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terça-feira, 4 de junho de 2019

Samuel Pinheiro Guimaraes: ‘Ernesto Araújo é ridículo’ - Entrevista The Intercept

Transcrevo a grande entrevista de Samuel Pinheiro Guimarães, neste link do The Intercepthttps://theintercept.com/2019/06/02/samuel-pinheiro-entrevista/

O site remete à minha postagem de 2018, por ocasião do convite que eu formulei ao SPG para que ele falasse no quadro da série "Percursos Diplomáticos", uma vez que ele não se encontrava na lista original dos convites. Fiz questão de convidá-lo, como grande formulador que foi da política externa do que eu já chamei de lulopetismo diplomático, ainda que discordando de muitas das posições assumidas durante o governo Lula, pelo chanceler Celso Amorim, pelo assessor presidencial Marco Aurélio Garcia e pelo próprio Samuel, enquanto secretário geral do Itamaraty.
A postagem é esta aqui: 
https://diplomatizzando.blogspot.com/2018/08/percursos-diplomaticos-samuel-pinheiro_24.html
Divirtam-se...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 de junho de 2019


Entrevista: ‘Ernesto Araújo é ridículo’, diz número dois do Itamaraty no governo Lula

O chanceler Ernesto Araújo é “ridículo” e “um louco”. O governo Jair Bolsonaro não deve passar de julho e uma eventual presidência de Hamilton Mourão não deve causar receios de uma nova ditadura militar. É assim que o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães Neto, ex-secretário-geral do Itamaraty durante o governo Lula, avalia o atual cenário político brasileiro.
Pode causar surpresa que um embaixador renomado, com profundas ligações com o PT – Guimarães foi o número dois do Itamaraty no governo Lula, entre 2003 e 2009, abaixo apenas do então chanceler Celso Amorim – relativize a ascensão de um militar à presidência. Mas Guimarães, aos 79 anos, faz a avaliação com tranquilidade: “[Os militares] passaram 30 anos tentando limpar os aspectos negativos da ditadura para eles”, ele nos disse.
Guimarães trabalhou no Itamaraty de 1963 a 2009 e depois foi professor de política internacional e política externa do Instituto Rio Branco, a escola de formação dos diplomatas brasileiros, até 2016. Muito ligado ao PT – mas respeitado por colegas como Paulo Roberto de Almeida, crítico feroz do que chama de “lulo-petismo” –, ele defendeu, ao longo de quase duas horas de conversa, as bandeiras da política externa do governo Lula, inclusive o alinhamento com o chavismo na Venezuela.
“Jeffrey Sachs, economista americano, um comunista conhecido, calculou que 40 mil pessoas morreram na Venezuela por causa das sanções americanas”, disse, irônico – Sachs é conhecido por ter introduzido o plano econômico capitalista em países soviéticos. “Isso foi causado pelo governo do Maduro?”
O que um contínuo vai fazer no country club do Rio de Janeiro? Talvez ser garçom. A OCDE é um clube de ricos.
Guimarães, que costuma pontuar suas afirmações elevando a voz e repetindo os argumentos que acabou de tecer, direcionou suas principais farpas contra Bolsonaro. A tentativa brasileira de intervir na crise política venezuelana, para ele, é “um erro enorme”, e os comentários do ex-militar sobre uma eventual volta de Cristina Kirchner à presidência da Argentina, “um absurdo”.
“Não se dá palpite [em assuntos internos de outras nações], cada país tem sua evolução histórica, suas características, sua autonomia”, ele argumentou. Para Guimarães, Bolsonaro se esquece de que o Brasil é um país subdesenvolvido ao negociar a entrada na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE. “O que um contínuo vai fazer no country club do Rio de Janeiro? Talvez ser garçom. A OCDE é um clube de ricos”, falou. Ao comparar o sistema internacional a um avião, ele disse que o Brasil não tem sequer assento na classe econômica. “Está no compartimento de bagagens.”
Guimarães nos recebeu em seu escritório, uma sala acanhada num prédio comercial simples da Asa Norte de Brasília, a poucos minutos do prédio em que mora – que também já foi endereço, na cidade, de Bolsonaro e Mourão. Leia os principais trechos da conversa.

Sob Ernesto Araújo, o Itamaraty tem “uma visão simplista, ingênua, equivocada” sobre a geopolítica internacional, diz Pinheiro Guimarães. 
Foto: Mariana Alves/The Intercept Brasil

Intercept – Em março, em Washington, o presidente Jair Bolsonaro anunciou que o Brasil passaria a abrir mão do Tratamento Especial Diferenciado, o TED, na Organização Mundial do Comércio em troca de uma indicação para a OCDE. O que significa para o país abrir mão do TED?
Samuel Pinheiro Guimarães – O Tratamento Especial Diferenciado é uma reivindicação histórica dos países subdesenvolvidos. Parte do princípio de que existem países desenvolvidos e países subdesenvolvidos. Vocês já foram ao aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro? Já viram como é ali perto? Já foram ao aeroporto de Zurique? É diferente, né? Aqui é um país subdesenvolvido. Já os desenvolvidos querem extrair o máximo possível das relações de troca. O Brasil se transformou em um país totalmente exportador de produtos primários e importador de manufaturados. Quem é que exporta produtos manufaturados? Os EUA, a Inglaterra, a França, a China. Eu quero saber onde é que vão ser empregados os 13 milhões de desempregados hoje em dia. No campo? Mas o campo é altamente automatizado. Tem que ser na indústria. A maioria desses 13 milhões moram na cidade, e na cidade não se planta nada. Agora, o governo parte do princípio de que [o Brasil] é igual aos EUA, é um país desenvolvido.
Num artigo recente, o senhor disse que a luta pela redistribuição de quotas e de poder de voto no FMI e no Banco Mundial foi abandonada pelo governo brasileiro. Como isso se deu?
Nunca mais ouvi falar nisso. Porque os EUA são contra, o congresso americano é contra, isso diminui o poder americano. Você acha que o presidente Bolsonaro vai lutar para diminuir o poder americano? Eu tenho a impressão que não é bem o caso. Isso, como eles dizem, é confrontação do Brasil com os EUA. Os EUA têm uma estratégia de natureza mundial, que é impedir que em qualquer região do mundo surja um estado ou grupo de estados que possa reduzir a influência deles. Outro ponto interessante: os EUA têm mil bases no exterior, mas nenhuma no Atlântico Sul. É óbvio que a [cessão da] base de Alcântara (no Maranhão, com o acordo de salvaguardas tecnológicas) não tem nada a ver com o lançamento de foguetes. Nós iríamos receber uma quantia irrisória para termos uma parte do território fora do alcance das autoridades brasileiras. Você instala uma pista [de pouso de aviões], de grande dimensão, a pretexto de transportar o material. Uma vez que os EUA entram [num país], não saem mais, não.
‘O Ernesto é uma coisa deste tamanho. Uma coisa ridícula. É ridículo. Ri-dí-cu-lo.’ 
Desde que assumiu o posto, o chanceler Ernesto Araújo tem se desentendido com o setor militar do governo Bolsonaro sobre a Venezuela. A crise chegou ao auge com a ida de Araújo aos EUA para um encontro com o secretário de estado Mike Pompeo um dia antes da mal sucedida operação liderada por Juan Guaidó, e a determinação de Bolsonaro de que qualquer decisão envolvendo o país vizinho deve passar pelo Conselho de Defesa Nacional…
O presidente da Câmara já disse que a declaração de guerra é uma competência exclusiva do Congresso. Se você fosse eleito presidente da República, teria que ter a curiosidade de ler a Constituição, né? Para saber quais são os poderes do Executivo, Legislativo, Judiciário, saber que é o presidente da Câmara quem autoriza os pedidos de impeachment. Sozinho. Aparentemente, essa curiosidade não acometeu o presidente Bolsonaro.
Quanto ao chanceler Ernesto Araújo…
(Interrompendo) Eu só falo sobre política, não falo sobre o Ernesto. O Ernesto é uma coisa deste tamanho (sinaliza algo pequeno com a mão). Uma coisa ridícula. É ridículo. Ri-dí-cu-lo (enfático, separando as sílabas). No discurso de formatura dos alunos do Instituto Rio Branco, o ministro Ernesto Araújo comparou o presidente Bolsonaro a Jesus Cristo. E chorou quando fez isso. Isso não existe na história do Brasil e nem na história do mundo, um ministro ter comparado o chefe de Estado a Jesus Cristo.
Várias coisas parecem ser inéditas no governo.
Em parte. Porque o acordo de salvaguardas tecnológicas [de Alcântara] foi negociado na época de Fernando Henrique Cardoso, que teve como seu precursor Fernando Collor. Teve uma pequena interrupção com Itamar Franco, que foi ridicularizado. Por que ele foi ridicularizado? Porque não seguia a mesma política [externa] de Collor. Depois FHC assinou um ato de não-proliferação [de armas nucleares] que é, digamos, o ato mais grave da história do Brasil na política externa.
Por quê?
Porque nós não éramos membros do tratado e [assim] poderíamos, teoricamente, desenvolver armas nucleares. O mundo é dividido em duas classes de Estados: os de primeira classe, que podem deter armas nucleares e são membros permanentes do Conselho de Segurança, e os demais, que não eram obrigados a assinar o tratado de não-proliferação. A pretexto de que isso ia gerar um desarmamento mundial, o Brasil assinou sem que ninguém houvesse pedido.
Um embaixador bastante experiente relatou ter ouvido de um político de alto coturno do Legislativo que Ernesto Araújo é “esquizofrênico”. O que senhor acha dele?
Não tenho capacidade para inferir se ele é uma pessoa esquizofrênica ou não. Eu acho que ele parte de princípios equivocados, que o Brasil enfrentava os EUA [durante os governos do Partido dos Trabalhadores], só se relacionava com governos de esquerda. Isso é um absurdo. O Brasil fez um contrato de compra de caças com a Suécia. Ao que me consta, a Suécia não é um país comunista de esquerda. Fez o contrato do submarino nuclear com a França. É tudo ignorância.
Voltando a Ernesto Araújo, ele tem sido continuamente desautorizado pelos militares. O senhor se lembra de algum governo, no período democrático, de um chanceler se submeter dessa forma ao setor militar do governo?
Não. No período em que eu estava na secretaria-geral [do Itamaraty], nós tínhamos as melhores relações com o ministro da Defesa, os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, [eles eram] extremamente cooperativos. Não havia nenhuma dificuldade, nunca houve.
Na sua visão, o que há hoje entre o Itamaraty e os militares, em um governo que é formado basicamente por militares?
Não, não é formado basicamente por militares. São sete militares de 23 [ministros].
Mas o núcleo duro, por assim dizer, é militar.
O núcleo duro do governo é o ministro da Economia.
Nesse caso, qual é o papel do Itamaraty?
Não sei, não sou ministro das Relações Exteriores, não sou secretário-geral, não me interesso…
Mas o senhor deve acompanhar, naturalmente.
Quem tem a maior influência no Itamaraty, diz a imprensa, é o deputado [federal pelo PSL de São Paulo] Eduardo Bolsonaro, o assessor Filipe Martins, que tem 35 anos (na verdade, tem 31) e uma vasta experiência em política externa sem ter jamais exercido cargo nesta área. São pessoas com visão [de mundo] baseada em seu orientador espiritual, Olavo de Carvalho, que se expressa no Twitter com palavrões seguidos.
O senhor já escreveu que, dado o número de vizinhos, a disparidade de dimensões, os ressentimentos históricos do processo de formação do território brasileiro são motivos para o Brasil nunca interferir nos processos políticos dos Estados vizinhos. Qual o tamanho do erro que pode estar sendo cometido pelo Brasil ao tentar interferir em assuntos internos venezuelanos?
‘Se você for uma pessoa que não tem experiência, para os outros países é uma festa.’
Tentar, não. Está interferindo, sem poder e sem força para tal. Servindo apenas como ajudante dos EUA. É um erro enorme. O Brasil é 50% da América do Sul em território, mais ou menos. Dos outros países, o que tem maior dimensão territorial é a Argentina, que tem um terço do território brasileiro. Os outros são ainda menores. A população do Brasil é cerca de 50% [da do continente], 210 milhões, os outros têm 40 milhões. O Chile tem 15 milhões de habitantes. [Mas] Todo dia nos jornais dizem que nós temos que seguir o modelo do Chile, um país pequeno. O Brasil é um país diferente. Quem já foi ao Paraguai e leu o jornal ABC sabe o que eles pensam do Brasil, que eles foram espoliados, destruídos (na Guerra do Paraguai). E há os ressentimentos entre eles, entre Argentina e Uruguai, entre Argentina e Chile, entre Chile, Peru e Bolívia, entre a Colômbia e o Equador, entre a Colômbia e a Venezuela. Esses países às vezes procuravam a ajuda do Brasil, a mediação do Brasil, o que é uma coisa muito delicada. Isso permitiu ao Brasil, por exemplo, ter ótimas relações com a Colômbia durante o mandato do presidente [Alvaro] Uribe, e depois aquele outro, [Juan] Manuel Santos. (Irônico) E não me consta que o presidente Uribe fosse marxista cultural, nem que fosse ao Foro de São Paulo, e nem que o Foro de São Paulo tivesse essa importância toda. O Foro de São Paulo era uma reunião dos partidos democráticos de esquerda.
O PT não cometeu esse mesmo erro ao dar suporte ao chavismo e, posteriormente, a Maduro?
Na Venezuela, foram realizadas 23 eleições. Todas, exceto as mais recentes, com aprovação do Centro Carter, todas consideradas legítimas, tudo direitinho.
A última não.
Eu fui observador ali, havia candidato da oposição, teve 5 milhões de votos, e os jornais dizem aqui que não houve candidato de oposição. [Houve] Os que não quiseram concorrer!
Alegando que as condições eram desiguais.
Eu estive na Venezuela, toda a imprensa é livre. As televisões, os jornais circulam livremente, esculhambam – esculhambam não, criticam o governo ferozmente. Você deve consultar um estudo do Jeffrey Sachs, economista americano, (irônico) um comunista conhecido, não é? [Dele] e do Mark Weisbrot, que calcularam o número de vítimas decorrentes das sanções americanas. São 40 mil pessoas que morreram por causa das sanções. Isso foi causado pelo governo do Maduro? Só o governo Trump não cometeu erros. Ele [e os presidentes Emmanuel] Macron e [Mauricio] Macri, aliás, muito populares na França e na Argentina. O Macri com 38% da população abaixo da linha de pobreza! (Na verdade, segundo levantamentos mais recentes, são 32%).
Mas o governo Maduro também cometeu erros, não?
Mas quais são os erros de Maduro? Eu quero que você me diga quais são. Você não sabe, porque não tem. É tudo uma onda de propaganda extraordinária que parte do seguinte princípio: o governo é autoritário. Quantos políticos estão presos na Venezuela?
Leopoldo López estava preso.
Leopoldo López! Um!
Mas um preso político já é muita coisa, não?
Esse sujeito é um criminoso, estava preso por razões criminais. Cometeu crimes e depois foi solto. Se você tem num país um sujeito que diz que vai derrubar o governo, o que acontece em geral? Você acha que é uma infração à lei. Acho que é, né? E agora foi solto. Mas quero que você me dê a lista dos presos políticos na Venezuela. (A ong venezuelana Foro Penal estimou, há alguns dias, que mais de 2 mil pessoas foram presas por motivos políticos no país, das quais 857 seguem detidas.)
O senhor acha então que é tudo uma armação contra Maduro?
Mas é claro que é!
Os venezuelanos que chegam ao Brasil, em Roraima, relatam que passavam fome.
Eles podem relatar o que for, inclusive para receber abrigo. Porque, se disser: “Olha, eu estou muito bem lá…”
Mas quem pede abrigo está passando necessidade, não?
‘Ele [Araújo] disse que a Polônia é um país de enorme potencial econômico. No reino da fantasia, tudo é possível.’ 
Eu acho que o 1,5 milhão de brasileiros que foram para o exterior deviam estar numa situação muito séria também, não? [A Venezuela] É um país que está sob intervenção! Há uma série de sanções, que naturalmente criam grandes dificuldades para a economia, dificuldades de emprego e assim por diante. Você quer o quê? Se fizessem isso com o Brasil, em meia hora o país já tinha se entregado. Meia hora. Tem que entender como funciona o sistema internacional, que não é formado por estados soberanos e iguais. Existe um império, um só, o império americano. Dentro dele, há os Estados Unidos, o centro do império, e os estados que são soberanos, entre aspas, que são províncias de diferentes níveis. Então, sempre que há uma província rebelde, o império tem que reenquadrá-la. Você acha que a Venezuela representa algum risco de segurança para os EUA? Que o exército venezuelano apresenta risco de segurança ao exército americano? Que a Venezuela pode invadir os EUA? Mas é preciso ser exemplar, compreende? Como na escola, quando um menino joga uma bolinha de papel na professora, ela tem que reagir com firmeza, botar de castigo. Senão, amanhã vai estar todo mundo jogando bolinha de papel. Depois de amanhã, apagador de giz; depois, pedra. Há três províncias rebeldes hoje em dia: a Venezuela, o Irã e a Coreia do Norte, onde tem que haver mais cuidado, porque [o país] tem arma nuclear. Se o Iraque tivesse armas de destruição em massa, como foi anunciado na época, não teriam invadido. Há também as províncias de primeiro nível, que têm capacidade legal de ter armas nucleares: Inglaterra, França, China e Rússia – essas duas estão fora do império, são adversárias dele. Se você ler as declarações do (chefe do Comando Sul das forças armadas norte-americanas,) almirante Craig Faller, ele nomeia quem são os países adversários dos EUA. Achar que a Venezuela é um adversário dos EUA é uma coisa absurda.

Pinheiro Guimarães e a ex-presidente Dilma Rousseff, em 2007, quando ainda estava no Itamaraty. Ao longo de quase duas horas de conversa ele defendeu as bandeiras da política externa do governo Lula, inclusive o alinhamento com o chavismo na Venezuela.
Foto: Sérgio Lima/Folhapress

O senhor acredita que acabará havendo uma intervenção militar estrangeira na Venezuela?
Em hipótese alguma. Para invadir o Iraque, os EUA concentraram na fronteira [do país do oriente médio] 600 mil homens. Antes de invadir. Não se invade um país assim. É complicado. (Na verdade, foram 177 mil soldados, dos quais 130 mil eram norte-americanos. Ainda assim, é quase um terço da população de todo o estado de Roraima, estimada em 576 mil pessoas em 2018.) Isso que houve ataques aéreos antes para destruir as defesas e depois a invasão. E até hoje não se conseguiu dominar a situação. Eles [os EUA] querem montar uma força multilateral, com o Brasil e outros Estados da região, eles naturalmente fornecendo tudo e liderando e querem provocar dentro da Venezuela, com as dificuldades humanitárias e econômicas de todo tipo – eles cortaram tudo, até acesso aos bancos. Para lá enfrentar a China e a Rússia. Tudo isso é um jogo muito difícil, muito complicado, muito delicado.
Qual o risco para o Brasil de ter um tabuleiro dessa nova guerra fria na sua fronteira?
Não tem nenhuma vantagem para nós. Vamos supor que o Macri perca na Argentina, o que é uma probabilidade, segundo os jornais. E o presidente Bolsonaro já aproveitou a oportunidade para intervir na política interna da Argentina, ao declarar que [a eventual eleição de Cristina Kirchner] seria criar “uma nova Venezuela ao sul do Brasil”. Um absurdo, contraria todos os nossos interesses. A Argentina é um dos principais parceiros comerciais, de investimentos, grande parte do turismo no Brasil é de argentinos. Não se dá palpite, cada país tem sua evolução histórica, suas características, sua autonomia. Isso é que permite haver um certo sistema internacional, ou pelo menos a aparência dele, para organizar certas coisas até um certo limite. Então, tudo isso só nos prejudica no longo prazo. [O Brasil] Não ganha nada, não ganhou nem a questão da OCDE agora, apesar de fazer uma concessão enorme. O que um contínuo vai fazer no country club do Rio de Janeiro? Talvez ser garçom. A OCDE é um clube de ricos. Tem o México, que os EUA botaram para dentro devido ao Nafta. Mas não é um país desenvolvido, basta acompanhar o noticiário.
Mostramos, há alguns dias, que o BID tem um plano preparado para irrigar a Venezuela com bilhões de dólares assim que Nicolás Maduro seja derrubado. É uma notícia que o surpreende? Qual a força do governo dos EUA num organismo multilateral mas sediado em Washington e do qual os próprios EUA são os principais acionistas? Até que ponto instituições como o BID são usadas pela Casa Branca para atingir seus interesses?
‘[O Brasil] está no compartimento de bagagens.’
[O governo dos EUA é o] Principal acionista e comandante da área operacional, tanto do Banco Mundial quanto do BID. Há muitos anos atrás, creio que no governo [do republicano Ronald] Reagan, se falou em mudanças sobre o Fundo Monetário Internacional. Daí o secretário do Tesouro norte-americano foi ao congresso de lá dar um depoimento sobre a importância do FMI e explicou o seguinte: o Fundo permite que os EUA imponham a sua política sem aparecer. O Departamento do Tesouro tem enorme influência sobre esses organismos. Nada é aprovado sem os EUA, nada. Sempre foi assim. (Irônico) Desculpe, eu estou muito radical hoje (ri). Deveria estar menos radical. Mas você viu o editorial da Folha de hoje? É de uma violência extraordinária: [fala em] ‘bando de lunáticos” que cercam o presidente. Bando de lunáticos!
O senhor concorda?
Estou só dizendo o que diz o editorial da Folha. Os editoriais da Folha, do Estado, têm sido muito críticos, muito contundentes. Como eu dizia lá atrás, há províncias de primeiro grau, que se sentam na classe executiva. Mas o piloto não vai à classe executiva perguntar como deve conduzir o avião. Nunca os EUA perguntam à França, à Inglaterra, o que fazer. Vão lá e fazem. Depois vem um pessoal tipo Japão, Alemanha, que foram adversários na guerra, mas também não são muito escutados. Em seguida, aqueles europeus tipo Itália, Espanha, Portugal (novamente irônico), aquele lixo mestiço, católico, papista. Depois a Europa oriental, que [para os EUA] não têm a menor importância…
Usando a metáfora que o senhor fez há pouco, o Brasil está na classe econômica do avião?
Não. Está no compartimento de bagagens.
Um veterano embaixador nos disse que Ernesto Araújo promoveu uma “revolução cultural como a chinesa” no Itamaraty, ao subverter a hierarquia colocando gente com menos tempo de carreira para comandar diplomatas veteranos. São ministros de segunda classe mandando em embaixadores, ou coronéis mandando em generais. Qual o efeito disso num órgão afeito à tradição e à hierarquia como o Itamaraty?
Não é que é afeito à hierarquia, é que [em relações exteriores] experiência conta. Quando você entra no Itamaraty, ainda que seja um gênio, você será um subordinado. Depois, vira chefe de divisão, depois de departamento, depois subsecretário. Ao exterior, primeiro se vai como secretário, depois conselheiro, depois ministro, e vai adquirindo experiência observando os outros, vendo as diferentes situações. Se você for uma pessoa que não tem experiência, para os outros países é uma festa.
Tem sido?
É claro, é só você observar. Uma festa. Nenhum ministério tem uma visão global [do governo] além do Itamaraty e, um pouco, das forças armadas. A chancelaria desenvolve a experiência no trato com os outros estados, que têm os seus interesses. Existe a experiência na negociação. Se você chega e tira as pessoas mais experientes, enfraquece o órgão central de contato com outros estados. Isso prejudica o país, e é tudo que os outros querem.
O atual Itamaraty está sendo ingênuo, então?
Não. Se você parte de uma visão de mundo em que existe o marxismo cultural e que a ONU está aí (começa a rir) para prejudicar o Brasil… É uma visão simplista, ingênua, equivocada.
O chanceler Ernesto Araújo tem um auxiliar de fora do Itamaraty: Filipe Martins, indicado por Olavo de Carvalho.
Não o conheço, nunca o vi na minha vida…
O papel de Marco Aurélio Garcia, que ocupou o mesmo cargo no governo Lula, não foi o mesmo?
Não, não. Ele nunca influiu no Itamaraty, nunca pretendeu [fazer isso], que eu saiba, sempre teve uma posição muito cooperativa. Tinha grande influência junto ao presidente [Lula], desde 1980, na área internacional do PT.
O governo Bolsonaro e seu chanceler dizem que as relações brasileiras com os EUA foram “negligenciadas” nos últimos anos, que a política sul-sul era movida por ideologia. O que o senhor pode dizer a respeito?
Que não é verdade. O presidente Lula conhecia perfeitamente a importância dos EUA – o que não significa subserviência. Ele foi várias vezes aos Estados Unidos, foi recebido com a maior consideração, houve manifestações de [Barack] Obama sobre Lula, antes por [George W.] Bush. Mas as pessoas inventam coisas. O Brasil sabia, em sua campanha por um assento permanente no Conselho de Segurança [da ONU], que o apoio dos EUA era fundamental, assim como da França, Inglaterra, Rússia e China, os cinco membros permanentes. Pode ver os números de comércio com os EUA, a Europa, não caíram. O ministro Celso Amorim tinha as melhores relações com os secretários de estado, inclusive com [a republicana] Condoleeza Rice.
O governo brasileiro tem negado a importância da ONU e de organismos multilaterais surgidos após o fim da segunda guerra. Em fevereiro, Ernesto Araújo foi à Polônia participar de um encontro convocado pelo governo Trump para pressionar o Irã. Lá, ele expressou interesse em “desenvolver relações próximas com outros países do Grupo de Visegrado e com a Itália”, países governados pela extrema direita ou por coalizões de que ela faz parte…
(Irônico) Ele [Araújo] disse que a Polônia é um país de enorme potencial econômico. No reino da fantasia, tudo é possível.
O senhor acha que há, agora, um grau inédito de politização da política externa brasileira?
Eles fazem o que acusam os outros de fazerem! O sogro dele (de Ernesto Araújo, o embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa) exerceu altas funções [no Itamaraty] durante o governo do PT, um homem conservador – e meu amigo, aliás. Um homem correto, educado, conservador, que exerceu funções normais. Ninguém foi perseguido.
Já ouvimos que Seixas Corrêa está bastante embaraçado com o que Ernesto Araújo vem dizendo…
Claro, com um louco dentro de casa… Ele não me disse nada, nem eu ia perguntar, é uma coisa constrangedora. O marido da filha, você tem que defender minimamente.
Um embaixador graduado com quem conversei me disse ver organismos multilaterais como a ONU em risco como nunca desde seu surgimento. O senhor concorda?
A carta das Nações Unidas é o único tratado que estabelece as normas da convivência internacional: autodeterminação dos povos, soberania, igualdade entre os Estados, assim por diante. A gente sabe que não é bem assim, mas está lá. E tem mecanismos de negociação e cooperação em prol da segurança e da paz internacional, aos quais também podemos fazer observações. Os países, na ONU e nas agências especializadas, negociam acordos, muitos dos quais são do interesse do Brasil: sobre florestas, meio ambiente em geral, acordos comerciais. Então, você precisa de apoio de outros países.
Um Itamaraty que é parte de um governo que visa combater o comunismo pode azedar a relação do Brasil com a China, o país comunista que é nosso principal parceiro comercial?
‘No cardápio político, hoje em dia, Bolsonaro está sendo servido. O prato alternativo que se pode escolher é Mourão.’
Acredito que os chineses sabem da importância que tem para eles a relação com o Brasil, a importância do comércio, a perspectiva de investimentos chineses no Brasil, até para garantir o abastecimento deles com produtos primários como minério de ferro, soja. Eles não vão criar nenhum caso. Nenhum. Sabem que tudo é passageiro, e pode ser até que passe mais depressa do que se pense.

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O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães durante audiência sobre a entrada da Venezuela no Mercosul, em novembro de 2007. Ele foi o número 2 do Itamaraty durante o governo Lula.
Foto: Sérgio Lima/Folhapress

O senhor acha isso? Qual sua impressão?
Julho.
O que, em julho? Um impeachment? E aí assume Mourão.
Naturalmente. No cardápio político, hoje em dia, Bolsonaro está sendo servido. O prato alternativo que se pode escolher é Mourão. Outros pratos, como revolução socialista e proletária, estão em falta. Assembleia nacional constituinte? Também não está sendo servido. O que tem é o Mourão. Você pode não gostar, achar que é a volta dos militares, achar o que quiser.
Não o preocupa uma eventual volta dos militares ao poder?
De forma alguma. Por várias razões. Primeiro porque temos um governo ideológico e que divide o país, promove o antagonismo social todos os dias. Agora, liberou as pessoas a transitarem com armas carregadas. É uma coisa inacreditável. Temos 63 mil mortes por ano, em toda a Guerra do Vietnã os EUA não perderam o que morre no Brasil por ano. É um governo que promove ódio racial, todo tipo de confronto na sociedade. Isso é uma coisa muito perigosa. O governador do Rio subiu num helicóptero para acompanhar uma ação em que sujeitos iam matar pessoas. Isso é uma loucura. O general Mourão, desde que tomou posse – antes, não – só fala a coisa certa. Até julho o governo tem que aprovar a [reforma da] previdência, alguma coisa tem que aprovar, porque estão achando que vai ser um milagre, se aprova a previdência e tudo vai se resolver.
‘[Os militares] Passaram 30 anos tentando limpar os aspectos negativos da ditadura para eles. Veio o Bolsonaro e o tempo todo relembra a ditadura.’
Vamos supor que Bolsonaro de fato deixe o cargo, sofra um impeachment. Não é arriscado termos os militares de volta no comando do país?

Não. Em qualquer país do mundo que se respeite, os militares fazem parte da sociedade, não são contra a sociedade. Nos EUA, você acha que o establishment critica os militares? Na França? Na Alemanha? Na Inglaterra? Mas aqui criou-se essa ideia de sociedade civil de um lado e os militares do outro. Foi o príncipe dos sociólogos quem fez isso (irônico, se referindo ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso). Isso criou uma situação em que, primeiro, se tirou a responsabilidade dos civis que apoiaram a ditadura e que muito se beneficiaram, mais do que os militares, que ficaram com a culpa, mas não ficaram ricos. A Globo se criou durante a ditadura, são multimilionários. Os bancos, a mesma coisa. Esse conceito permitiu dizer: “Olha, a ditadura foi uma coisa militar. Aqui estamos nós, os civis, que nunca nos beneficiamos com ela, nunca enriquecemos nela.” Enriqueceram, e muito. Com aquele crescimento muito alto (da economia nos primeiros anos da década de 1970, época do chamado “milagre econômico” brasileiro) com arrocho salarial, eles ficaram milionários, empresários como Gerdau ficaram milionários.
O senhor não vê nenhum risco de uma “recaída” dos militares, um novo AI-2 (o segundo ato institucional decretado pela ditadura, de 1965, que acabou com as eleições diretas para presidente, extinguiu partidos políticos e permitiu uma intervenção do poder Executivo no Judiciário)?
Para quê? Não vale a pena. [Os militares] Passaram 30 anos tentando limpar os aspectos negativos da ditadura para eles. Veio o Bolsonaro e o tempo todo relembra a ditadura. Eles ficam horrorizados com isso. As pesquisas de opinião mostram que os militares são um dos grupos que têm mais confiança da população brasileira. Conseguiram isso, e o Bolsonaro passa o tempo todo lembrando da ditadura, do [ditador chileno Augusto] Pinochet, do [ditador paraguaio Alfredo] Stroessner, do [coronel Carlos Alberto] Brilhante Ustra (um dos principais comandantes da tortura de adversários do regime militar).
Mourão também fez elogios a ele.
Antes de ser vice-presidente. De lá para cá, ele é monitorado pelo alto-comando. Ele não fala por ele, tanto que não é contestado, reparou? Não há nenhum general, da ativa ou da reserva, que tenha contestado Mourão publicamente. Pode ser que eles discutam [internamente], mas publicamente não vi nenhuma declaração. Porque eles sabem que [um eventual fracasso do governo Bolsonaro] vai bater lá neles, entende? Essa confusão que o Bolsonaro está armando, esse caldo de antagonismo, vai bater neles. E não interessa a eles [uma nova ditadura], porque não é mais moda no mundo, não é? Teve a moda das ditaduras militares na América Latina, Brasil, Argentina, toda parte. Hoje em dia, não é mais assim.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Defenestrados do IPRI planejam um clube dos defenestrados do Itamaraty

Estou pensando em criar, com o ex-secretário geral do Itamaraty, à época, diretor como eu do IPI, um "clube dos defenestrados" do Itamaraty, pois ele, em 11 de abril de 2011, como eu, em 4 de março de 2019, fomos defenestrados do cargo que ocupávamos, que eu ocupei, desde 3 de agosto de 2016, nesse antro de "marxismo cultural" (no meu caso), de nacionalismo desenvolvimentista, no caso dele, ambos por demonstrarmos independência de pensamento em relação às posturas dominantes no Itamaraty, e ambos vítimas da intolerância com respeito a posições que eventualmente não se coadunavam com o Zeitgeist de cada momento.
No caso do Samuel, havia a famigerada Lei da Mordaça, introduzida pelo então SG do Itamaraty, no meu caso, apenas a insegurança, o temor de ser desmascarado, de um chanceler acidental que sabe que está desempenhando um papel que não era o seu tradicionalmente, ou seja, pura figuração, a serviço dos que o colocaram nessa posição que representa, a meu ver, o terceiro escalão do processo decisório em matéria de política externa.
Samuel e eu vamos tomar umas cervejas para comemorar a inauguração desse novo clube, e provavelmente convidar outros eventuais defenestrados de arbítrios similares.
Para mim, tudo é motivo de divertimento. Eu estaria na verdade deprimido se tivesse de servir à política externa esquizofrênica do atual chantecler...
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 11 de abril de 2019

São Paulo, quarta-feira, 11 de abril de 2001 
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Embaixador contra a Alca cai no ItamaratyDA REPORTAGEM LOCAL

O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães foi demitido do Ipri (Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais), do qual era diretor, por manter uma posição diferente da do Itamaraty em relação à Alca (Área de Livre Comércio das Américas).
Para exonerá-lo da função, o Ministério das Relações Exteriores baseou-se na circular baixada pelo ministro Celso Lafer, em fevereiro deste ano, que proíbe qualquer manifestação pública sobre política externa, por parte dos diplomatas, sem autorização superior.
Foi a primeira exoneração de um embaixador de seu cargo com base na "lei da mordaça", como ficou conhecida a norma do ministério.
A posição de Pinheiro Guimarães contra a criação da Alca era pública, o que incomodava o Itamaraty. A gota d'água teria sido a divulgação do texto "A Alca É o Fim do Mercosul", de autoria do embaixador.
De acordo com ele, a indústria nacional não está pronta para competir com a norte-americana, o que poderia causar forte abalo no setor.
A posição do Itamaraty criou polêmica também no meio jurídico, por poder ferir o artigo 5º da Constituição, que garante a todos os brasileiros a inviolabilidade do direito à livre manifestação do pensamento, independentemente de censura ou licença (incisos IV e IX).
O conselheiro Carlos Henrique Cardim assumirá as funções de Pinheiro Guimarães no Ipri. Não está definido ainda para que área do Itamaraty o embaixador será transferido.

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sexta-feira, 24 de agosto de 2018

Percursos Diplomaticos: Samuel Pinheiro Guimaraes - Paulo Roberto de Almeida

Tivemos esta tarde, no IRBr, uma palestra do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, extremamente agradável.
Abaixo, texto que li na abertura da sessão.
O vídeo da palestra será disponibilizado tão pronto preparado, em nosso site.
Paulo Roberto de Almeida 


Percursos Diplomáticos: uma reflexão necessária

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: reflexão introdutória; finalidade: acolher um depoimento]

Permitam-me uma breve introdução a este novo depoimento dentro da série dos “Percursos Diplomáticos”, que talvez possa servir como reflexão de meio de caminho.
Pouco menos de dois anos atrás, após ter começado a trabalhar como diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI), depois de uma década e meia afastado de qualquer função na Secretaria de Estado, reuni-me com o diretor do Instituto Rio Branco, o então ministro, como eu, hoje embaixador, José Estanislau do Amaral Souza Neto, para planejar o que poderiam fazer, conjuntamente, nossas duas instituições. Ambas estão dedicadas à produção de conhecimento, seja pela formação de capital humano para a diplomacia, como é a função primária do Rio Branco, ademais de aperfeiçoar constantemente os diplomatas já formados pelos seus cursos de revisão dos grandes temas da diplomacia, ou de aperfeiçoamento e especialização em nível superior, seja, pelo lado do IPRI, pela pesquisa, organização de seminários, palestras e debates e também a produção de publicações relevantes dentro da agenda diplomática brasileira, que são as suas áreas de trabalho. 
Vim visitá-lo aqui no Rio Branco e, em sua mesa de trabalho do 1o. andar, começamos a planejar novas iniciativas para reforçar o que ambos pressentíamos que deveria ser a vocação e o objetivo principal dos dois institutos: exatamente aquilo que poderia ser designado de “diplomacia do conhecimento”. Decidimos então, eu e Estanislau, iniciar uma vertente pouco explorada até aqui pela nossa Casa, que não dispõe nem de um historiador institucional, nem de um programa de história oral. Resolvemos criar um espaço dedicado à exposição pessoal dos, e de um diálogo aberto com os diplomatas seniores da Casa, funcionários que souberam deixar sua marca na diplomacia, e que ainda têm algo a dizer às gerações mais jovens, em especial aos novos ingressantes na carreira, estudantes do Rio Branco e diplomatas em início de carreira. Seria uma oportunidade para que os diplomatas aposentados oferecessem um testemunho pessoal sobre seu itinerário no serviço exterior brasileiro, sobre seu ingresso e formação, sobre as grandes etapas da carreira e sobre as experiências adquiridas ao longo de várias décadas de trabalho a serviço do Brasil, na Secretaria de Estado, nos postos no exterior, em outros órgãos da administração pública, ou até na vida acadêmica, numa eventual expressão artística, assim como na produção intelectual. 
O Itamaraty é um conglomerado extraordinário de servidores vocacionados para a ação exterior do Estado brasileiro, funcionários que já ingressam na carreira a partir de uma preparação extremamente exigente, e que são constantemente requeridos a comprovar essa excelência nos cursos criados para reforçar sua preparação e estudo em algumas etapas do processo de ascensão funcional, e que continuam a ser testados em diferentes áreas de trabalho, na Secretaria de Estado e nos postos do exterior. Eles adquirem com isso – pois a isso são forçados pelas circunstâncias especiais da carreira – uma enorme experiência de vida, pois que residindo em todos os cenários geográficos, políticos e diplomáticos abertos ao engenho e arte da diplomacia brasileira. Esses postos são os mais variados, indo do famoso circuito Elizabeth Arden aos chamados postos C ou D, ditos de sacrifício, sobretudo no plano familiar ou do pouco conforto material. 
Depois de alguma hesitação quanto à designação que deveríamos dar a essa nova série, nos fixamos neste nome, “Percursos Diplomáticos”, concebido exatamente como uma exposição absolutamente pessoal, focada no itinerário de carreira dos convidados a este exercício, mas totalmente aberta às preferências de cada um, quanto ao tipo de testemunho a ser oferecido à audiência, segundo as inclinações peculiares a cada um deles. Desde março de 2017, quando demos início à iniciativa com a presença do embaixador Rubens Ricupero, tivemos outros nove depoimentos, seguidos de debates, com os embaixadores Marcos Azambuja, José Alfredo Graça Lima, Roberto Abdenur, Rubens Barbosa, Thereza Quintella, Gelson Fonseca, Celso Lafer, Ronaldo Sardenberg e Maria Celina de Azevedo Rodrigues. Esses depoimentos estão disponíveis na página do IPRI (http://www.funag.gov.br/ipri/index.php/percursos-diplomaticos), aos quais eu poderia agregar o depoimento do embaixador Synesio Sampaio Goes, embora feito em outro formato. Este ano o IPRI ainda vai trazer, para falar no Rio Branco, Jório Dauster, Osmar Chohfi e Sérgio Duarte, todos eles conhecidos por eminentes serviços prestados à diplomacia brasileira ao longo de várias décadas.
Este é o caso, igualmente, do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães Neto, uma vez que ele preenche todos os critérios sob os quais concebemos, Estanislau e eu, os convites prioritários a serem feitos ao abrigo desta série voltada aos aposentados, conhecidos por trajetórias de carreira especialmente relevantes do ponto de vista da política externa e da diplomacia brasileira. Agradeço pessoalmente ao embaixador Samuel ter aceito meu convite para falar a vocês, alunos e colegas, e também, agora e por meio do registro audiovisual, a todos os interessados em seu depoimento sobre um dos momentos mais importantes vividos pelo Itamaraty. 
Qualquer que seja o julgamento que se faça sobre a diplomacia levada a efeito entre os anos 2003 e 2016, período com o qual o embaixador Samuel está especialmente identificado, seu depoimento é, sem qualquer dúvida, altamente relevante no plano histórico e também político. Mas não é apenas ou principalmente sobre esse período de nossa diplomacia que ele foi convidado a falar, mas sobre o conjunto de sua carreira. Essa carreira atravessou, aliás, vários regimes políticos, ou várias fases da vida pública brasileira, assim como de nossa própria diplomacia. 
Samuel ingressou na carreira diplomática sob a égide da República de 1946, contemporaneamente à chamada Política Externa Independente; ele atravessou todo o regime militar, exercendo os seus talentos a serviço do Estado brasileiro, não necessariamente em benefício dos governos militares; continuou se dedicando aos grandes temas da diplomacia na redemocratização, com ênfase, sobretudo, no processo de integração bilateral com a Argentina, e regional, no contexto sul-americano, dos quais ele foi um paladino. Mais importante, foi um dos meus antecessores no IPRI, do qual foi ingloriosamente afastado pela ação censória da famigerada “Lei da Mordaça”, quando lhe tolhera, a livre expressão de suas opiniões quanto a determinados rumos das relações exteriores do Brasil, em especial no tocante ao Mercosul e à Alca. Finalmente, na transição de 2002-2003, foi chamado a exercer a mais alta função a que pode aspirar um servidor do Serviço Exterior, nos quadros da própria carreira diplomática: a de Secretário Geral das Relações Exteriores.
Ele foi um ativo Secretário Geral nos primeiros sete anos dos governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores, provavelmente o principal animador de sua política externa. Ao se aposentar do Itamaraty, em 2009, foi convidado a exercer o cargo de Ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, e depois se tornou o Alto-Representante Geral do Mercosul, por breve período, cargo que não hesitou em deixar quando constatou falta de apoio dos governos às suas propostas. 
Ao longo de uma carreira sempre permeada por muitas pesquisas, pela docência e publicações diversas, Samuel deixou uma marca própria no pensamento diplomático, especialmente durante os anos que lhe coube administrar na prática o serviço exterior, na condição de Secretário Geral das Relações Exteriores. Essa fase, que correspondeu aos dois governos do presidente Lula, retomou o velho costume, bastante usual durante o período militar, de designar sob um conceito unificador a diplomacia que se pretendia desenvolver. Tínhamos tido, antes, a “diplomacia da prosperidade”, sob Costa e Silva e Magalhães Pinto, a “diplomacia da Grande Potência”, sob Médici e Gibson Barbosa, a “diplomacia do pragmatismo responsável”, sob Geisel e Azeredo da Silveira, e a “diplomacia ecumênica e universalista”, sob o último presidente militar, Figueiredo, com o chanceler Saraiva Guerreiro. A “diplomacia presidencial”, que parece ter sido exercida por Fernando Henrique Cardoso, ganhou essa designação malgré lui, ou seja, não que ele, ou o chanceler Lampreia, a tenham designado por esse nome, que foi bem mais uma designação jornalística do que propriamente diplomática. Já o chanceler Celso Amorim fazia questão de chamar a diplomacia do governo Lula, que ele dirigia, junto com Samuel e o assessor internacional da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, de “ativa e altiva”, e tinha orgulho dessa designação, que prometia reproduzir o estilo e alguma substância da antiga Política Externa Independente. 
Qualquer que seja a importância que se atribua a um simples rótulo, não há como recusar a centralidade que teve a política externa no conjunto das políticas desenvolvidas sob o chamado lulopetismo. Não estou certo de que a política externa “ativa e altiva” mereça esse rótulo de lulopetismo diplomático, termo que eu mesmo empreguei em diversas ocasiões. Alguns acadêmicos consideram que a política externa desses anos se propunha, como talvez a revolução bolchevique setenta anos antes, não apenas orientar um país, mas, mais exatamente, remodelar a nação com base em novos valores e princípios políticos. Os companheiros quase o conseguiram, e talvez também por isso mesmo eu tenha me arriscado – parafraseando a periodização histórica do mundo ocidental, dividida entre um AC e um DC, um Antes e um Depois de Cristo – a estabelecer um novo calendário político para a história recente do Brasil, sob a forma de um AC e um DC, um Antes e um Depois dos Companheiros. 
No intervalo entre um e outro, se situa uma fase certamente diferente da política externa brasileira, e nela Samuel Pinheiro Guimarães desempenhou um relevante papel de ideólogo dessa diplomacia, no sentido mais estrito e direto do conceito de ideologia. Sem qualquer conotação depreciativa desse termo, o que nos interessa saber, enquanto diplomatas, pesquisadores, ou futuros historiadores dessa política externa, é como, exatamente, foi estabelecido o processo de decisão diplomática nesses anos, que é uma questão central na avaliação de um período tão importante de nossa história recente. 
O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães está especialmente dotado de um conhecimento intrínseco sobre esse período, para nos contar como foram pensadas e formuladas as principais ideias que moveram a política externa ativa e altiva, e como funcionava a diplomacia lulopetista (ou qualquer outra designação que ele preferir). Eu sou, como provavelmente muitos colegas e outros interessados aqui presentes, um leitor de seus muitos escritos, assim como fui um espectador de seu desempenho à frente da Secretaria Geral do Itamaraty. Embora eu tenha sido um observador um pouco distante de sua gestão, pois nunca trabalhei na Secretaria de Estado durante seus novo anos de Secretaria Geral, acompanhei atentamente as iniciativas e novidades da diplomacia ativa e altiva, tanto que a ela dediquei um livro inteiro: Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais, publicado em 2014. 
Caro embaixador Samuel: tenho o prazer de lhe passar a palavra para que nos fale sobre o seu percurso diplomático. 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 12-24 de agosto de 2018

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Percursos Diplomaticos: Samuel Pinheiro Guimaraes Neto (24/08, 15, IRBr)

Percursos Diplomáticos: Samuel Pinheiro Guimarães Neto 



O Instituto Rio Branco (IRBr), a Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) e o Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (IPRI) têm o prazer de convidar para uma nova apresentação na série “Percursos Diplomáticos”, com o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães. 
Tendo iniciado sua carreira em 1963, Samuel Pinheiro Guimarães Neto desempenhou diferentes funções na diplomacia econômica, em especial na área de integração, quando atuou de forma preeminente na construção dos primeiros acordos Brasil-Argentina da segunda metade dos anos 1980. Depois de ter sido diretor do IPRI nos anos 1990, quando foi incisivo na defesa de uma integração autônoma na América do Sul, exerceu, entre 2003 e 2009, o cargo de Secretário Geral das Relações Exteriores, a mais alta função a que pode aspirar um diplomata nos quadros do serviço exterior. Ao lado de suas exigentes tarefas na Secretaria de Estado, ainda se desempenhou como professor no Instituto Rio Branco, ademais de muitas outras atividades acadêmicas, em diversas instituições brasileiras.
Ao aposentar-se da carreira diplomática em 2009, foi convidado para ser Secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, com status de ministro de Estado, quando elaborou um planejamento estratégico sobre o Brasil em 2022. Seu último cargo na alta burocracia pública foi o de Alto Representante Geral do Mercosul.  Pela sua obra publicada, foi agraciado com o Prêmio Juca Pato em 2006.
A palestra na série “Percursos Diplomáticos” será feita no Auditório Araújo Castro, do Instituto Rio Branco, no dia 24 de agosto, às 15h00.

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Mercosul, Alca e Argentina: opções do Brasil - exchange Samuel Pinheiro Guimaraes (2002)

Mais de um ano antes das eleições de 2002, o então diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, ou já depois de ingloriosamente defenestrado do IPRI, embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, costumava me remeter seus artigos para Carta Maior, pedindo comentários. Como nunca fui de desprezar a produção intelectual de amigos, sempre me esforcei para apresentar minhas observações críticas aos seus textos. O que vai abaixo é um exemplo, entre vários outros, de exchange a propósito de questões relevantes de políticas econômicas e de política externa do Brasil.
Talvez ele seja um, entre vários outros, que me colocaram na mira do futuro SG-MRE do governo Lula, a partir de janeiro de 2003, quando fui vetado pela primeira vez para exercer um cargo na Secretaria de Estado (haveria outros vetos, aliás durante os 13,5 anos do regime lulopetista).
Transcrevo primeiro o artigo de Samuel Pinheiro Guimarães, depois os meus comentários.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 16 agosto 2018

A Argentina, o Brasil e o futuro do Mercosul 
Artigo para o site Carta Maior
www.agenciacartamaior.com.br <http://www.agenciacartamaior.com.br
Samuel Pinheiro Guimarães 
11 de janeiro de 2002.

1.         A violenta crise que ainda vive a Argentina não significa o fim do Mercosul e muito menos da Argentina. Esta crise já libertou a Argentina de um arcaico e engessante regime cambial e poderá ser a oportunidade para ela se desvencilhar da política de alinhamento político incondicional e do programa econômico concentrador e excludente patrocinado pelo FMI/EUA e assim reparar as ruínas sociais, econômicas e políticas, causadas por tal programa, executado por pró-cônsules nativos. É cada vez mais urgente repensar o Mercosul para além da reconstrução argentina, a partir de uma reflexão sobre as estratégias que possam retirá-lo do marasmo e do pântano de ressentimentos em que se tornou.

2.         A crise, que antes do acelerar da crise argentina, já atingia a Mercosul é apenas um reflexo das crises vividas nos países do Cone Sul. O lento crescimento da economia regional, a retração do comércio intrazonal, a profunda crise política e econômica na Argentina, a estagnação brasileira e os esforços frustrados de gerar superávits significativos, o desemprego e o deslocamento de setores industriais tendem a se agravar com a recessão sincrônica mundial e as consequências inibidoras dos atentados de setembro. 

3.         Mesmo antes da crise atual argentina, a situação econômica interna dos países do Mercosul levara à crise econômica do Mercosul que, por sua vez, fez ressuscitar e continua a estimular as rivalidades históricas de toda ordem. E coloca o projeto de integração regional sob grave risco, enfraquece o Cone Sul e sua capacidade de contribuir para organizar politicamente a periferia sul-americana diante da ação das estruturas hegemônicas de poder.

4.         Ao Brasil e à Argentina, todavia, continua a interessar a construção de um bloco econômico, político e militar que, fortalecendo sua estrutura econômica, permita a participação a médio prazo dos dois países no sistema internacional em grau de igualdade com Estados de semelhante potencial demográfico e territorial. Este objetivo somente será possível atingir abandonando a visão neoliberal do funcionamento da economia mundial e da economia nacional e restaurando a ideia-força do desenvolvimento com base no mercado interno, isto é, no pleno emprego dos fatores nacionais de produção e na geração e absorção de tecnologias adequadas à constelação de fatores dos dois países e do Cone Sul. 

5.         As estratégias que vêm sendo sugeridas para enfrentar a crise do Mercosul são de difícil execução em prazo adequado, algumas são inviáveis e outras podem até agravar a crise.

6.         A tentativa de organizar agências supranacionais e mecanismos efetivos de solução de controvérsias não resolve a crise do Mercosul e até a agrava. Apesar de a criação de agências supranacionais ou de mecanismos de solução de controvérsias serem, em teoria, aperfeiçoamentos institucionais, há uma insuperável dificuldade que as extraordinárias assimetrias territoriais, demográficas e econômicas entre os quatro Estados trazem para a definição democrática e equilibrada de sua representação nessas eventuais agências e mecanismos. E muito mais difícil se torna imaginar tais esquemas em situações de tão grave crise como esta que a Argentina ainda vive e continuará a viver durante algum tempo.

7.         A coordenação de políticas macroeconômicas através de consultas entre autoridades, ou de fixação de metas macroeconômicas comuns ou a criação de uma moeda única (que implica a organização de um Banco Central único) são medidas de longo prazo, inúteis até de imaginar quando até a coordenação interna, dentro de cada país, dessas políticas encontra sérias dificuldades. Na situação de grave crise externa e interna, imaginar que o abandono pela Argentina da paridade legal dólar/peso e a adoção de um sistema de câmbio duplo e até, eventualmente, flutuante, e como tal semelhante ao brasileiro viria a facilitar a adoção de uma moeda comum pelos países do Mercosul é simplesmente um profundo equívoco de avaliação e algo cujo grau de probabilidade é rigorosamente zero.

8.         As questões mais urgentes e decisivas no caso da Argentina, do Brasil e do Mercosul (a situação do Paraguai e do Uruguai são mera decorrência e incapazes de afetar o destino do bloco) são: o desequilíbrio estrutural das transações correntes; a dificuldade de expandir exportações para terceiros países; as tensões decorrentes dos deslocamentos econômicos de empresas e trabalhadores em um período de grave crise e a necessidade de promover o desenvolvimento industrial e abandonar a utopia retrógrada de criar uma sociedade moderna baseada em economias agroexportadoras.

9.         A situação argentina hoje leva a crer que a estratégia para sua superação exigirá uma profunda reestruturação do esquema do Mercosul. Portanto, surge a oportunidade para lançar as bases de um verdadeiro projeto de integração econômica e política que venha a ser o cerne da articulação de um polo sul-americano no sistema mundial de poder. É claro que a continuidade das negociações da ALCA faria malograr esta oportunidade. Com a ALCA, a América do Sul passará a fazer parte do território econômico norte americano e os Estados da região deixarão de poder fazer, de fato e de direito, políticas de aceleração do desenvolvimento, redução das disparidades internas e eliminação das vulnerabilidades externas.

10.       A evolução da situação argentina permite prever as seguintes etapas: 

a) a Argentina, em situação de moratória, não conseguirá atrair capitais de empréstimo ou investimentos diretos que permitam saldar os seus compromissos internacionais a curto e médio prazo; 
b) a atual política dos EUA /FMI não favorecerá mega operações de salvamento de investidores estrangeiros que, no caso da Argentina, são em número muito significativo europeus;
c) o Governo argentino terá de promover políticas internas de poupança e de investimento capazes de reduzir de forma significativa e rápida o desemprego e a percentagem da população abaixo da linha de pobreza, pois, caso contrário, o descontentamento popular se reacenderá; 
d) o Governo argentino terá de, nesse processo, proteger o seu mercado interno, promover investimentos de empresas e capitalistas argentinos e para tal terá de aumentar o grau de proteção da economia, aumentando suas tarifas;
e) o Governo argentino terá de fazer uma política comercial voltada para a geração de forte superávit comercial tendo em vista a impossibilidade de obter superávits significativos em outras rubricas do balanço de transações correntes (fretes, juros, turismo etc.);
f) esta política comercial terá de incluir necessariamente esquemas de subsídio às exportações e a elevação de tarifas que hoje são comuns com as do Brasil, do Paraguai e do Uruguai, na forma de Tarifa Externa Comum, do Mercosul;
g) o principal destino das exportações argentinas é o Brasil e, portanto, em condições de moratória internacional, difícil será para a Argentina fazer um amplo superávit comercial total, sem ter um superávit significativo com o Brasil;
h) a política comercial da Argentina procurará favorecer a transformação do Mercosul de união aduaneira (aliás, em extremo imperfeita) em uma zona de livre comércio, o que permitiria à Argentina alterar suas tarifas para terceiros países sem ter de atender às conveniências econômicas e comerciais do Brasil (e do Paraguai e do Uruguai).
i) como resultado oportuno e favorável ao Brasil, a política comercial argentina não poderá continuar a favorecer a constituição da ALCA, pois a ALCA destruiria qualquer possibilidade de construir um superávit significativo, além de impedir, de direito, as políticas comercial, industrial e tecnológica indispensáveis à reconstrução argentina e ao fim da instabilidade social e política que continua latente e passível de erupção.

11.       Para o Brasil, a estratégia adequada para contribuir para a superação da crise argentina está longe de se tornar elegante mediador entre o Governo argentino e o Fundo Monetário e os Estados Unidos, mas sim a de ser um defensor de políticas de desenvolvimento argentinas e de sua soberania. O Brasil não deveria insistir na manutenção do Mercosul como união aduaneira, mas aproveitar a oportunidade para transformar o Mercosul em verdadeiro projeto de integração econômica e política. Este projeto deve ter como base realista a atual zona de livre comércio aperfeiçoada, com mecanismos de equilíbrio e uma coordenação de políticas tarifárias naqueles setores de interesse vital de longo prazo para o Brasil, tais como bens de capital e informática. A possibilidade de estabelecer mecanismos de crédito recíproco amplos é indispensável para preservar o comércio bilateral. A possibilidade de operações de resgate da dívida no pulverizado mercado de títulos não deve ser descartada nem sua importância minimizada. A criação de mecanismos de compensação e de fundos setoriais de reestruturação, de programas comuns, em especial em áreas de tecnologia avançada e de exportações, e de programas comuns de investimentos estratégicos completariam o quadro econômico do projeto. Na esfera política, a oportunidade é única para estabelecer as bases de uma coordenação estreita, profunda e verdadeira entre o Brasil e a Argentina que fortaleça a atuação dos dois países nas negociações internacionais de toda ordem e na construção de um polo político sul-americano, não-hegemônico, em que o Brasil abra seu mercado sem reciprocidade a seus vizinhos, que possa preservar a possibilidade de desenvolvimento e de afirmação política do continente, evitando sua absorção em esquemas liderados pelas Grandes Potências, como é a ALCA. A atitude atual do Brasil será definitiva para que essas oportunidades possam se concretizar.

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Mercosul, Alca e Argentina: opções do Brasil
Comentários a texto de Samuel Pinheiro Guimarães

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 8 fevereiro 2002

-----Original Message-----
From: Paulo Roberto de Almeida 
Sent: Friday, February 08, 2002 16:30
To: 'samuelpgn@uol.com.br'
Cc: 'palmeida@unb.br'
Subject: Argentina, Brasil e futuro do Mercosul

            Meu caro Samuel,

            Tenho por você a maior admiração e apreço, intelectualmente, moralmente, como cidadão, como diplomata, como pessoa humana. O que não quer dizer que devamos concordar em tudo. Mercosul é um terreno de minha predileção, no qual coincidimos talvez em 90 p/c das recomendações, mas persistem algumas divergências que talvez sejam mais táticas do que estratégicas. Vamos portanto ao seu texto que requereu toda a minha atenção.
            Comento topicamente, parágrafo por paragrafo, que já estão numerados, e depois venho ao geral.
1. Concordo em que a crise permitira a Argentina se desvencilhar da camisa de forca da lei de conversibilidade, mas não acredito ser realista esse preconizado distanciamento dos EUA e do FMI: eles simplesmente não podem se permitir tal independência, pois não têm os meios e são e continuarão totalmente dependentes dos aportes financeiros de Washington nos próximos meses e anos. Sua linguagem é aqui muito dura, mas creio que você tem atualmente a liberdade para empregar palavras fortes (pró-cônsules). Não creio que haverá alinhamento incondicional, mas a dependência, isso sim, continuará. Portanto, minha única observação seria essa. Não seria o caso de agregar uma frase do tipo?: "ainda que tal independência fosse recomendável, não seria realista esperar o distanciamento da Argentina dos Estados Unidos nos próximos meses e mesmo anos, em virtude da situação de extrema fragilidade financeira e de dependência efetiva em relação ao dinheiro de Washington."
            
2. Eu diria que a crise  antes de Cavallo não era propriamente do Mercosul, mas dos países membros: Brasil, Argentina tinham suas próprias crises. Ela so se tornou do Mercosul quando Cavallo começou a adotar medidas frontalmente contrarias ao espirito da UA. Concordo que havia muita fricção anteriormente, e mesmo desrespeito as normas, mas nada de muito grave. Cavallo representou uma contestação conceitual, filosófica aos fundamentos essenciais do Mercosul. Fiz esse tipo de analise num artiguinho inédito que não publiquei, pois não deixaram (quando o Lampreia aderiu às teses “cavallinas” em setembro passado). Depois incorporei num texto maior que mando em anexo.

3. Eu não acredito que a crise, dos países membros ou do Mercosul, tenha ressuscitado as rivalidades históricas de toda ordem como você diz. Isso simplesmente não existe. Não podemos tomar declarações esparsas de homens políticos como demonstrativo de um revivalde eras passadas. Por outro lado, falar em "organizar politicamente a periferia sul-americana" me revela uma atitude semi-imperial que condenamos no Big Brother e não acredito que ela beneficie o Brasil no subcontinente. Podemos até ser líderes, mas não deveríamos proclamar isso. Organizar periferia soa como arrogância imperial...

4. Abandonar a visão neoliberal pode até ser (ainda que eu ache que o neoliberalismo é mais proclamado do que praticado; eu fiz um texto sobre isso que mando agora), mas achar que a "ideia-força do desenvolvimento com base no mercado interno" vai resolver os problemas econômicos imediatos, isso para mim é muito otimismo. Um projeto de longo prazo ou pelo menos de efeitos delongados não pode servir de paliativo para os problemas do presente.

5. Concordo e se trata de simples constatação, mas o parágrafo não traz propostas concretas, ou seja não é substantivo, meramente indicativo de algo que não sabemos o que é.

6. Concordo totalmente, mas creio que a supranacionalidade nem está em causa no momento, entre os países membros, sendo um punhado de juristas acadêmicos que a defendem. O Uruguai e Paraguai defendem o tribunal permanente e eu concordaria com a ideia de uma corte arbitral "permanente" (com árbitros à disposição, por períodos rotativos de 3 a 4 anos) para julgar rapidamente os casos. Seria um pequeno grão de "supranacionalidade" numa estrutura que para mim deve permanecer intergovernamental pelo futuro previsível.

7. Concordo também, e nenhum dirigente realista está advogando a moeda única agora, mas creio que os similares de critérios de Maastricht (que já existem parcialmente, desde Florianópolis) podem começar a ser monitorados em escala nacional para a futura coordenação quadrilateral. Mas não morro pela União Monetária do Mercosul...

8. A constatação econômica é realista, mas não concordo em que uma forte economia agroexportadora seja uma utopia retrograda. A agricultura hoje é uma grande indústria, mais, ela combina serviços, software, biotecnologia, marketing, financiamento, tudo, e muito mais que fazem dela uma atividade essencialmente moderna e avançada. Concordo em que a elasticidade-renda (menor de um) não recomenda uma estratégia exportadora baseada em agro como NORMA GERAL, mas o Brasil tem chances únicas de aumentar rapidamente exportações nessa área substituindo outros fornecedores e deslocando competidores. Isso podemos fazer. Sou consciente do protecionismo, mas isso não pode demover-nos de explorar nossas vantagens comparativas que neste caso são totalmente dinâmicas....

9. A superação da crise argentina depende quase que inteiramente deles, não do Mercosul. Podemos ajudar, e eu seria favorável a que o Brasil estendesse uma linha de credito de 1 bi para mover os negócios novamente. Mas o essencial tem de ser feito por eles. Será duro, muito duro, mas o papel do Mercosul tem de ser outro, situado mais no terreno politico-diplomático (e estratégico-hemisférico) do que no campo econômico financeiro.

10. Concordo com algumas ideias, mas sou cético em relação à recomendação f), de subsidio as exportações e de elevação de tarifas (de quem, dos países membros, como hoje, ou da TEC?). Não sei se eles insistirão, como fazia Cavallo, com h), isto é, transformar o Mercosul de UA em ZLC. Eles precisam do Brasil e farão o que nós queremos e portanto não posso concordar também com o que vem em 11.

11. Discordo radicalmente, fundamentalmente da ideia de abandonar a UA, e isso não por motivos estritamente econômicos, mas por razoes de processo diplomático/negociatório nos próximos anos. Sou favorável a manter a UA pelo menos ate 2005. Sou favorável a iniciar desde já uma reflexão com os argentinos para mudar o Mercosul, quem sabe até permitindo a saída da UA e a volta a uma ZLC, a partir de uma conferencia diplomática no final de 2004 (que nós coordenaríamos), como está indicado (mas ainda não desenvolvido) no meu trabalho 811 que segue anexo. Nos simplesmente não podemos ficar sem a UA agora, pois isto significaria uma ordem dispersa no Mercosul e a fraqueza frente ao Império (além de impossibilitar negociações com a UE). CONCORDO TOTALMENTE em que a gente abra o nosso mercado sem reciprocidade (o que a UA do Mercosul atrapalha um pouco reconheço), pois esta é a garantia da Alcsa, que precisaríamos ter (mas sou cético porque a CAN e' uma bagunça monumental, e vão ceder ao Império no primeiro aceno).
            Formalmente esse paragrafo esta muito longo e deveria ser dividido nas questões financeiras, comerciais, de politicas setoriais, diplomacia etc.

            Meu caro Samuel, tenho algumas ideias a respeito do Mercosul, mas seria difícil expô-las agora. Ainda não coloquei no papel essas ideias, inclusive porque não me deixariam publicar. Mas gostaria de debater com você. 
            Estou indo ao Brasil em março, segundo o roteiro anexo. Podemos sentar e conversar?
            Eu até coloquei, tentativamente, uma palestra na FGV, Palestra:
"Alca, OMC e negociações comerciais: desafios para o Brasil" ??, mas estava justamente querendo falar contigo. 
            Abração,
Paulo Roberto de Almeida
Minister Counselor
Brazilian Embassy
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