, procurando consertar o estrago feiro pelo governo Bolsonaro, que foi muito hostil em relação à China, com ofensas pessoais do filho do presidente. Lula consertará isso, mas não terá mais aquela centralidade. Pois esse período passou.

Lula vai pleitear um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU para o Brasil?
Ele vai querer colocar esse tema em pauta. Mas as grandes potências não têm interesse. A China não tem interesse nisso, pois sabe que o alargamento do Conselho de Segurança significaria, no mínimo, o ingresso do Japão e da Índia. Os americanos de vez em quando dizem que são favoráveis a essa reforma, mas na prática tampouco se interessam.

Além disso, a respeito da guerra na Ucrânia, Lula vai continuar mais ou menos com a linha de Bolsonaro. Em uma votação recente no Conselho de Segurança, do qual o Brasil temporariamente faz parte, o Brasil se absteve. E isso não ajuda. Acho que o Brasil deveria claramente condenar a agressão russa. A atual posição cria dificuldades para o PT. Eu gostaria de uma política externa menos voltada a esse ranço e essa herança esquerdista, que seguramente vai marcar alguns aspectos deste governo.

E como será a importância dos Brics, dos quais o Brasil faz parte?
Os BRICS sempre ficaram frustrados no sentido de que eles não conseguiram definir uma plataforma comum para a reforma da governança do mundo. Eu não acredito que estes Brics tenham um grande papel no futuro. De todos esses grupos que foram criados, o único que me parece ter potencial é o G20. Pois reúne tanto as economias mais avançadas, o G7, como as principais economias emergentes, indo além dos Brics. O potencial dos Brics, portanto, é limitado.


quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Delgado de Carvalho e a historiografia diplomática brasileira - Paulo Roberto de Almeida

Uma publicação antiga, de um livro reeditado pelo Senado e provávelente disponível em formato digital:

230. “Em busca da simplicidade e da clareza perdidas: Delgado de Carvalho e a historiografia diplomática brasileira”, in Carlos Delgado de Carvalho (1884-1980), História Diplomática do Brasil (edição facsimilar: Brasília: Senado Federal, 1998; Coleção Memória brasileira n. 13, lxx + 420 p.), p. xv-l. Divulgado, junto com a apresentação de 1989, pelo embaixador Rubens Ricupero, “Uma reedição tardia, mas ainda oportuna” (p. iii-xiv), na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/88402521/Delgado_de_Carvalho_e_a_historiografia_diplomatica_brasileira_1997_). Relação de Trabalhos nº 600.


Em busca da simplicidade e da clareza perdidas:

Delgado de Carvalho e a historiografia diplomática brasileira

 

Paulo Roberto de Almeida 

Doutor em Ciências Sociais. Diplomata.

Introdução ao livro Carlos Delgado de Carvalho (1884-1980), História Diplomática do Brasil (edição facsimilar: Brasília: Senado Federal, 1998; Coleção Memória brasileira n. 13, lxx, 420 p.), p. xv-l; seguida da apresentação preparada em 1989, pelo embaixador Rubens Ricupero, “Uma reedição tardia, mas ainda oportuna” (p. iii-xiv). Relação de Trabalhos nº 600. 

 

A reedição fac-similar deste livro de Carlos Delgado de Carvalho, História Diplomática do Brasil, vem responder a uma necessidade bibliográfica tanto quanto atender a uma antiga aspiração de profissionais da diplomacia brasileira. Com efeito, quase dez anos atrás, o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, do Itamaraty, projetava relançá-lo em edição igualmente fac-similar, empreendimento certamente bem-vindo já naquela época, mas que não logrou então concretizar-se em virtude das prosaicas dificuldades de financiamento que soem atormentar, de forma recorrente, as instituições que vivem de recursos públicos.

A empresa foi agora viabilizada graças à feliz iniciativa dos organizadores da coleção “Memória Brasileira” do Senado Federal, em especial nas pessoas de seu coordenador institucional, Senador Lúcio Alcântara, e de seu principal animador, Professor Estevão C. de Rezende Martins, que atendeu prontamente minha sugestão de incluí-lo nesta já prestigiosa coletânea de obras importantes sobre temas brasileiros. Ela vem preencher não apenas uma lacuna propriamente inexplicável em termos editoriais, como também um vácuo didático há muito tempo sentido entre os estudiosos da política externa e das relações internacionais do Brasil em geral e entre os jovens diplomatas em particular. 

Obra de reconhecidos méritos metodológicos e substantivos, como já amplamente sublinhado no texto precedente do embaixador Rubens Ricupero, sua edição num circuito não comercial também se beneficia intelectualmente da publicação, tão oportuna quanto tardia, parafraseando seu próprio título, da Apresentação que esse notável diplomata e professor da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco havia preparado, em 1989, quando da tentativa anterior de republicação pelo IPRI.

(...)

Sumário: 

AC-DC: Calógeras como marco historiográfico

Hélio Vianna e a visão oficial da política externa

O homem Delgado de Carvalho: um gentleman cartesiano

A obra “diplomática” de Delgado: modesta, original e completa

Características analíticas e metodológicas

Limites e virtudes da história fatual

Um modelo ainda válido

A reorientação dos estudos de relações internacionais

Cervo e Bueno: o ideal desenvolvimentista

José Honório Rodrigues: a recuperação da história diplomática

Rubens Ricupero e a perspectiva diplomática brasileira

(...)

ApresentaçãoEmbaixador Rubens Ricupero



Texto integral disponível na plataforma Academia.edu (link: 

https://www.academia.edu/88402521/Delgado_de_Carvalho_e_a_historiografia_diplomatica_brasileira_1997_


segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Eleições 2022: O dever dos neutros 2 - Rubens Ricupero (FSP)

Não li o primeiro "O Dever dos Neutros", mas vou procurar, para colocar nesta mesma postagem. 

O dever dos neutros 2

Escolha agora é entre a esperança ou o agravamento da barbárie

Rubens Ricupero

Diplomata, é ex-embaixador do Brasil em Washington (1991-1993) e Roma (1995) e ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda (1993-1994 e 1994, governo Itamar Franco); titular da Cátedra José Bonifácio, da USP

Entre justiça e injustiça, não se pode ser neutro. Com termos semelhantes a esses, que evocavam a posição de Rui Barbosa na Primeira Guerra Mundial, escrevi artigo publicado nesta Folha pouco antes do segundo turno de 2018 ("O dever dos neutros", 11/10/18).

Encontro-me na mesma posição, com a diferença de escrever antes do primeiro turno. Na época, afirmei que não podia ser neutro entre valores e contravalores, democracia e autoritarismo, meio ambiente e devastação. Tudo o que temia se revelou mil vezes pior. À luz da experiência dos horrores destes quatro anos, nem eu, nem ninguém, tem o direito de não escolher entre a esperança de um governo que salve o pouco que sobrou dos ideais da Constituição de 1988 e a continuação e o agravamento da barbárie que estamos sofrendo.

O princípio de uma terceira via não está em jogo porque ela não existe mais. Existiu antes e se chamou Marina Silva, mas foi triturada pelo moinho dos marqueteiros. Em 2018, ainda se podia ignorar que Jair Bolsonaro encarnaria a mais grave contestação ao sistema eleitoral democrático. Agora não, depois da repetição infinita da ameaça do presidente de não reconhecer nem o resultado do primeiro turno. A prudência aconselha evitar condições propícias à contestação. Quanto mais cedo e mais decisiva for a vitória da democracia, menos espaço haverá para seus inimigos.

Já inquieta a transição demasiada longa para a transmissão do poder. Não é mais a loucura da República Velha, que elegia o presidente em março para empossá-lo em 15 de novembro. A espera atual continua longa demais. Favorece os conspiradores, como se viu na eleição de Juscelino Kubitschek em 1955, a primeira em que votei. Quem garantiu então o respeito ao resultado foi um general legalista no Ministério da Guerra. Não preciso dizer que hoje não se pode contar com a mesma situação.

Votar, porém, não basta. Ao escolher a chapa Lula-Alckmin, é preciso deixar claro que votamos em favor de aliança suprapartidária em favor da democracia, não para consagrar a volta de um partido ou de políticas envelhecidas. Ao se aliar ao ex-governador paulista, Lula reconheceu que sozinho nem ele nem seu partido tem força para ganhar, ou no caso de vitória, para governar.

No Brasil atual, nenhum partido, nenhuma posição pura de esquerda e direita, goza de hegemonia. O que existe é maioria em favor de temas cruciais: democracia, Estado de Direito, Constituição de 1988, combate à fome, à pobreza, à desigualdade, ao desemprego, ao racismo e ao machismo; proteção aos indígenas, promoção do acesso de todos à educação, à saúde, à cultura e à ciência; crescimento sustentável com redistribuição e responsabilidade fiscal.

Deve servir-nos de alerta o exemplo da monarquia, em que todos eram contra a escravidão, mas não chegavam a acordo sobre quando e como aboli-la. O consenso sobre os fins é sempre mais fácil que sobre os meios. O futuro governo terá de empreender a árdua tarefa de reconstruir sobre a terra arrasada. Terá de governar num mundo e país que não são mais os mesmos de 2003.

Contará com a oposição de algo antes inexistente: uma extrema direita aguerridaarmada e com apoio em influentes setores sociais. Terá, por exemplo, de enfrentar na Amazônia a resistência do lobby ruralista, de grileiros, garimpeiros, madeireiros ilegais. Precisará negociar com o Congresso novo pacto orçamentário que elimine as emendas secretas e sem racionalidade. Não poderá adiar novamente uma reforma tributária que abra caminho à redistribuição da excessiva concentração de renda no topo. Tampouco atingirá tal objetivo sem reforma profunda do sistema político, partidário e eleitoral.

Nada disso será possível sem ampla aliança que supere o sectarismo partidário ou ideológico. O governo não poderá se dar ao luxo de desperdiçar nenhuma colaboração no esforço paciente de construir consenso sobre meios, prioridades e prazos. Depois de quatro anos de demolição, é preciso abertura de espírito para acolher todos os que se disponham a trabalhar na reconstrução do Brasil.

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. 


domingo, 25 de setembro de 2022

Eleições 2022: entre o crime e a Justiça, não se pode ser neutro - Rubens Ricupero (FSP)

 O embaixador Ricupero se pronuncia claramente em favor da defesa dos valores democráticos e da reconstrução do país em seus fundamentos políticos e econômicos, inclusive partidarios, a partir das eleições do próximo domingo. Mas ele começa citando Rui Barbosa, que se referia ao caso da Bélgica neutra invadida pelas tropas bárbaras do Império alemão na Grande Guerra de 1914-18, a caminho de atacar a França republicana. Isso nos leva diretamente ao caso da bárbara invasão de Putin contra a Ucrânia: não se pode ser neutro entre o crime e o Direito Internacional. 



quarta-feira, 7 de setembro de 2022

O terceiro centenário começa agora - Marcos Magalhães, sobre palestra de Ricupero na ABL

 Um belo texto de Marcos Magalhães sobre a palestra do embaixador Ricupero na ABL.

O terceiro centenário começa agora

Marcos Magalhães

Jornal Metrópoles, 6/09/2022

 

Pouca gente circulava nas ruas do centro do Rio de Janeiro no fim da tarde da última sexta-feira, como costuma acontecer desde a pandemia. Mas uma pequena multidão disputava as últimas cadeiras disponíveis em um auditório da Academia Brasileira de Letras para assistir a uma palestra do embaixador Rubens Ricupero.

Ex-ministro da Fazenda, do Meio Ambiente e da Amazônia na década de 90, ele foi escalado pela academia para falar sobre o “Brasil em um mundo de acelerada transformação”, dentro do ciclo de debates sobre o bicentenário do país.

Aos 85 anos, ele lançou duas perguntas à audiência. A primeira, mais histórica: o que se fez na diplomacia nos últimos 200 anos? A segunda, prospectiva: o que se pode fazer ao longo dos próximos 100 anos?

As duas perguntas indicam uma terceira, que deveria estar no centro dos debates quando o país chega aos dois séculos de independência: qual é o lugar do Brasil no mundo neste começo do século 21?

Para Ricupero, poucos países devem tanto à diplomacia como o Brasil, que hoje tem um território dois terços superior ao que teria inicialmente e que vive em paz há 152 anos com todos os seus vizinhos.

Coube ao Barão do Rio Branco no início do século 20, como recordou o embaixador, tecer a estratégia de política externa adotada como bússola por décadas à frente. A postura do Brasil, segundo o antigo chanceler, era a de um país “amante da paz, conciliador e avesso à loucura das hegemonias”.

O otimismo do Barão o levou, durante discurso em 1905, a prever que o Brasil estaria entre as maiores nações da América Latina que, a seu ver, alcançariam em 50 anos condições de se colocar, juntamente com os Estados Unidos, entre as mais poderosas do mundo.

Não chegamos nem perto disso. E, neste início de século, o Brasil bicentenário está diante de um mundo tomado por múltiplas crises. Depois da crise financeira de 2008, recordou o embaixador, ocorreram o “retorno com força” da extrema direita, a ameaça de uma nova guerra fria, desta vez entre Estados Unidos e China, e a invasão da Ucrânia.

Como se isso não bastasse, o mundo sofre com catástrofes naturais “com digital humana”, como a pandemia e o aquecimento global. Ameaças contra as quais de nada vale o poder militar e econômico e que exigem cooperação em tempo de renovadas rivalidades geopolíticas.

É diante desse cenário cheio de desafios que se coloca a segunda pergunta: o que fazer nos próximos 100 anos? Ou, em outras palavras, como o Brasil quer se colocar no mundo?

As reflexões bem que poderiam ter lugar de destaque nas campanhas eleitorais desse ano do bicentenário. Mas cedem espaço, em momento de radicalização política, à discussão de medidas econômicas de curto alcance e a novos episódios das guerras culturais.

O próprio 7 de setembro foi raptado pela disputa eleitoral. A data nacional passou a ser vista como o momento máximo de mobilização promovida pelo atual governo em busca de reeleição. Uma celebração partidária, longe de uma data a ser pacificamente celebrada por toda a nação.

Longe dos comícios, Ricupero ensaiou, em sua palestra na Academia Brasileira de Letras, possível resposta aos atuais desafios internacionais. Se não é possível atender às expectativas de 1905 do Barão do Rio Branco, observou, o país pode buscar um caminho alternativo.

“Outro estilo de ser potência é possível, que não militar ou econômica”, disse Ricupero. “Uma potência ambiental, de direitos humanos, de promoção de igualdade racial e social, solidária a fracos e a vulneráveis”.

Para sair em defesa desses valores, recordou o embaixador, será necessário que os coloquemos em prática aqui mesmo, até mesmo para que venhamos a conquistar a autoridade necessária a essa postura diante do resto do mundo.

Ou seja, a adoção de uma nova agenda interna – baseada na defesa do meio ambiente, na redução das desigualdades e do combate ao racismo e a outras discriminações – seria a base necessária para a construção de uma renovada agenda externa.

O protagonismo baseado no exemplo já ocorreu em passado recente. A partir de uma bem-sucedida política em defesa da Amazônia, o Brasil passou a ser visto pelo resto do mundo como parceiro necessário nos principais foros de debates sobre a questão ambiental.

A aceleração do desmatamento nos últimos três anos, acoplada à perplexidade na comunidade internacional diante da percepção de risco de uma possível ruptura institucional, retirou do país muito do protagonismo exercido nas últimas décadas.

Se o Brasil pretende reconquistar apoio e simpatia internacionais, precisará primeiramente mudar a sua agenda interna. E essa mudança só poderá ser promovida pelo governo a ser eleito em outubro.

O ano de 2023 será o primeiro ano do terceiro século do Brasil como país independente. Se o bicentenário pegou o país no contrapé, dividido e radicalizado, será sempre possível corrigir o rumo. A adoção de uma nova agenda social e ambiental, como defendeu Ricupero, pode bem ser o início desse novo momento da nossa história.

 

Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.