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sexta-feira, 10 de julho de 2020

Plano Real: 26 anos; minha resenha de um dos bons livros, de Guilherme Fiuza - Paulo Roberto de Almeida

Em 2006, assim que saiu este excelente livro do jornalista Guilherme Fiuza, fiz uma resenha e organizei um lançamento em Brasília com a presença do autor. Uma de minhas primeira frases, na resenha abaixo, era esta: 

"Da maneira como está construído e redigido, o livro daria um bom filme, se planos de estabilização fornecessem roteiros interessantes para a sétima arte."

Por incrível que pareça, o Plano Real deu filme, muitos anos depois, e tive a chance de assistir, o que recomendo, se ainda estiver disponível nas bases de dados cinematográficas, pois é bem feito. Mas, claro, algumas concessões à dramatização são inevitáveis, e todo o filme traz muito ineditismo de um dos principais personagens do Real, Gustavo Franco. Mas vale a pena assistir.

1698. “O Bunker Voador: a aventura eletrizante do Plano Real”, Brasília, 10 dezembro 2006, 4 p. Resenha de Guilherme Fiuza: 3.000 dias no bunker: um plano na cabeça e um país na mão (Rio de Janeiro: Record, 2006, 331 p.; ISBN: 85-01-07342-3). Publicado no blog Book Reviews em 11.12.2006 (http://praresenhas.blogspot.com/2006/12/88-resenha-3000-dias-no-bunker-de.html). Republicado, com uma inserção publicitária sobre o debate de lançamento em Brasília (em 13/12/06, na Livraria Leitura, do Pátio Brasil Shopping), no blog NoMínimo (12/12/2006). Republicado no blog Diplomatizzando (25/05/2017; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/05/real-o-livro-de-guilherme-fiuza-antes.html).


Paulo Roberto de Almeida 


Guilherme Fiuza:
3.000 dias no bunker: um plano na cabeça e um país na mão
Rio de Janeiro: Record, 2006, 331 p.; ISBN: 85-01-07342-3

Como o antigo refrigerante Grapette ou o atual achocolatado Nescau, este livro tem sabor de aventura. Uma aventura que se prolonga no tempo e que ainda não acabou. Marcos Sá Corrêa, na orelha, resume a trajetória do Plano Real: “Começa num governo desmiolado e sem rumo, o do presidente Itamar Franco. E não acabou ainda em outro governo desmiolado e sem rumo, o do presidente Lula”. O mesmo jornalista também registra que se trata de um livro de repórter, com nenhuma fórmula e muita intriga: “Tem pouco mercado e muito ringue de luta livre. Nenhuma tabela e rasteira de ponta a ponta”. Da maneira como está construído e redigido, o livro daria um bom filme, se planos de estabilização fornecessem roteiros interessantes para a sétima arte.
De fato, a reportagem de Guilherme Fiuza se aproxima mais de um roman à clefs do que de uma história linear do Plano Real, ao estilo, por exemplo, da Real História do Real, de Maria Clara do Prado. O jovem jornalista carioca do NoMínimo retraça, em estilo cinematográfico, as diferentes etapas da concepção, implementação e defesa da nova moeda, sem fazer, em nenhum momento, história monetária. São incursões propriamente teatrais aos episódios mais relevantes de um processo que transcendeu, na verdade, a simples introdução de um novo meio circulante no Brasil, para expor, de maneira viva, toda a trajetória macroeconômica do Brasil nas últimas décadas. Trata-se de uma inside story, que se insere numa great history, cujo cenário principal é dado pelo próprio substantivo que fornece o título ao livro: um bunker.
O conceito militar de bunker é, obviamente, o de uma posição ou posto defensivo, não necessariamente fortificado, mas isolado ou protegido dos ataques inimigos pela sua estrutura de aço e concreto, geralmente escondido ou subterrâneo. Meu adjetivo “voador” se deve a que a capa do livro é a de uma planície desolada com o perfil de Brasília ao fundo e um avião solitário num imenso céu em tonalidade ocre. O bunker a que se refere Fiuza foi de fato voador, ou móvel, e é aplicado à pequena equipe de valorosos combatentes da estabilidade macroeconômica que tomou forma a partir da assunção de FHC como ministro da Fazenda, em maio de 1993. “Como era uma metáfora”, explica o autor, “o bunker podia ser em qualquer lugar. E durante um bom tempo a equipe de Fernando Henrique trabalhou de forma totalmente subterrânea...” (p. 44).
O grupo se decompôs ao longo do tempo, mas seu legado, inegavelmente positivo, está conosco ainda hoje, sob a forma de uma economia menos esquizofrênica do que aquela que conhecemos ao longo das últimas décadas do século passado. Os economistas Pedro Malan, Gustavo Franco, Winston Fritsch, Edmar Bacha, André Lara Resende e Persio Arida, mais o administrador Clovis Carvalho foram os integrantes mais intimamente ligados ao poder político do novo ministro da Fazenda. Eles conceberam, implementaram e defenderam o novo plano de estabilização contra os ataques de vários exércitos inimigos, geralmente políticos fisiológicos, economistas românticos, sindicalistas corporativistas (mas isso é uma redundância) e industriais protecionistas. 
Existem vários outros personagens, evidentemente, que interagiram a diversos títulos e em diferentes momentos com o bunker, dentre os quais poderiam ser citados: Sérgio Besserman Vianna, o “comunista” do BNDES convertido às virtudes de uma economia competitiva; Marcelo de Paiva Abreu, que entrou e saiu do governo Collor logo no primeiro dia, ao descobrir que o seu chefe de gabinete, já designado, era um homem de PC Farias; David Zylbersztajn, outro antigo comunista que aprendeu que o socialismo não funcionava e montou o esquema paulista das privatizações e o modelo federal das agências reguladoras; Murilo “Mãos de Tesoura” Portugal, o homem que fechou o caixa do Tesouro ao apetite voraz de gastadores contumazes; José Serra, que chegou, viu, mas não se convenceu, sobretudo pelo lado cambial; além de vários outros, economistas de passagem ou funcionários da burocracia permanente do Estado.
Ator central nessa trama, além de Pedro Malan – o mais longo ministro econômico da história do Brasil, com exceção de Souza Costa, que serviu à ditadura Vargas –, foi o jovem economista da PUC Gustavo Franco, sucessivamente Secretário Adjunto de Política Econômica, diretor de Assuntos Internacionais e presidente do BC. Estrategista econômico, articulador das principais medidas que estiveram na base do lançamento da URV, operador prático – e defensor corajoso – da nova moeda, Gustavo Franco representou, por assim dizer, a verdadeira alma do Plano Real, o que está refletido em seus muitos livros de ensaios e crônicas, desde O Plano Real e Outros Ensaios (1995), até o mais recente Crônicas da Convergência (2006), passando por O Desafio Brasileiro: ensaios sobre desenvolvimento, globalização e moeda (1999), além de várias outras contribuições a livros coletivos ou artigos em periódicos de grande tiragem. 
Ademais de um gosto incomum pela história, para um economista, Gustavo Franco tem um dom também incomum para a polêmica e o debate de idéias, este, infelizmente, muito pouco cultivado no Brasil, reduzindo-se, na maior parte das vezes, a uma troca ácida de acusações entre os contendores. Conhece-se, aliás, no Brasil, a ofensiva invulgar deslanchada pelos economistas ditos desenvolvimentistas contra os fundamentos do plano de estabilização, que foi por eles equiparado a nada menos do que uma operação de rendição ideológica e de submissão prática aos ditames de Washington, aos cânones de neoliberalismo e a não se sabe qual, exatamente, das regras do chamado Consenso de Washington, tão desprezado quanto desconhecido nessas hostes. Fiuza reproduz parte da crítica de uma conhecida professora da USP, marxista, a um artigo de Gustavo Franco sobre as virtudes da abertura comercial para o crescimento econômico: ela parte do “capital mundializado” para condenar o “absoluto domínio do credo liberal”, entre outras bobagens. Franco, em resposta, perguntou apenas por que a professora estava tão zangada: ela “fala da ‘atual etapa do sistema capitalista’ com um verdadeiro nojo, como se estivesse segurando um rato nas mãos” (p. 214). Em outros artigos, ele não deixava de fustigar os “parnasianos” da Unicamp, com sua prosa rebuscada, plena de fetichismos e de financeirização.
Mas, esse é o lado prosaico, digamos assim, do combate diário pela sobrevivência da nova moeda, atacada à direita e à esquerda com igual desenvoltura e inacreditável insensibilidade em relação aos cofres públicos. Havia outros aspectos, preocupantes, da sabotagem, consubstanciada, justamente, na gastança generalizada das estatais e das agências públicas de modo geral. Fiuza relata o caso ocorrido com David Zylbersztajn, levado à direção da Eletropaulo: encontrou um fabuloso contrato com uma empresa de vigilância no qual cada hora de trabalho de um vigilante representava o inacreditável valor de 28 dólares. “O responsável explicou-lhe que, infelizmente, não existiam no mercado seguranças confiáveis por um valor inferior àquele. Zylbersztajn não prolongou a conversa: ‘— Não tem mais barato? Ok, então rescinde todos os contratos. Acabou a segurança. Por esse preço, prefiro o ladrão’” (p. 170). 
O essencial da reportagem de Fiuza está voltado aos ataques especulativos ao real, no bojo das crises financeiras internacionais. Esses ataques tinham pouco a ver, no entanto, com alienígenas de Wall Street, como gosta de acreditar a esquerda, e sim com os espertos capitalistas nacionais, sempre prontos a arbitrar as pequenas diferenças de cotação no valor da moeda, como resultado das suas próprias operações concertadas. Gustavo Franco, atento ao jogo pesado desses brokers, comandou pessoalmente, das mesas de câmbio do BC, operações defensivas e ofensivas, dobrando o mercado com lances ousados e algumas táticas inesperadas. O real sobreviveu a esses ataques especulativos “clássicos”, mas não foi capaz de resistir a uma operação mais singela, consistindo na suspensão do pagamento, em janeiro de 1999, da dívida estadual de Minas Gerais, determinada pelo então governador, e ex-presidente, Itamar Franco: no espaço de poucos dias as reservas se tinham volatilizado, resultando na saída de Gustavo Franco da direção do BC e na própria mudança do regime cambial. Vários lances dramáticos desses dias estão perfeitamente reconstituídos no livro de Fiuza, numa espécie de crônica dos eventos correntes em tempo real. 
Ainda segundo a orelha, 3.000 dias no bunker foi escrito em três meses, quase sempre de madrugada, às vezes virando a noite. Acredito: eu também passei uma madrugada inteira lendo este livro, sem o largar um minuto, com a boca seca e os olhos piscando, impossível largar. A história é muito importante: ela fala do nosso país, como ele foi reconstruído em sua dignidade monetária, que há muito tinha deixado de existir. E não se trata de história documental, insossa, em economês ou juridiquês: é uma história real do real, feita por homens em carne e osso, idéias e sentimentos, conquistas e frustrações. Uma história que estava esperando ser contada.
Poucos sabem, por exemplo, que a inspiração para a URV foi retirada por Gustavo Franco da experiência do rentenmark, a moeda indexada com a qual o “mago das finanças” Hjalmar Schacht salvou a Alemanha da hiperinflação nos anos 1920. Fiuza conseguiu traduzir muito bem os sentimentos do enfant terrible do BC na concepção, montagem e defesa da nova moeda brasileira. Sua obra, o real, ainda está de pé. Seus inimigos de outrora devem a ele o atual sucesso eleitoral. Uma simples palavra de agradecimento, por essa obra de estadista, não seria descabida. Este livro dá todas as razões para esse beau geste...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 dezembro 2006
1698. “O Bunker Voador: a aventura eletrizante do Plano Real”, Brasília, 10 dezembro 2006, 4 p. Resenha de Guilherme Fiuza: 3.000 dias no bunker: um plano na cabeça e um país na mão (Rio de Janeiro: Record, 2006, 331 p.; ISBN: 85-01-07342-3). Publicado no blog Book Reviews em 11.12.2006 (http://praresenhas.blogspot.com/2006/12/88-resenha-3000-dias-no-bunker-de.html). Republicado, com uma inserção publicitária sobre o debate de lançamento em Brasília (em 13.12.06, na Livraria Leitura, do Pátio Brasil Shopping), no blog NoMínimo (12.12.2006). Republicado no blog Diplomatizzando(25/05/2017; link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/05/real-o-livro-de-guilherme-fiuza-antes.html). 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Marighella: a crítica alemã desbanca o filme - Deutsche Welle

Crítica alemã aponta mitificação em "Marighella"

"Só na América Latina a crença na luta armada parece intocada", afirma jornal berlinense "Tagesspiegel". Para o "TAZ", filme ignora contradições da esquerda e quer criar um monumento para Carlos Marighella.
Deutsche Welle, 17/02/2019
   
Marighella, de Wagner Moura
Cena de "Marighella", de Wagner Moura
Der Tagesspiegel – Carlos Marighella, o bom terrorista, 15/02/2019
A luta revolucionária, como conceito, sofreu muito nos últimos anos. Não só por causa do colapso do império soviético, antes disso o comunismo já havia dado cabo de todos os revolucionários. As ilhas da resistência ficaram cada vez menores: Cuba, Vietnã. No fim, alguns países isolados do mundo árabe. [...]
Só na América Latina e – depois da eleição do populista de direita Jair Bolsonaro para presidente – em especial no Brasil, a crença na pertinência da luta armada parece intocada. Um nome sempre a simbolizou: Carlos Marighella, precursor intelectual do conceito de guerrilha urbana. [...]
O herói de [Wagner] Moura é uma figura trágica. Por mais convincente que ele pareça ser no seu sentimento de injustiça – e a junta militar que tomou o poder em 1964 lhe dá motivos suficientes para isso – nenhum caminho conduz da violência para a benevolência das massas. A não ser que se esteja morto e transformado em lenda. E é exatamente essa mitificação que o filme Marighella pretende. [...]
Moura potencializa a imagem de outsider nobre com o fato de seu protagonista ser o único negro do elenco, e isso apesar de Carlos Marighella, com suas raízes indígenas e africanas, não exatamente se diferenciar de seus compatriotas pela cor da pele. Ele era um mestiço, como 38% dos brasileiros. Apresentá-lo como negro – e transformá-lo em alvo com uma frase como "matar um negro significa matar um vermelho" – é sair do conflito político e transformá-lo num conflito racista. E de uma maneira que todos assim o percebem.
RBB – Epopeia cansativa, 16/02/2019
"Não somos terroristas", grita Marighella aos reféns de um assalto a banco. "Somos revolucionários!" Declarações como essa há um pouco demais no filme. O herói tende a monólogos impulsivos e discussões que, apesar da determinação com que são feitas, soam estranhamente sem vida. Dúvida e ambiguidades não estão previstas em Marighella. Isso vale também, é claro, para o protagonista e seus aliados – e sobretudo para o grande antagonista, o investigador Lúcio.
TAZ – A guerrilha sempre tem razão, 15/02/2019
Wagner Moura quer, inconfundivelmente, criar um monumento para Marighella. E Marighella certamente foi uma personalidade carismática. Só que a carência de domínio e um distanciamento em relação a material histórico e pessoa levaram a uma epopeia. Este filme não conhece contradições, por exemplo não tematiza as teorias imperialistas e capitalistas unidimensionais da esquerda de então. Ele prefere sobretudo desabonar a direita.
O sistema de segurança brasileiro de então, de fato em parte fascista, é extensivamente exibido na figura do agente assassino Lúcio, e a reconstrução de cenas de tortura ultrapassa os limites do cinematicamente suportável. A violência institucional obtusa e de fato existente não precisa ser exibida de forma tão naturalista e duradoura como foi feito neste filme.
A estética "Marighella" de Wagner Moura é assim involuntariamente reveladora. Ela revela sobretudo um corte significativo na mentalidade do populismo de esquerda na América Latina e como este, hoje, ajeita a história a seu gosto.
Penetrante e grotesca é a representação da influência do governo americano nos acontecimentos na América Latina. Até hoje ela serve ao populismo de esquerda local como desculpa para o próprio fracasso.
AS/ots
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sábado, 4 de agosto de 2018

Souza Dantas, o querido embaixador - Luiz Antônio Araujo (BBC)

Souza Dantas, um justo entre os justos, um grande diplomata, que soube preservar a dignidade nos momentos mais sombrios da história, com a Europa dominada pelo nazi-fascismo e o Brasil sob a ditadura do Estado Novo, quando Vargas e seu ministro da Justiça denegavam oficialmente vistos para cidadãos de "origem semita". 
O filme de Luiz Fernando Goulart, "Querido embaixador", é baseado na obra "Quixote nas trevas" do historiador Fabio Koifman, e meu amigo Fabio Pereira Ribeiro​ está preparando uma tese, na Sorbonne, sobre os anos franceses do embaixador Souza Dantas. 
Excelente matéria da BBC.
Paulo Roberto de Almeida 

Quem foi o embaixador brasileiro que contrariou Hitler e Vargas para ajudar fugitivos do nazismo

O embaixador Souza Dantas, ao centro, conversando com Oswaldo Aranha (esq.) e Getúlio Vargas (dir.)Divulgação 
O embaixador Souza Dantas, ao centro, conversando com Oswaldo Aranha (esq.) e Getúlio Vargas (dir.)
Raphael Zimetbaum guarda na memória os detalhes do dia em que seu pai viajou de Marselha, cidade portuária do sul da França, com destino a Vichy. Corria o ano de 1940, e os Zimetbaum, oriundos de Antuérpia, na Bélgica, compartilhavam com milhões de outros europeus a condição de refugiados num continente mergulhado na Segunda Guerra Mundial. Entre os indesejáveis pelo ditador nazista da Alemanha, Adolf Hitler, a família de Raphael tinha um agravante contra si: eram judeus.

Quando a França foi invadida pela máquina de guerra do Terceiro Reich, e o governo local trocou a capital francesa de Paris para Vichy, a única esperança de salvação para os judeus em solo francês passou a ser a imigração. Poucos países, porém, permitiam-se acolher os fugitivos, concedendo-lhes vistos de entrada. O Brasil, sob a ditadura do Estado Novo, encabeçada por Getúlio Vargas, não era exceção. Ainda assim, a viagem do pai de Raphael tinha o objetivo de fazer contato com o embaixador brasileiro.
"Meu pai e meu tio foram de Marselha para Vichy de trem. Foram recebidos pelo embaixador no hotel. Ele disse: 'Não há muito que eu possa fazer', e mostrou o telegrama que o proibia de dar vistos. Meu pai insistiu. Ao final da conversa, o embaixador disse: "Já é tarde. Por que vocês não se hospedam num hotel aqui perto e voltam amanhã de amanhã, que eu vou pensar?".
Ao retornar no dia seguinte, os Zimetbaum receberam um papel timbrado da embaixada do Brasil. O documento, redigido em francês, dizia: "Bom para entrar no Brasil". Era o visto que salvaria a vida da família, permitindo-lhe escapar pelo Atlântico da morte certa na Europa ocupada.
No filme "Querido Embaixador", dirigido Luiz Fernando Goulart, Souza Dantas é vivido pelo ator Norival Rizzo
O homem que desafiou duas ditaduras para auxiliar pelo menos mil fugitivos do nazismo não era um jovem idealista e temerário. O embaixador Luiz Martins de Souza Dantas tinha 64 anos em 1940 e só não havia sido aposentado compulsoriamente por idade quatro anos antes em razão de uma exceção aberta por Getúlio Vargas, "tendo em vista os notórios serviços prestados ao governo brasileiro pelo seu atual embaixador na França". 
Nasceu em 1876 no Rio, então capital imperial, numa família carioca de origem baiana, e ingressara no serviço diplomático aos 20 anos, menos de um mês depois da graduação em Direito. Fez uma longa e exitosa carreira. Servira em Berna (Suíça), São Petersburgo (Rússia), Roma, Buenos Aires e novamente Roma, com uma passagem de alguns meses pelo comando do Itamaraty.
Nomeado embaixador em 1919, na capital italiana, Souza Dantas era um diplomata da velha escola do Império, que recrutava servidores entre a elite e valorizava relações pessoais. "Isso explica por que tinha um retrato de Mussolini pendurado na parede da embaixada", escreveu Orlando de Barros, professor do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Quando Souza Dantas trocou a embaixada de Roma pela de Paris, em 1922, o ditador Benito Mussolini foi pessoalmente à estação de trem se despedir, tal era sua popularidade, revela Luiz Fernando Goulart, diretor da filme Querido embaixador, uma cinebiografia com estreia prevista para este sábado (5).
A embaixada na França era o posto mais importante da diplomacia brasileira nos anos 1920. Paris era a capital política e intelectual do mundo, e o francês era a língua franca da diplomacia, das ciências e das artes. Na chamada Cidade Luz, Souza Dantas firmou reputação de bon vivant. Gastava fortunas em jantares e recepções, colhendo, em contrapartida, um prestígio que lhe permitiu ficar no posto por quase um quarto de século. 
Além da foto autografada de Mussolini, exibia na embaixada as imagens do rei da Itália Vittorio Emmanuele; de Santos Dumont, do ex-presidente francês Raymond Poincaré e do poeta italiano Gabriele D'Annunzio (que o chamava de "ambasciatore delle grazie" - embaixador das graças). 
Sob o domínio nazista, um passaporte diplomático poderia representar a diferença entre a vida e a morte
Relatos atribuem ao diplomata brasileiro um time de amantes, especialmente atrizes: Madeleine Carlier - a quem presenteou com uma casa de campo em Nantes -, Marie Bell e Arletty. Segundo um contemporâneo, "os colunistas mediam a importância de qualquer reunião pela nota de sua presença". Seu amigo Heitor Lyra contava que, um dia, convidado pelo embaixador para jantar no Ritz, viu a estilista Coco Chanel, que morava no hotel, abrir um "largo sorriso" e perguntar ao amigo se ele tinha ido visitá-la.
Solteiro até os 57 anos, o embaixador casou-se em 30 de setembro de 1933 com Elise Meyer Stern, viúva americana residente em Paris. Era irmã de Eugene Meyer, dono do jornal The Washington Post. Embora a noiva fosse judia, a cerimônia seguiu o rito católico.
Informado como poucos, Souza Dantas teria comunicado o Itamaraty da queda de Paris em junho de 1940 antes do exército alemão (chamado de Wehrmacht) entrar na cidade. Os nazistas suspeitaram até o final de que fizesse espionagem para os Aliados. Com a retirada do governo francês para Bordeaux e, depois, para Vichy, e a capitulação final ao Reich, a França sofreu uma grave fratura política. Os alemães mantiveram autoridade sobre o Norte, incluindo Paris, enquanto a porção sulista, chamada de Zona Livre, era entregue ao governo colaboracionista do marechal Philippe Pétain.
Souza Dantas teria sido o primeiro embaixador a se transferir para Vichy, numa decisão posteriormente seguida por outros representantes estrangeiros. Permitia, no entanto, que alguns de seus subordinados mantivessem contato com as autoridades alemãs em Paris, a fim de trocar informações que repassava ao Itamaraty.
Pouco antes de deixar a cidade ocupada, passou a expedir vistos diplomáticos para quem os pedisse sem exigir nada em troca. A atitude era uma desobediência frontal à política migratória de Vargas, que, na época, proibia a concessão de vistos a "semitas e outros indesejáveis". Antes mesmo da instauração da ditadura do Estado Novo, em novembro de 1937, o governo Vargas tentara impedir o ingresso de judeus no país por meio das chamadas "circulares secretas" do Itamaraty - a primeira delas, sob o nº 1.127, fora editada em junho daquele ano.
Esta placa comemorativa em Paris reconhece Souza Dantas como um "grande amigo da França"
A maioria dos chefes de missões brasileiras no Exterior cumpria à risca a determinação. Em abril de 1938, menos de um ano depois da emissão da primeira circular, o cônsul-geral em Budapeste, Mário Moreira da Silva, comunicou ao ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, a recusa de visto de entrada no Brasil a 55 indivíduos, "todos declaradamente de origem semita". 
"Os refugiados estávamos submetidos aos maiores escárnios, às maiores torturas, os soldados franceses pegando ratos e enfiando no colo das mulheres, no peito, para espantar, coisa horrorosa. E, no meio disso, nós ficamos, até que, de repente, se ouve que existia um Dom Quixote que se chamava... meu Deus do céu, me escapa agora... o famoso embaixador Dantas, que disse o seguinte: 'Abra as portas da embaixada que eu vou dar vistos diplomáticos'. E deu", conta o ator e diretor teatral polonês Ziembinski, um dos beneficiados pelo diplomata.
A legislação brasileira estabelecia que vistos só poderiam ser concedidos mediante apresentação de documentos como certidões negativas de antecedentes policiais e atestados de saúde, de profissão e de "origem étnica", inacessíveis para refugiados naquelas condições. A maioria dos que procuravam Souza Dantas era portadora dos chamados passaportes Nansen, fornecidos pela defunta Liga das Nações para apátridas.
"Ele assinava vistos até em cardápios de restaurantes", afirma Goulart.
Em 12 de dezembro de 1940, Oswaldo Aranha expediu a circular 1.498, pela qual era reiterada a proibição de concessão de vistos a judeus. Souza Dantas passou então a assinar os documentos com datas anteriores à da circular. Nem todos os que auxiliou se dirigiram ao Brasil. Em fins de 1941, depois de ter sido repreendido pelo governo brasileiro por sua prodigalidade no fornecimento de vistos, tornou-se alvo de inquérito administrativo. Na época, porém, a pressão dos Estados Unidos fazia Vargas se inclinar em favor dos Aliados, e o Brasil romperia relações com o Eixo em janeiro de 1942.
A Praça da Ópera, em Paris, foi o último endereço de Souza Dantas antes da sua morte, em 1954
Enquanto as investigações no Itamaraty prosseguiam, os nazistas invadiram a Zona Livre e bateram à porta da embaixada brasileira em Vichy à procura de arquivos. O conselheiro Trajano Medeiros do Paço, que vivera em Berlim e era fluente em alemão, disse aos militares que os papéis haviam sido queimados. Ao oficial da Gestapo que lhe perguntou a razão da medida, respondeu: "Porque nós conhecemos vocês". 
Os policiais invadiram a embaixada. Chamado em sua residência, Souza Dantas, aos 66 anos, protestou energicamente: "Os senhores estão violando as leis das convenções internacionais. Estamos aqui em solo brasileiro. Peço-lhes imediatamente que se afastem". E ficou sob a mira das pistolas da Gestapo. Foi retido por 14 meses na Alemanha, sendo libertado em troca de prisioneiros alemães detidos no Brasil.
De volta ao Rio, soube que o inquérito do Itamaraty havia sido arquivado, mas foi relegado ao ostracismo até o final da Segunda Guerra. Afetada pela senilidade, a esposa, Elisa, foi levada pela família para os Estados Unidos, onde morreu em 1952. Em abril de 1954, quase octogenário e com a saúde debilitada, foi a vez de Souza Dantas morrer em seu último endereço parisiense, um quarto do Grand Hôtel, na Praça da Ópera. O inventário listava poucos bens. O corpo foi trasladado para o Brasil. 
O nome de Souza Dantas está inscrito no Jardim dos Justos entre as Nações, em Israel, como um dos que ajudaram a salvar judeus do Holocausto.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

CHURCHILL, o filme: grande filme de arte, grande obra historica



CHURCHILL
ver o trailler: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-247743/trailer-19556285/

Direção: 
Gêneros Biografia, Drama, Guerra
Nacionalidades Reino Unido, EUA

SINOPSE E DETALHES

Não recomendado para menores de 12 anos
Inglaterra, 1944, em plena Segunda Guerra Mundial. Às vésperas da realização da Operação Overlord, quando tropas aliadas desembarcaram na Normandia para enfrentar o exército nazista, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill (Brian Cox) batalha nos bastidores para que a ação militar seja adiada. Segundo Churchill, a operação é arriscada demais e colocaria em risco desnecessariamente a vida de milhares de soldados. Entretanto, apesar das constantes reclamações, o general Dwight Eisenhower (John Slatery) segue decidido a levar adiante a investida militar.

A Lei é para Todos: Polícia Federal - o livro, o filme

Acabamos de ver o filme: 

O filme conta a saga da maior e mais bem-sucedida operação de combate à corrupção da história do país – a Operação Lava Jato. Pelo ponto de vista do delegado Ivan (Antonio Calloni) e de sua equipe da Polícia Federal, em conjunto com a força-tarefa do Ministério Público Federal, o longa revela os esforços para desvendar o esquema de lavagem de dinheiro e pagamento de propinas a executivos da Petrobras, empreiteiras, partidos políticos e parlamentares. O thriller mostra ainda o papel decisivo da Justiça para que a investigação não fosse destruída pelas forças políticas envolvidas.

falta ler o livro: 

POLICIA FEDERAL: A LEI E PARA TODOS - 

OS BASTIDORES DA OPERAÇÃO LAVA JATO

autor: Carlos Graieb | Ana Maria Santos

editora: Record

 

A Polícia Federal é protagonista na história da Operação Lava Jato, mas sua atuação impõe uma discrição que instiga a curiosidade sobre os bastidores de suas atividades. Ao acompanhar os policiais envolvidos em cada etapa da investigação, em ritmo de thriller, Ana Maria Santos e Carlos Graieb apresentam o olhar inédito da instituição sobre uma das maiores operações de combate à corrupção da história. Nunca antes um livro expôs tão detalhadamente todas as nuances — decorrentes de dúvidas e incertezas e consequentes de pressões de ordem política — do trabalho do policial.
 DADOS DO PRODUTO
título: POLICIA FEDERAL: A LEI E PARA TODOS - OS BASTIDORES DA OPERAÇAO LAVA JATOisbn: 9788501110527idioma: Portuguêsencadernação: Brochuraformato: 15,5 x 23páginas: 280ano de edição: 2017ano copyright: 2017edição: primeiro capitulo: clique aqui 

 

Filme: Polícia Federal – A Lei é Para Todos [Trailer Oficial]

https://www.youtube.com/watch?v=WdgD4g-JfFA

 

 

terça-feira, 30 de maio de 2017

Real - O Plano por Trás da História - Filme 2016 - breve avaliacao (PRA)

Fomos assistir, Carmen Lícia eu eu, o filme Real: o Plano Por Trás da História, do diretor Rodrigo Bittencourt, lançado no dia 25 de maio, tratando do lançamento e da defesa da nova (aliás ainda conosco) moeda, o Real, estrelado por Emílio Orciollo Neto (como Gustavo Franco), Bemvindo Sequeira (Itamar Franco), Norival Rizzo (FHC) e Tato Gabus Mendes.
O filme tem roteiro baseado no livro do jornalista Guilherme Fiuza, 3.000 dias no Bunker, que eu já havia resenhado em 2006, quando ele foi lançado, afirmando que ele tinha um jeito cinematográfico, mas não acreditando que um plano de estabilização pudesse fornecer matéria conveniente para um filme.
Vejam aqui a minha resenha desse livro:

http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/05/real-o-livro-de-guilherme-fiuza-antes.html

Minha opinião sobre o filme. Para entendê-lo bem é preciso um mínimo de conhecimento sobre como se desenvolveu a história econômica (e política) brasileira desde a redemocratização, com o furor inflacionista desencadeado desde o governo Sarney, e agravado nos dois governos seguintes.
Mas, um filme didaticamente adequado nesse sentido não seria um filme adequado ao grande público, onde emoções e paixões devem estar presentes para ser minimamente aceitável.
Os melhores atores deste filme são indubitavelmente Orciollo, que faz o protagonista principal, Gustavo Franco, e Sequeira, que mostra perfeitamente como Itamar era um presidente que nunca entendeu, realmente, como foi feito o Real, e por isso mesmo está fiel ao original (o único, aliás).
Lamento pelo papel desempenhado pelo ministro da Fazenda, Pedro Malan, que aparece no filme numa postura indigna de seu grande papel durante todos os oito anos do governo FHC.
O próprio FHC não aparece muito bem no filme, mas isso não tem a menor importância.
O líder do PT é imaginado, muito mais articulado como deveria ter sido na realidade.
Com todas as suas qualidades e defeitos, recomendo, ainda assim, o filme, pois se trata do segundo plano mais importante do Brasil, depois do PAEG (1964-66), que foi ao mesmo tempo um plano de estabilização e de reformas econômicas e de retomada do crescimento.


 Um filme de Rodrigo Bittencourt com Emílio Orciollo Neto, Bemvindo Sequeira, Norival Rizzo, Tato Gabus Mendes.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Real: o livro de Guilherme Fiuza, antes de ser o roteiro de um filme - resenha de Paulo Roberto de Almeida

Ainda não reli, para verificar o que escrevi, mais de dez anos atrás, quando li o eletrizante livro do jornalista Guilherme Fiuza, autor deste livro (que já era um bom roteiro de filme) que serviu de base ao filme recém lançado nos cinemas.
Ainda não vi o filme, mas preciso achar o livro, entre milhares de outros em minha kit-biblioteca, para reler, antes de ver a obra filmada.


O bunker voador: a aventura eletrizante do Plano Real

Paulo Roberto de Almeida
  
Guilherme Fiuza:
3.000 dias no bunker: um plano na cabeça e um país na mão
Rio de Janeiro: Record, 2006, 331 p.; ISBN: 85-01-07342-3

Como o antigo refrigerante Grapette ou o atual achocolatado Nescau, este livro tem sabor de aventura. Uma aventura que se prolonga no tempo e que ainda não acabou. Marcos Sá Corrêa, na orelha, resume a trajetória do Plano Real: “Começa num governo desmiolado e sem rumo, o do presidente Itamar Franco. E não acabou ainda em outro governo desmiolado e sem rumo, o do presidente Lula”. O mesmo jornalista também registra que se trata de um livro de repórter, com nenhuma fórmula e muita intriga: “Tem pouco mercado e muito ringue de luta livre. Nenhuma tabela e rasteira de ponta a ponta”. Da maneira como está construído e redigido, o livro daria um bom filme, se planos de estabilização fornecessem roteiros interessantes para a sétima arte.
De fato, a reportagem de Guilherme Fiuza se aproxima mais de um roman à clefs do que de uma história linear do Plano Real, ao estilo, por exemplo, da Real História do Real, de Maria Clara do Prado. O jovem jornalista carioca do NoMínimo retraça, em estilo cinematográfico, as diferentes etapas da concepção, implementação e defesa da nova moeda, sem fazer, em nenhum momento, história monetária. São incursões propriamente teatrais aos episódios mais relevantes de um processo que transcendeu, na verdade, a simples introdução de um novo meio circulante no Brasil, para expor, de maneira viva, toda a trajetória macroeconômica do Brasil nas últimas décadas. Trata-se de uma inside story, que se insere numa great history, cujo cenário principal é dado pelo próprio substantivo que fornece o título ao livro: um bunker.
O conceito militar de bunker é, obviamente, o de uma posição ou posto defensivo, não necessariamente fortificado, mas isolado ou protegido dos ataques inimigos pela sua estrutura de aço e concreto, geralmente escondido ou subterrâneo. Meu adjetivo “voador” se deve a que a capa do livro é a de uma planície desolada com o perfil de Brasília ao fundo e um avião solitário num imenso céu em tonalidade ocre. O bunker a que se refere Fiuza foi de fato voador, ou móvel, e é aplicado à pequena equipe de valorosos combatentes da estabilidade macroeconômica que tomou forma a partir da assunção de FHC como ministro da Fazenda, em maio de 1993. “Como era uma metáfora”, explica o autor, “o bunker podia ser em qualquer lugar. E durante um bom tempo a equipe de Fernando Henrique trabalhou de forma totalmente subterrânea...” (p. 44).
O grupo se decompôs ao longo do tempo, mas seu legado, inegavelmente positivo, está conosco ainda hoje, sob a forma de uma economia menos esquizofrênica do que aquela que conhecemos ao longo das últimas décadas do século passado. Os economistas Pedro Malan, Gustavo Franco, Winston Fritsch, Edmar Bacha, André Lara Resende e Persio Arida, mais o administrador Clovis Carvalho foram os integrantes mais intimamente ligados ao poder político do novo ministro da Fazenda. Eles conceberam, implementaram e defenderam o novo plano de estabilização contra os ataques de vários exércitos inimigos, geralmente políticos fisiológicos, economistas românticos, sindicalistas corporativistas (mas isso é uma redundância) e industriais protecionistas.
Existem vários outros personagens, evidentemente, que interagiram a diversos títulos e em diferentes momentos com o bunker, dentre os quais poderiam ser citados: Sérgio Besserman Vianna, o “comunista” do BNDES convertido às virtudes de uma economia competitiva; Marcelo de Paiva Abreu, que entrou e saiu do governo Collor logo no primeiro dia, ao descobrir que o seu chefe de gabinete, já designado, era um homem de PC Farias; David Zylbersztajn, outro antigo comunista que aprendeu que o socialismo não funcionava e montou o esquema paulista das privatizações e o modelo federal das agências reguladoras; Murilo “Mãos de Tesoura” Portugal, o homem que fechou o caixa do Tesouro ao apetite voraz de gastadores contumazes; José Serra, que chegou, viu, mas não se convenceu, sobretudo pelo lado cambial; além de vários outros, economistas de passagem ou funcionários da burocracia permanente do Estado.
Ator central nessa trama, além de Pedro Malan – o mais longo ministro econômico da história do Brasil, com exceção de Souza Costa, que serviu à ditadura Vargas –, foi o jovem economista da PUC Gustavo Franco, sucessivamente Secretário Adjunto de Política Econômica, diretor de Assuntos Internacionais e presidente do BC. Estrategista econômico, articulador das principais medidas que estiveram na base do lançamento da URV, operador prático – e defensor corajoso – da nova moeda, Gustavo Franco representou, por assim dizer, a verdadeira alma do Plano Real, o que está refletido em seus muitos livros de ensaios e crônicas, desde O Plano Real e Outros Ensaios (1995), até o mais recente Crônicas da Convergência (2006), passando por O Desafio Brasileiro: ensaios sobre desenvolvimento, globalização e moeda (1999), além de várias outras contribuições a livros coletivos ou artigos em periódicos de grande tiragem.
Ademais de um gosto incomum pela história, para um economista, Gustavo Franco tem um dom também incomum para a polêmica e o debate de idéias, este, infelizmente, muito pouco cultivado no Brasil, reduzindo-se, na maior parte das vezes, a uma troca ácida de acusações entre os contendores. Conhece-se, aliás, no Brasil, a ofensiva invulgar deslanchada pelos economistas ditos desenvolvimentistas contra os fundamentos do plano de estabilização, que foi por eles equiparado a nada menos do que uma operação de rendição ideológica e de submissão prática aos ditames de Washington, aos cânones de neoliberalismo e a não se sabe qual, exatamente, das regras do chamado Consenso de Washington, tão desprezado quanto desconhecido nessas hostes. Fiuza reproduz parte da crítica de uma conhecida professora da USP, marxista, a um artigo de Gustavo Franco sobre as virtudes da abertura comercial para o crescimento econômico: ela parte do “capital mundializado” para condenar o “absoluto domínio do credo liberal”, entre outras bobagens. Franco, em resposta, perguntou apenas por que a professora estava tão zangada: ela “fala da ‘atual etapa do sistema capitalista’ com um verdadeiro nojo, como se estivesse segurando um rato nas mãos” (p. 214). Em outros artigos, ele não deixava de fustigar os “parnasianos” da Unicamp, com sua prosa rebuscada, plena de fetichismos e de financeirização.
Mas, esse é o lado prosaico, digamos assim, do combate diário pela sobrevivência da nova moeda, atacada à direita e à esquerda com igual desenvoltura e inacreditável insensibilidade em relação aos cofres públicos. Havia outros aspectos, preocupantes, da sabotagem, consubstanciada, justamente, na gastança generalizada das estatais e das agências públicas de modo geral. Fiuza relata o caso ocorrido com David Zylbersztajn, levado à direção da Eletropaulo: encontrou um fabuloso contrato com uma empresa de vigilância no qual cada hora de trabalho de um vigilante representava o inacreditável valor de 28 dólares. “O responsável explicou-lhe que, infelizmente, não existiam no mercado seguranças confiáveis por um valor inferior àquele. Zylbersztajn não prolongou a conversa: ‘— Não tem mais barato? Ok, então rescinde todos os contratos. Acabou a segurança. Por esse preço, prefiro o ladrão’” (p. 170).
O essencial da reportagem de Fiuza está voltado aos ataques especulativos ao real, no bojo das crises financeiras internacionais. Esses ataques tinham pouco a ver, no entanto, com alienígenas de Wall Street, como gosta de acreditar a esquerda, e sim com os espertos capitalistas nacionais, sempre prontos a arbitrar as pequenas diferenças de cotação no valor da moeda, como resultado das suas próprias operações concertadas. Gustavo Franco, atento ao jogo pesado desses brokers, comandou pessoalmente, das mesas de câmbio do BC, operações defensivas e ofensivas, dobrando o mercado com lances ousados e algumas táticas inesperadas. O real sobreviveu a esses ataques especulativos “clássicos”, mas não foi capaz de resistir a uma operação mais singela, consistindo na suspensão do pagamento, em janeiro de 1999, da dívida estadual de Minas Gerais, determinada pelo então governador, e ex-presidente, Itamar Franco: no espaço de poucos dias as reservas se tinham volatilizado, resultando na saída de Gustavo Franco da direção do BC e na própria mudança do regime cambial. Vários lances dramáticos desses dias estão perfeitamente reconstituídos no livro de Fiuza, numa espécie de crônica dos eventos correntes em tempo real. 
Ainda segundo a orelha, 3.000 dias no bunker foi escrito em três meses, quase sempre de madrugada, às vezes virando a noite. Acredito: eu também passei uma madrugada inteira lendo este livro, sem o largar um minuto, com a boca seca e os olhos piscando, impossível largar. A história é muito importante: ela fala do nosso país, como ele foi reconstruído em sua dignidade monetária, que há muito tinha deixado de existir. E não se trata de história documental, insossa, em economês ou juridiquês: é uma história real do real, feita por homens em carne e osso, idéias e sentimentos, conquistas e frustrações. Uma história que estava esperando ser contada.
Poucos sabem, por exemplo, que a inspiração para a URV foi retirada por Gustavo Franco da experiência do rentenmark, a moeda indexada com a qual o “mago das finanças” Hjalmar Schacht salvou a Alemanha da hiperinflação nos anos 1920. Fiuza conseguiu traduzir muito bem os sentimentos do enfant terrible do BC na concepção, montagem e defesa da nova moeda brasileira. Sua obra, o real, ainda está de pé. Seus inimigos de outrora devem a ele o atual sucesso eleitoral. Uma simples palavra de agradecimento, por essa obra de estadista, não seria descabida. Este livro dá todas as razões para esse beau geste...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 10 dezembro 2006