Estivemos esta noite, Carmen Licia e eu, na casa de Sonia e Sérgio Florêncio, para uma noitada de puro deleite entre amigos e colegas, a propósito de temas da carreira diplomática, no caso a minha carreira.
Foi especialmente gratificante estar entre amigos, numa fase de grandes incertezas sobre o futuro do Brasil e da diplomacia.
Entre copos e comidas, Sérgio fez uma saudação que tenho o prazer de reproduzir aqui.
Meus comentários foram feitos oralmente, de improviso, por isso não os reproduzo aqui. Se conseguir reconstituir minhas palavras, postarei posteriormente.
Paulo Roberto de Almeida
Histórias 2018 Paulo Roberto Embaixador. Encontro em nossa Casa.
Sergio Abreu e Lima Florêncio
Brasília, 9 de agosto de 2018.
Sônia, Carmen Lícia e eu somos muito gratos à presença de todos vocês aqui. Essa confraternização tem no seu íntimo o coração e a razão de cada um de vocês. Vocês produziram o significado desse encontro.
A promoção do Paulo para mim se situa entre as mais tardias e injustamente adiadas que conheci em mais de 40 anos de Itamaraty. Por isso mesmo, ao receber a bela notícia, me veio um sentimento muito profundo: não é a promoção do Paulo, é o Itamaraty que está sendo promovido.
Assim, o significado desse encontro é louvar essa conquista, que resgata para a nossa instituição aquilo que ela tem de mais nobre e digno – a excelência, o convívio com as diferenças, a aceitação do pluralismo, do contraditório e do debate interno de onde nasce a luz.
Paulo representa para mim a inteligência contestatária – essa vertente que a instituição teve a sabedoria de preservar ao longo de sua história. Mas que infelizmente esqueceu na última década e meia. E o Paulo simbolizou – mas não mais simboliza – esse esquecimento.
Hoje é, portanto, um dia de celebração, de júbilo, de encontro de uma instituição consigo mesma, com o melhor de sua trajetória.
Todos que aqui estamos temos uma enorme identidade com essa vocação tão genuína do Itamaraty. Mais que isso, muitos que aqui estão são os atores que viraram a página da história e retomaram o capítulo que resgata o fio da meada e o sentido do enredo.
Conheci Paulo no início do Mercosul, ele assessor do Rubens Barbosa, e eu Chefe da primeira Divisão do Mercosul, junto com dois que aqui estão – Eduardo e Ernesto – e outros, com João Mendes, Haroldo e Mauro. Já ali era visível sua obstinação pelo conhecimento multidisciplinar, pela pesquisa, pela rebeldia esclarecida e pela irreverência intelectual que corre nas suas veias e estimula seus neurônios.
Sempre admirei essa essência anímica do Paulo – essa junguiana “ chama da alma” - apesar de algumas visões discordantes e de o ter aconselhado muitas vezes a arrefecer a chama, mas jamais extingui-la. Na verdade meu receio maior não derivava daquela essência anímica do Paulo, mas dos Bombeiros de Farenheit 451, que poderiam inverter a direção das labaredas.
Num sentido mais remoto, a admiração por essa essência do Paulo tem suas origens na minha infância. Meu pai era nordestino do Sertão do Seridó e veio para a Capital Federal de pau de arara. Minha mãe estudou no Sacré Coeur, tocava piano e falava francês. Ela gostava de valsa, ele amava o baião. Sou produto dessa miscigenação cultural.
Miscigenação que talvez tenha gerado em mim - depois de tantos anos de análise – uma individuação de tom conciliatório. Mas também gerou uma afinidade eletiva bem maior com a vertente nordestina, irreverente. Essa afinidade que toda a vida me identificou muito mais com a simplicidade da terra do nordeste do que com a estética educada e refinada do sul.
Na casa de vila da nossa infância, todas as semanas tínhamos o convívio com cantadores, violeiros, repentistas, trovadores , poetas do nordeste. A miscigenação entre o rapaz nordestino e a moça do Sacré Coeur produziu em mim um gosto pelas diferenças, pelos contrastes. Mas, talvez pela força do apelo telúrico, a irreverência do baião sempre pulsava mais alto que a delicadeza da valsa. Por isso, nunca alcancei o teclado do piano, não cheguei aos pés – nem às mãos – de um violino. Mas gosto muito de tocar um pandeiro. Irreverência freudianamente sublimada? Talvez.
Por isso, creio que no meu sangue pulsa também esse inconformismo que o Paulo simboliza. Mas no meu caso prevaleceu muito mais o traço de uma irreverência emocional. Não tanto a obstinação intelectual, que é a marca da vida e da alma do Paulo. Obstinação que alimenta uma irreverência iluminista, a destruição criadora do admirado Shumpeter, um Grande Sertão que precisa conviver com as Veredas do nosso Itamaraty.
Bom. Vou ficando por aqui. Uma vez mais, minha gratidão – e a de Sônia e de Carmem Lícia – pela presença de vocês. Vocês que resgataram a alma da instituição, construíram o encontro com seu selfmais verdadeiro, ao virar a página da sombra e saudar o sol da convivência com os contrários, ao abraçar o pluralismo – a marca maior das grandes instituições.
Minhas desculpas por esse monólogo absurdamente longo. E que me fez desrespeitar o conselho de nosso terceiro filho Thiago, quando comemorava nove anos de idade. Nessa época eu chefiava a Divisão de Estudos e Pesquisas Econômicas do Itamaraty. Mas tinha também um encargo adicional e absorvente de preparar conferências e discursos para o então Secretário Geral, nosso brilhante e sempre inspirado Marcos Azambuja. Isso me impedia, em muitos fins de semana, de jogar o futebol que tanto amo com os filhos. O Thiago se ressentia muito.
Assim, quando perguntaram, naquele aniversário, o que ele queria ser quando crescer, ele simplesmente ficou calado. Depois de tanta insistência, ele finalmente respondeu. Uma resposta à la Paulo Roberto de Almeida. Ele simplesmente disse: “ Eu não sei o que vou ser quando crescer. Mas eu sei o que não quero fazer quando crescer. Não quero fazer conferência e discurso.”
Nossa gratidão – minha, da Sônia e da Carmem Lícia - a todos vocês por estarem na intimidade conosco num momento tão rico de significados para o Paulo, para todos nós e para a nossa instituição.
Sergio Abreu e Lima Florêncio
Brasília, 9 de agosto de 2018.