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quarta-feira, 30 de março de 2016

O golpe militar de 31 de marco de 1964: trabalhos de Paulo Roberto de Almeida

Neste 31 de março de 2016, ecos do golpe militar de 1964 aparecem nos discursos governistas contra o processo de impeachment contra a atual incumbente, que deve perder o emprego em algumas semanas mais.
O discurso petista, ou petralha, neste caso, já está pronto, preventivamente: se houver impeachment, e deve haver, será um golpe, e os mais desonestos remetem ao golpe militar de 1964. Desta vez, afirmam, não será militar, mas "constitucional", seja lá o que isso queira dizer.
Como está marcado um protesto a favor, dos petistas, petralhas e assemelhados neste dia 31, e será inevitável referências -- desairosas, certamente -- contra o golpe militar de 1964, resolvi ver o que eu havia escrito em 2014 -- nos 50 anos do golpe -- sobre esse momento relevante da história política brasileira. Devo ter escrito mais algumas coisas em outros anos também, mas fiquei só em 2014.
Nem tudo o que está listado abaixo está disponível, notadamente minha exposição na Brown University, onde devo ter sido o único a me pronunciar num sentido diferente dos demais palestrantes, todos simplisticamente condenatórios do golpe militar (quando eu, contrariamente a todos eles, simplesmente afirmei que sse tratava de uma crise maior, quando a sociedade, especialmente a classe média, resolveu colocar para fora um presidente inepto, que permitiu inflação e corrupção, e agitação social, um pouco como agora, justamente). Depois vou disponibilizar esse trabalho.
Todos os demais estão linkados, menos um, que não conseguui terminar, e que por isso transcrevo abaixo, na sequência da lista. Um dia termino e coloco à disposição.
Divirtam-se, neste 31 de março. Explico que foi nesse dia que comecei a me politizar muito precocemente, e logo passei à oposição ao regime militar. Por essas e outras passei sete ano num autoexílio. Aprendi muito, lendo história, como recomendariam alguns...
Paulo Roberto de Almeida
30 de março de 2016


O golpe militar de 1964: 
trabalhos de Paulo Roberto de Almeida


2580. “O governo Goulart e o mito das reformas de base”, Hartford, 6 Março 2014, 15 p. Ensaio baseado no trabalho 1990, sobre as falácias em torno do golpe militar de 1964 (10/09/2009), para número especial da Revista Estudos em Jornalismo e Mídia (vol. 11 n. 1, janeiro-junho de 2014; Tema: 50 anos do Golpe Militar de 64; não aceito. Adaptado, ampliado, no trabalho 2590, para a revista do Clube Militar.

2581. “Governance in Brazil during Dictatorship and Democracy: 50 years since the 1964 Military Coup”, Hartford, 8 March 2014, 1 p. Outline of a presentation for a Seminar at Brown University, 9-12 April, 2014: “Brazil: From Dictatorship to Democracy (1964-2014); A Brown Student and Alumni Conference and International Symposium (April 9-12, 2014); Watson Institute for International Studies, Brown University (111 Thayer Street, Providence, Rhode Island); to be prepared as a PowerPoint presentation.

2589. “Governance in Brazil during Dictatorship and Democracy”, Hartford, 14 março 2014, 25 slides para apresentação no “Brazil: From Dictatorship to Democracy (1964-2014)”; A Brown Student and Alumni Conference and International Symposium (Watson Institute for International Studies, Brown University; 111 Thayer Street, Providence, Rhode Island; - April 9-12, 2014).

2590. “Deformações da História do Brasil: o governo Goulart, o mito das reformas de base e o maniqueísmo historiográfico em torno do movimento militar de 1964”, Hartford, 14 março 2014, 22 p. Reelaboração dos trabalhos 1990 e 2580, para fins de publicação, a convite do seu editor, na revista do Clube Militar (Rio de Janeiro: ano LXXXVI, no 452, fevereiro-março-abril de 2014; edição especial: “31 de Março de 1964 – A Verdade”, p. 107-122; ISSN: 0101-6547). Disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/9430621/2590_Deforma%C3%A7%C3%B5es_da_Hist%C3%B3ria_do_Brasil_o_governo_Goulart_o_mito_das_reformas_de_base_e_o_manique%C3%ADsmo_historiogr%C3%A1fico_em_torno_do_movimento_militar_de_1964_2014_). Relação de Publicados n. 1127.

2591. “O Brasil de 1964, e mais além: perguntas e respostas”, Hartford, 18 março 2014, 7 p. Tentando restabelecer a balança dos equívocos deliberados ou involuntários, sobre o golpe e o período militar. Encaminhado aos mesmos interlocutores do trabalho precedente. Em desenvolvimento. [Não terminado, reproduzo abaixo, o que escrevi...]

2595. “O Brasil na crise de 1964 e a oposição armada ao regime militar: um retrospecto histórico, por um observador engajado”, Hartford, 30 março 2014, 15 p. Considerações sobre a conjuntura histórica de 1964 e os anos de contestação armada, aproveitando extratos dos trabalhos 2329 e 2470. Dividido em dez partes para o Instituto Millenium e para o Dom Total. Publicado nas Colunas Dom Total, a partir de 3/04/2014 até 2/05/2014, link: 1. http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4170; etc. até o 10. http://www.domtotal.com/colunas/detalhes.php?artId=4179); divulgado no blog, sob o título geral de “O regime militar e a oposição armada” (1: 31/03/2014; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/03/o-regime-militar-e-oposicao-armada-1.html; 2. 31/03/2014; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/03/o-regime-militar-e-oposicao-armada-2.html; 3. 31/03/2014, link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/03/o-regime-militar-e-oposicao-armada-3.html; 4. 31/03/2014, link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/03/o-regime-militar-e-oposicao-armada-4.html; até o 10. http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/03/o-regime-militar-e-oposicao-armada-10.html).

2717. “Sobre as ‘causas’ do golpe militar de 1964”, Hartford, 23 novembro 2014, 7 p. Sobre artigo de Carlos Fico, “50 anos do golpe: balanço”, blog Brasil Recente, 20/11/2014; link: http://www.brasilrecente.com/2014/11/50-anos-do-golpe-balanco.html?spref=fb), criticando o suposto “medo” da classe média e das elites das reformas de base de João Goulart. Postado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2014/11/sobre-as-causas-do-golpe-militar-de.html), no Academia.edu (link: https://www.academia.edu/10006736/2717_Sobre_as_causas_do_golpe_militar_de_1964_2014_) e disseminado no Facebook.

O Brasil de 1964, e mais além: perguntas e respostas

Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor universitário

A passagem de meio século desde o movimento civil-militar de 31 de março de 1964, que derrocou um governo e inaugurou um outro, teve o efeito de reforçar a grande divisão política existente entre os defensores e os opositores daquele evento histórico e do processo que se lhe seguiu, ambos com enormes consequências para o Brasil atual. Essa divisão, na verdade, sempre existiu, mas ela parece não se refletir tanto no plano do regime constitucional em vigor, quanto se revela na mentalidade dos atores políticos.
O país mudou significativamente desde aquela época, mas aparentemente isso não repercutiu da mesma forma nas percepções respectivas dos dois grandes grupos de atores políticos que estiveram dos dois lados da contenda em 1964, e que hoje voltam a se digladiar na arena política: os militares, que estiveram no centro das transformações então ocorridas, e as esquerdas, as grandes derrotadas naquele processo, mas que, desde 2003, ocupam grande parte do cenário político, com maior intensidade nos meios de comunicação e no sistema educacional (aqui desde sempre, como se sabe). Como revelado nos inúmeros debates, nem sempre racionais ou objetivos, em torno desses processos, eles deixaram profundas marcas no Brasil contemporâneo, tanto positivas quanto negativas, mas os jovens de hoje não sabem discernir por que, exatamente.
Percebe-se um acirramento de posições e muitas diatribes, entre defensores e opositores da ruptura de regime e do longo período dominado pelos militares, nem sempre com posicionamentos didáticos, que poderiam esclarecer aos mais jovens o que foi, o que representou, e quais implicações tiveram os eventos e processos iniciados entre os anos 1961 e 1964 e que redundaram numa mudança fundamental da política e da economia no Brasil, com consequências que se estendem aos dias de hoje.
Tenho lido muita coisa sobre o período e suas consequências para os dias atuais, concordando com alguns escritos, discordando de outros, mas percebendo, sobretudo, o espírito maniqueísta que anima muitas dessas posições favoráveis ou contrárias ao movimento de 1964. Em função dessa constatação, resolvi elaborar esta livre digressão em torno do assunto, comentando, em formato de perguntas e respostas, o que se me afigura relevante em torno do assunto, ou seja, o que representou, exatamente, 1964 na vida do país, suas repercussões, bem além do que pensavam seus promotores imediatos, nos diversos campos de importância nacional, e dando a minha visão dos eventos e dos processos ligados a essa data. Espero que meus argumentos possam ajudar a esclarecer algumas dessas dúvidas que muitos jovens da atualidade mantém sobre o Brasil de meio século atrás.
Creio ser importante informar, por dever de honestidade e de transparência, que, em 1964, eu tinha apenas 14 anos, e não tinha, até então, uma posição definida sobre os eventos; justamente, em função deles, me politizei rapidamente, tornando-me um opositor decidido do regime militar então inaugurado; isso me levou a me ligar a grupos de esquerda que buscavam derrubar o regime, e depois a um longo exílio de sete anos na Europa, quando continuei a combater, por outros meios, o regime autoritário, mas também lendo, me informando e refletindo sobre todo o processo. Aos poucos fui revisando minhas concepções sobre a economia e a política, no Brasil e no mundo, e é com base em intensas leituras, uma grande experiência internacional adquirida em viagens a quase todos os continentes, e muita autocrítica, que cheguei a algumas das respostas que apresento aqui, em total independência em relação aos dois grupos de atores políticos acima mencionados.

1964 representou um golpe militar no Brasil?
Não exatamente. Golpes militares se manifestam sob a forma de quarteladas, controle do palácio presidencial, prisão ou envio para o exílio do chefe de Estado derrocado, e fechamento ou alteração dos demais poderes do Estado. Não foi o que ocorreu no país, pois o Congresso não foi fechado, o presidente decidiu sair do país, e nunca houve um planejamento centralizado para concretizar um golpe de Estado. O que ocorreu foi uma formidável crise política, aliás latente desde muitos anos, e as elites se revelaram incapazes de resolver suas diferenças pela via normal da democracia, fazendo apelo – ambos os lados – aos militares, para virar o jogo a seu favor. As várias crises foram criadas e mantidas basicamente pelos políticos, com eventual intervenção tópica de militares em diversos momentos do processo político brasileiro desde o início da Guerra Fria e no decorrer dos anos 1950. O período que sucedeu à renúncia do presidente Jânio Quadros, após menos de sete meses de governo, exacerbou todo o processo, sobretudo depois da revolução cubana e do envolvimento soviético na ilha convertida em bastião do socialismo na América Latina.
Os militares brasileiros, como vários outros na região, se opunham vigorosamente ao comunismo, com total apoio dos Estados Unidos, e no caso do Brasil havia a memória ainda vida da intentona comunista de novembro de 1935, que não apenas inaugurou o anticomunismo como política oficial do Estado brasileiro, como foi um dos fatores mais importantes para a instauração do Estado Novo, dois anos depois. Em 1964, porém, os militares mais do que iniciar um golpe, seguiram o movimento que partia de certas lideranças políticas – os governadores dos três principais estados do país – e que era alimentado pelo imenso temor da classe média em relação ao comunismo e à erosão inflacionária de seus ganhos e na poupança. As iniciativas de políticos golpistas ou de fato preocupados com os rumos do país – todos eles prováveis candidatos nas eleições de 1965 – na sensibilização das lideranças militares regionais, bem como a pressão de amplos setores da opinião pública empurraram os militares a ações não necessariamente coordenadas, mas que acabaram confluindo na queda do governo, que mais abandonou o poder do que foi expulso por um golpe.

O Brasil estava ameaçado de ter um regime comunista?
Improvável que isso ocorresse; os militares, justamente, jamais o permitiriam, e os próprios comunistas não estavam preparados, nunca estiveram, para tomar o poder e assumir o comando do país. Mas, como em 1935, provavelmente, havia a enorme ilusão de que tal mudança fosse possível, em parte estimulada por impulsos externos, em grande medida alimentada pelos próprios comunistas, que queriam forçar mudanças no Brasil, sem necessariamente apostar novamente na tomada de poder. O fantasma do comunismo estava em todas as partes, com o aparente fortalecimento pós-guerra da União Soviética, a grande simpatia gerada pela revolução cubana em todos aqueles que explicavam o subdesenvolvimento da América Latina pela “exploração imperialista”, ou nos que acreditavam que os problemas do Brasil eram a existência do latifúndio, a ausência de uma reforma agrária e a incapacidade da “burguesia industrial” em fazer o país avançar de modo autônomo e rapidamente. Percepções são, por vezes, mais poderosas do que processos reais, e as percepções apontavam para a possibilidade de um regime comunista no Brasil, sem que houvesse chances reais disso ocorrer.
Da mesma forma, muitos militares daquela geração, ainda ativos atualmente, acreditam que os atuais detentores o poder estejam comprometidos com o projeto de um Brasil comunista, mas essa percepção não tem qualquer fundamento na realidade, ainda que existam muitos comunistas entre os companheiros do partido hegemônico. Não pelo alegado “fim da História”, mas pela lógica elementar dos processos econômicos, tal possibilidade está excluída completamente, o que não significa que o projeto atual não passe pelas mesmas concepções de Estado e sociedade que os militares alimentaram durante a maior parte de seu itinerário dentro dos processos decisórios que criaram o Brasil contemporâneo: um Estado forte, intervencionista e dirigista, comprometido com uma versão conhecida do nacionalismo econômico, que passa pelo protecionismo e pela autonomia quase completa da oferta nacional em relação ao abastecimento externo. Em outros termos, o Brasil atual não é muito diferente do “socialismo” estatal.

Era o Governo Goulart era uma administração reformista, democrática, comprometida com reformas importantes para a sociedade brasileira?
Talvez em intenção, mas totalmente inepto para o que pretendia fazer, inclusive partindo de diagnósticos equivocados sobre a realidade brasileira e propondo soluções que tornariam o Brasil pior, não melhor, do que já era: uma economia atrasada, fechada sobre si mesma, dotada de um Estado ineficiente, sem uma visão clara do que era preciso empreender para transformar o Brasil num sentido progressista e moderno. Isto não quer dizer que o movimento que derrubou o governo Goulart e implantou um novo regime no Brasil tivesse ideias precisas sobre o que era preciso fazer. Os militares, estimulados pelos civis conspiradores (vários golpistas, de fato), estavam antes de tudo evitando o que se imaginava um mal maior, que era a imposição de um regime de tipo socialista no Brasil. Goulart dava sinais – empurrado por espíritos mais radicais como Brizola – de que faria tudo para implantar as suas “reformas de base”, com o Congresso ou sem ele, “na lei ou na marra”, como proclamava Brizola.
Por um determinado momento, tanto do lado dos “reformistas”, quando do lado dos golpistas, se pensou que o Brasil estava, de fato, e na “melhor” das hipóteses, no limiar de um golpe ao estilo peronista ou nasserista, o que teria sido inaceitável para capitalistas e líderes militares; na pior, seria a inauguração de um regime cubano ou maoísta, improvável, sob vários aspectos, mas essa era uma das percepções em voga entre os militares; elas provavelmente os induziram a passar decisivamente à ação.
Goulart poderia encarnar tendências reformistas sinceras, mas no fundo era um líder não só timorato, mas basicamente incompetente para as grandes tarefas reformistas que estavam na agenda dos movimentos da esquerda moderada. Ao final, ele acabou buscando apoio nos líderes sindicais e em lideranças comunistas que tinham um outro projeto para o Brasil. As “reformas de base” que tinham sido propostas por reformistas como San Tiago Dantas não tinham nenhuma chance de serem implementadas na forma como ele pretendia. Elas terminaram sendo gradualmente efetivadas pelo novo regime.

O que regime que se instalou no Brasil em 1964, e que acabou durando 21 anos, era um regime militar?
Era certamente um regime dominado por militares, mas dificilmente se poderia chamá-lo de militar, no sentido clássico da palavra. Nem se pretendia, ao início, que ele durasse duas décadas, pois o projeto imediato era afastar os perigos presumidos e inverter o caos político e administrativo que caracterizou os dois últimos anos de Goulart. Castelo Branco, o primeiro general presidente, empossado pelo Congresso, chegou a pensar que as eleições previstas para 1965 pudessem ser realizadas, mas o cenário político se inverteu, com eventuais ameaças de reações armadas por grupos de esquerda ou brizolistas. Por um conjunto de circunstâncias, inclusive derivadas dessas percepções e de uma direita militar bem mais radical do que as posições basicamente civilistas e democráticas de Castelo Branco, o regime continuou a ler comandado por militares – exclusivamente generais do Exército, com uma espécie de colegiado militar a endossar as decisões sobre os “sucessores” – mas os governos não eram dominados por militares, mas essencialmente por técnicos civis, tecnocratas, e alguns políticos.
O Congresso só foi fechado em circunstâncias excepcionais, e as medidas mais drásticas – como repressão violenta, censura e violações repetidas dos direitos humanos, como o uso da tortura, pela polícia e pelos militares – ocorreu concomitantemente aos ataques deslanchados pela guerrilha urbana e rural. A esquerda armada não reconhece até hoje que ela foi responsável em grande medida pelo endurecimento do regime, e por sua “militarização” nos momentos de maiores enfrentamentos contra os grupos guerrilheiros. Mesmo assim, o governo não se tornou mais militar, pois as políticas econômicas e setoriais continuaram a serem pautadas por objetivos de desenvolvimento econômico, não perseguindo metas exageradas de potência militar. De fato, os militares queriam transformar o Brasil numa “grande potência”, mas tal objetivo era perseguido mediante instrumentos basicamente civis, de fortalecimento econômico e de capacitação tecnológica. Igualmente no plano político, os militares brasileiros eram essencialmente legalistas, buscando sempre dourar o arbítrio que praticavam por meio de atos institucionais, ou mudanças na Constituição.
Fora dos ministérios propriamente militares, os únicos profissionais da carreira que exerceram cargos ministeriais eram da reserva, ou passavam a ela quando assumiam algum cargo numa autarquia, com muito poucas exceções. Uma comparação do regime “militar” brasileiro com seus congêneres no resto da América Latina comprovaria o caráter essencialmente civilista dos governos brasileiros mesmo em momentos de quase completa militarização no continente. Os orçamentos militares, por uma medida, nunca corresponderam a um regime verdadeiramente militarista.

A oposição que atuou nos “anos de chumbo” do regime militar, tentando derrubar o governo de armas na mão, estava lutando pela democracia?
 Absolutamente, e isso eu posso afirmar por conhecimento direto. Nenhuma das organizações que adotou o caminho das armas, recusando a via política, de acumulação de forças, proposta pelos políticos de oposição e pelo Partido Comunista de linha soviética, estava lutando apenas para derrubar o governo; a intenção era transformar completamente o regime político e econômico no sentido da “ditadura do proletariado”. Obviamente, o cálculo estratégico dessas organizações era completamente equivocado e nunca correspondeu ao que a sociedade brasileira esperava como regime politico e como sistema econômico. A alegação de que o regime militar não deixou nenhuma outra via de atuação aos seus opositores é totalmente falsa, inclusive porque o início de atentados, de assaltos, sequestros e mesmo assassinatos a sangue frio se deu numa fase anterior ao endurecimento do regime, tendo sido uma estratégia traçada em Havana pelas lideranças castristas, como forma de aumentar a pressão sobre o imperialismo, durante a fase mais aguda da guerra do Vietnã. O Brasil se tornou pior, durante os “anos de chumbo”, por causa da esquerda armada, não por causa do regime militar.

O retorno a um regime civil no Brasil, a partir de 1985, representou uma melhoria de padrões na administração pública ou maior crescimento econômico?
O regime autoritário modernizador do Brasil foi essencialmente reformista, em todas as áreas passíveis de serem transformadas no sentido da eficiência burocrática – que costuma caracterizar todas as estruturas militares, feitas de planejamento, muita logística e cálculo quanto aos resultados – e acelerou os processos de criação de riqueza, aumentando a carga fiscal, mas também a taxa de investimentos e a concentração de capital. Na primeira metade do regime, o Brasil conheceu as maiores taxas de crescimento econômico de sua história, fase que foi interrompida pelos dois choques do petróleo e pela relutância dos governantes civis e militares em fazer os ajustes necessários, o que provocou o super-endividamento e as pressões inflacionarias, que acabaram precipitando as crises dos anos 1980.
A segunda fase, final, foi errática, o deveria ter sido corrigido por um governo comprometido com a estabilidade e a responsabilidade fiscal, o que infelizmente não ocorreu. Ao contrário, não apenas os governos que se seguiram não souberam adotar as ferramentas estabilizadoras requeridas para aquele momento, mas o próprio Congresso Constituinte agravou a situação ao aprovar um rol imenso de benefícios sociais sem qualquer sustentação na base fiscal. Desde então, o Brasil vem se arrastando no baixo crescimento, tanto em função desse compromisso estrutural com a redistribuição, em lugar da acumulação para fins de investimento, quanto em virtude de uma quebra de padrões de qualidade na administração pública (com exceção do governo reformista de Fernando Henrique Cardoso, ele também vítima de crises financeiras externas).
Obviamente não foi o regime autoritário, ou militar, que produziu altas taxas de crescimento econômico nos anos 1970, assim como não foi exatamente a democracia, em si, que atenuou o ritmo do crescimento, mas políticas econômicas desajustadas aos desafios internos e externos a cada momento da conjuntura nacional e internacional. O principal erro dos militares foi, provavelmente, a exagerada estatização e autarquia que marcaram as políticas econômicas, que eram essencialmente desenhadas por civis, ou seja, tecnocratas, embora os militares indubitavelmente pressionavam por altas taxas de expansão do produto, como forma de trazer o Brasil para o pelotão de frente da economia mundial (o que de certa forma foi logrado, com algumas distorções). Os governos civis que se seguiram não corrigiram os erros mais visíveis, ao mesmo tempo em que agravaram os desequilíbrios fiscais, que só seriam corrigidos depois de fortes impulsos inflacionários pela equipe econômica reunida pelo ministro Fernando Henrique Cardoso, sob o governo Itamar Franco. Como presidente, FHC conduziu o maior processo de reformas do Estado e das estruturas econômicas do país desde o regime militar, mas os padrões de qualidade da administração pública foram novamente e dramaticamente reduzidos sob os governos petistas que se seguiram, sem que se tenha recuperado o impulso de crescimento (temporariamente elevados apenas por indução externa, graças à demanda chinesa por produtos primários brasileiros de exportação).
  
[A continuar...]

Hartford, 18 de Março de 2014.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Paraguai: o quase-golpe de 1996 na versao do ABC Color (artigo de Marcio Dias)

O mais famoso jornal paraguaio faz um editing à sua maneira no artigo original do Embaixador brasileiro Marcio de Oliveira Dias, o homem que impediu o golpe de Oviedo contra Wasmosy.
A versão original pode ser conferida aqui:
http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2015/11/o-quase-golpe-no-paraguai-e-origem-da.html
A versão em espanhol, editada pelo jornal paraguaio, o mais virulentamente antibrasileiro (o que parece ser um esporte nacional), pode ser conferida aqui:
http://www.abc.com.py/nacionales/diplomacia-brasilena-ayudo-a-evitar-golpe-1431429.html

Divirtam-se.

Paulo Roberto de Almeida  


ABC Color, 30 de Noviembre de 2015 12:11

 Brasil “ayudó a evitar golpe” de Lino Oviedo
Casi 20 años después, un exembajador brasileño en Asunción cuenta entretelones de cómo Brasil -mediante su diplomacia- ayudó a que en 1996 no ocurriera un golpe de Estado militar encabezado por el desaparecido general Lino César Oviedo.
Brasil, mediante su diplomacia, ayudó a Paraguay a evitar un golpe de Estado militar encabezado por el fallecido general Lino César Oviedo contra el entonces presidente Juan Carlos Wasmosy. Es lo que relata el exembajador de Brasil en Asunción, Marcio De Oliveira Dias, quien publicó un extenso relato en una columna del diario O Globo.
Según dijo, revela detalles del importante episodio para demostrar la gran capacidad de quien considera fue “uno de los grandes diplomáticos brasileños”: Sebastián Do Rego Barros Netto, conocido por su entorno cercano como “Bambino”. “Si Bambino no estuviese al frente de Itamaraty, tal vez Paraguay hubiese sufrido un golpe de Estado militar que desmoralizaría al Mercosur”.
Era 1996. Barros Neto era secretario general en Itamaraty (Palacio-sede del Ministerio de Relaciones Exteriores de Brasil) y De Oliveira Dias, embajador en Asunción. Juan Carlos Wasmosy, presidente electo democráticamente, se desempeñaba bajo la permanente amenaza del entonces comandante general del Ejército Lino César Oviedo, quien “poco o nada hacía para disimular sus pretensiones presidenciales”, relata el exembajador.
Instruido por el área política de Itamaraty, De Oliveira Dias prestó especial atención a los movimientos de Oviedo. Wasmosy le contó al embajador de sus intenciones de destituir a Oviedo y el diplomático, quien ya había discutido el asunto con la cúpula de Itamaraty, le aseguró al presidente paraguayo el apoyo del gobierno brasileño, encabezado entonces por el presidente Fernando Henrique Cardoso.
Como el embajador observaba a Oviedo, este seguía de cerca los movimientos de Wasmosy, por lo que una ida del presidente a Brasil precipitaría la acción golpista, sigue narrando. He ahí el surgimiento de un plan que permitió a Wasmosy salir sigilosamente de Paraguay al vecino país. “Aproveché la cercanía de mi cumpleaños y transformé la cena que sería para el personal de la embajada en una gran recepción, a la cual invité a la cúspide del mundo político paraguayo, incluso a Oviedo”, recuerda y agrega que Wasmosy fue advertido sobre la presencia del general.
“Con las cúpulas política y militar de Paraguay, bebiendo, comiendo y bailando en la residencia del embajador de Brasil, Wasmosy despegó tranquilamente desde su estancia en el interior y llegó hasta el aeropuerto militar de Brasilia”, cuenta. Wasmosy fue discretamente recibido por “Bambino”, quien a esa hora, las 21:30 de un sábado, estaba ya libre del ojo de la prensa. Todo el plan se coordinó a través de teléfonos satelitales, para evitar que Oviedo monitoree lo que estaba ocurriendo.
El lunes siguiente, con la seguridad del apoyo del Brasil, Wasmosy llamó a Oviedo a exigirle su renuncia. Oviedo pidió tiempo y al mediodía Wasmosy insistió, le dijo que si quería responder con un golpe, que lo hiciese pero que él no ordenaría que las fuerzas que lo apoyaban reaccionasen, a fin de que cualquier derramamiento de sangre quede exclusivamente bajo responsabilidad de Oviedo.
El general guardaba silencio. La embajada norteamericana emitió entonces un comunicado en el que condenaba la resistencia de Oviedo y reafirmaba su apoyo al presidente constitucional. Los embajadores de Estados Unidos, Argentina y Brasil, a pedido de Wasmosy intentaron hablar con Oviedo pero no tuvieron éxito.
Ya entrada la noche, De Oliveira Dias sugirió a Bambino que promueva un contacto entre Oviedo y el ministro general del Ejército Zenildo Lucena, -a quien Oviedo respetaba porque fue su instructor en Asunción. Bambino comentó a De Oliveira, que Oviedo le pareció bastante sereno y garantizó que no se levantaría en armas, pero que se ocuparía de que se haga con Wasmosy lo que Brasil hizo con Collor (presidente Fernando Collor de Melo, quien fue enjuiciado penalmente por el Congreso por hechos de corrupción).
Wasmosy y dos de sus hijos entretanto se refugiaban en la embajada americana. “El presidente terminaba de escribir a mano un documento con su renuncia, exigida por Oviedo bajo amenaza de bombardear la casa presidencial”, cuenta. Con la renuncia de Wasmosy, Oviedo se encargaría personalmente del vicepresidente y haría que el presidente del Congreso asuma la presidencia. El plazo para la renuncia de Wasmosy era las 2 de la madrugada. Hugo Aranda, empresario ligado a Wasmosy y antes a Oviedo, sería el portador del documento; su casa sería el punto de encuentro entre los mensajeros de Oviedo y Wasmosy.
“Pedí a Wasmosy que no enviase el documento hasta que yo me comunicara con mi gobierno, con la debida delicadeza, tomé el papel. Con la renuncia segura conmigo, desperté a Bambino a las 02:40 y le expuse la situación. Coincidimos en que la prisa de Oviedo se debía a la dificultad que tendría para implementar el 'golpe blanco' cuando estén abiertas las cancillerías del continente y en pleno funcionamiento de sus gobiernos. Por la imposibilidad de tomar cualquier medida a aquella hora, acordamos intentar ganar tiempo para alcanzar la mañana del martes 23, sin que ninguna acción de fuerza ocurriese”, recuerda.
Mientras Wasmosy insistía en obedecer para evitar derramamiento de sangre, De Oliveira Dias le dictó un pedido de permiso provisorio en términos que difícilmente serían aceptados por el Congreso. El diplomático le pidió permiso entonces para romper la renuncia que había escrito la noche anterior. Wasmosy tuvo el instinto político de guardar los pedazos de aquella renuncia escrito de puño y letra. “Y una imagen que nunca olvidará es la expresión del embajador norteamericano cuando rompí la renuncia y dicté al presidente los términos del papel con el cual podíamos obtener el tiempo necesario para neutralizar la maniobra de Oviedo”, dice.
Oliveira Dias acompañó a Aranda y se encontró con el emisario de Oviedo y el presidente del Congreso, a quien instó a que asumiera solamente si “la renuncia fuese inapelablemente explícita y legalmente incontestable. Lo que sabía no podía ser porque ‘saltaba’ al vicepresidente”. Oviedo recibió el papel y preguntó al presidente del Senado si podría asumir en la mañana siguiente, pero este contestó no podía hacerlo dentro de la ley y que mínimamente tendría que someterlo al pleno, enfureciendo a Oviedo, quien mandó a buscar en los archivos la renuncia de Stroessner para que se redacte en los mismos términos y Wasmosy lo firme.
El presidente paraguayo estaba dispuesto a firmar por miedo a que Oviedo cumpla las amenazas, dice el exembajador en su relato. Agrega que persuadió a Wasmosy de que no firme, porque creía que Oviedo no iría a bombardear la residencia presidencial, ya que estaba desocupada así como el centro de la ciudad, era simplemente un juego para forzarlo. A la mañana siguiente, a pedido de Domingo Laíno, De Oliveira Dias, Laíno y Guillermo Caballero Vargas (de la oposición) se reunieron. El diplomático sugirió a los opositores emitir una resolución por la cual rechazaban siquiera analizar cualquier pedido de renuncia del presidente o del vice. Y lo que mucho me pidió fue: “¿Embajador, puedo decir que la idea fue mía?”.
En el Palacio de López estaban embajadores acreditados, la gran mayoría de diputados y senadores, resueltos a no aceptar el análisis de una renuncia, estaban líderes de partidos, empresarios, “un gran festival cívico-democrático”, pero del otro lado de la ciudad estaba Oviedo con los cañones. Ya sin salida, dice el exembajador, porque el golpe fracasó por la decida reacción internacional y bloqueado por el Senado, pero Wasmosy temía una acción desesperada del militar.
A esas alturas, Bambino y el ministro general del Ejército Zenildo Lucena volvieron a hablar. Oviedo pidió una salida decorosa. El presidente, sus pocos ministros de confianza y los embajadores, sugirieron dos alternativas: darle la embajada en Bonn (ciudad de Alemania) o el Ministerio de Defensa, que a pesar del “pomposo nombre está fuera de la línea de mando”, y cualquier ministerio exigía el pase previo a reserva, lo que disminuiría el apoyo de los generales a Oviedo. El ministro del Interior llevó la oferta y Oviedo aceptó el Ministerio.
Los cancilleres del Mercosur llegaron a Asunción, ya que el propio Bambino los buscó en su avión y todos aprobaron el acuerdo como la mejor solución posible. A la mañana siguiente, Oviedo transfirió el comando y se fijó su asunción en el Ministerio de Defensa para el siguiente día. Cuando se conoció la oferta del Ministerio de Oviedo, comenzaron las críticas a Wasmosy y se empezó a pensar en un juicio político.
Por otra parte, al traspasar el mando a Oviedo surgen quiebres en la unidad de apoyo del general, a quien piden declinar del cargo, mientras Wasmosy y el nuevo canciller que convenza a Oviedo de seguir. “Tuvimos una larga y áspera conversación, dos horas”, recuerda. Oviedo dio las primeras señales de “aflojar”, mientras Wasmosy seguía temeroso de una reacción del militar, por lo que Bambino pidió al presidente brasileño que 'encoraje' a su par de Paraguay a suspender el nombramiento. “Con la llamada del presidente brasileño, Wasmosy cobró aliento definitivo”, describe. El presidente se preparó para un discurso y se dirigió al Palacio de López, donde ya estaba llegando Oviedo para asumir.
Después del pronunciamiento del presidente, sin apoyo comenzó una carrera política. “No es que no haya tenido éxito, y después de una serie de hechos, incluso una detención, terminó muriendo en un accidente”, dice. “El caso es sin dudas un evento impar en la historia diplomática brasileña, deshacer un golpe militar en un país amigo por medio de la acción diplomática”, califica. El canciller Lampreia, que estaba de permiso en ese entonces, calificó el hecho como “la acción más intervencionista que Brasil ya realizó en este siglo”, pero el presidente Cardoso cuenta en su libreo “Diarios de la Presidencia” que esta acción fue hecha en nombre del Mercosur, mediante De Oliveira Dias y Barros Netto.

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O quase golpe no Paraguai e a origem da clausula democratica do Mercosul - Marcio Dias


O quase-golpe paraguaio que desmoralizaria o Mercosul, mas que foi obstado pelo Brasil e pelos EUA, e que deu origem à cláusula democrática do Mercosul, atualmente em desuso num bloco bolivarianizado. Depoimento de Marcio de Oliveira Dias, ex-embaixador em Assunção na ocasião e um dos protagonistas do episódio, em artigo histórico e inédito. Material para a história dos dois países e do Mercosul.
O jornal paraguaio ABC Color retomou a matéria: 
Paulo Roberto de Almeida


Quando o Brasil ajudou a impedir o golpe de Oviedo
Se Bambino não estivesse à frente do Itamaraty, talvez o Paraguai tivesse sofrido um golpe de Estado militar que desmoralizaria o Mercosul
por Marcio de Oliveira Dias, ex-embaixador em Assunção
O Globo, 29/11/2015

Wasmosy em 1997: momento-chave - Rafael Urzua / Reuters/19-6-1997


Deixou-nos há poucos dias, vítima de um tolo acidente doméstico, o embaixador Sebastião do Rego Barros Netto, conhecido dos colegas e amigos como Bambino. Um dos grandes diplomatas brasileiros, colega de turma e particular amigo meu. Além da convivência funcional, éramos companheiros de tênis, bridge, comilanças. Um homem que sentia prazer na vida, que levava tudo com seriedade profissional temperada por um grande bom humor.
Por volta de 30 anos de carreira, protagonizamos um importante episódio das relações internacionais brasileiras, até hoje um pouco escondido do conhecimento público, mas que agora me disponho a revelar, muito como homenagem a Bambino. O ano era 1996, Bambino era o secretário-geral do Itamaraty, na ocasião substituindo o ministro Luiz Felipe Lampreia, grande amigo de nós dois, e eu era o embaixador em Assunção. O Paraguai era presidido por Juan Carlos Wasmosy, democraticamente eleito. Havia, entretanto, uma permanente ameaça de golpe de Estado por parte do ambicioso general Lino Cesar Oviedo, comandante geral do Exército, que pouco ou nada fazia para disfarçar suas pretensões presidenciais. Instruído pela área política do Itamaraty, prestei desde logo especial atenção a Oviedo e seus movimentos.
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Wasmosy contou-me que pretendia demitir Oviedo, mas tinha receio de que ele retrucasse com um golpe. Como já discutira o tema com a cúpula do Itamaraty, pude assegurar-lhe o apoio do governo brasileiro, mas Wasmosy disse-me que gostaria de ter a garantia pessoal do presidente Fernando Henrique Cardoso. Como Oviedo o mantinha sob observação constante, uma ida sua ao Brasil poderia precipitar a ação golpista. Alertou-me também que Oviedo monitorava as comunicações das embaixadas mais importantes. Para articular sigilosamente o encontro com Fernando Henrique, aproveitei a proximidade de meu aniversário e transformei o jantar que iria dar ao pessoal da embaixada numa grande recepção, para a qual convidei o topo do mundo político paraguaio, Oviedo inclusive. De acordo com Wasmosy, anunciei que ele estaria presente à festa.

Atenção de general foi desviada
Com as cúpulas política e militar do Paraguai bebendo, comendo e dançando na residência do embaixador do Brasil, Wasmosy tranquilamente decolou de sua estância no interior e chegou ao Aeroporto Militar de Brasília, onde, instruídos seu comandante e auxiliares, foi recebido discretamente por Bambino, que o levou ao Palácio da Alvorada, àquela hora (21h30m de sábado) já livre do assédio da imprensa. Tudo combinado pelo telefone de satélite — imune à monitoração de Oviedo.
Sentindo-se seguro com o apoio brasileiro, Wasmosy chamou Oviedo na manhã de segunda-feira e exigiu sua demissão. Surpreso, Oviedo pediu tempo para pensar. Wasmosy chamou-o novamente ao meio-dia e, com os comandantes das outras duas armas e com seu substituto na chefia do Exército, secamente disse-lhe que mantinha sua demissão e que se quisesse revidar com um golpe, que o fizesse. E que determinaria às forças que o apoiavam que não reagissem, pois não queria derramamento de sangue, deixando inteiramente a Oviedo a responsabilidade pelo que pudesse ocorrer.
A notícia já havia corrido e todas as estações de rádio faziam as mais diversas especulações, mas sem confirmação alguma, dado o absoluto silêncio por parte de Oviedo. A essa altura, a embaixada americana, com Oviedo na mira devido à convicção de seu relacionamento com o narcotráfico, emitiu comunicado onde condenava a sedição do general e reafirmava veementemente seu apoio ao presidente constitucional. O fez, a propósito, para evitar a eventualidade de uma composição com o presidente que viesse a prejudicar a clara caracterização de Oviedo como golpista.


Sebastião do Rego Barros em 2002 - Marco Antônio Teixeira /2-9-2002

Wasmosy, que recebia continuamente por telefone mensagens de apoio de outros chefes de Estado e de líderes mundiais (o Papa inclusive) pediu a mim e aos embaixadores dos Estados Unidos e da Argentina que procurássemos Oviedo. Tentamos fazê-lo, mas sem sucesso.
Já noite fechada, falei por telefone com o ministro do Exército, general Zenildo Lucena, por quem Oviedo tinha grande respeito pois foi seu instrutor em Assunção. Sabendo da relação, sugeri a Bambino que promovesse o contato. Relatou-me o ministro brasileiro que em conversa horas antes Oviedo pareceu-lhe bastante sereno e garantiu que não promoveria nenhum ato de força, “mas que providenciaria para que se fizesse com Wasmosy o que o Brasil fizera com Collor”.
Como Wasmosy e dois filhos (a mulher e o outro filho estavam fora do país) abrigaram-se na embaixada americana, fui até lá. Presente também Hugo Aranda, empresário ligado a Wasmosy que havia estado com Oviedo. O presidente terminava de escrever à mão um documento com sua renúncia, exigida por Oviedo sob pena de bombardear a casa presidencial e o palácio de despachos, além de deter ou eliminar outros componentes do Governo. Obtida a renúncia de Wasmosy, Oviedo “cuidaria ele mesmo do vice-presidente e faria com que o presidente do Congresso assumisse o governo na manhã seguinte”. Exigia a renúncia até as 2h. Aranda seria o portador do documento, em complicado sistema determinado por Oviedo, que, por não estar certo do paradeiro do presidente e não querer deixar traços como gravação de telefonemas, estabelecera a casa de Aranda como centro de encontro dos seus mensageiros com os de Wasmosy.

Pedi a Wasmosy que não enviasse o documento até que eu me comunicasse com meu governo e, com a devida delicadeza, tomei-lhe o papel. Com a renúncia segura comigo, acordei Bambino às 2h40m e expus-lhe a situação. Concordamos em que a pressa de Oviedo devia-se à dificuldade que teria para implementar o “golpe branco” quando fossem abertas as Chancelarias do continente e em pleno funcionamento de seus governos. Pela impossibilidade prática de tomar qualquer medida àquela hora, concordamos em tentar ganhar tempo e chegar à manhã de terça-feira, 23, sem que ações de força ocorressem.
Wasmosy, disposto a tudo para evitar o derramamento de sangue, insistia em obedecer ao ultimato. Ditei-lhe, então, o texto de um pedido de licença provisória em termos que, avaliei, dificilmente poderiam ser aceitos pelo Congresso. Wasmosy escreveu de próprio punho o novo documento. Para evitar qualquer possibilidade de troca (ou de má fé de algum dos intermediários), pedi-lhe licença para rasgar a renúncia que estava em minhas mãos. Wasmosy, intimidado, não teve condições de contra-argumentar, e rasguei-a. Mas, apesar de acabrunhado pelas circunstâncias, Wasmosy teve o instinto político de guardar os pedaços. E uma imagem que jamais esquecerei é a da expressão do embaixador norte-americano quando rasguei a renúncia e ditei ao presidente os termos do papel com o qual podíamos ganhar o tempo necessário para neutralizar a manobra de Oviedo.
Aranda saiu com o novo papel para sua casa, onde encontraria o presidente do Congresso e o emissário de Oviedo. Para tranquilizar Wasmosy e manter, na medida do possível, a situação sob controle, propus-me a acompanhá-los. Lá encontrei o presidente do Congresso, que não me pareceu envolvido no golpe, e instei-o a que só assumisse caso a renúncia fosse inapelavelmente explícita e legalmente incontestável. O que sabia não poder ser, pois “saltava” o vice-presidente.
Chegando ao quartel, eu e o ministro do Interior fomos impedidos de entrar. Quando saíram os mensageiros, regressei com Aranda à embaixada americana. Contou-nos que Oviedo recebera o papel e o passara ao presidente do Senado, perguntando se permitiria sua posse na manhã seguinte. O senador disse-lhe que como estava redigido não permitia que o fizesse dentro da lei, sendo necessário, no mínimo, submetê-lo ao plenário. Oviedo ficou furioso e mandou buscar nos arquivos a renúncia de Stroessner e redigir documento nos mesmos termos para a assinatura de Wasmosy — que, receando o cumprimento das ameaças, dispunha-se a assinar a renúncia. Ponderei-lhe que, com a residência presidencial desocupada, Oviedo não a bombardearia e que tampouco iria disparar tiros ou jogar bombas no centro vazio da cidade. Ressaltei que era um blefe armado para forçá-lo a tomar uma medida que não teria condições de extorquir-lhe uma vez raiado o dia e com os governos dos países vizinhos em pleno funcionamento. Wasmosy finalmente concordou e autorizou Aranda a regressar ao quartel e dizer que não mais encontrara o presidente. Deixei Bambino a par do ocorrido.
Pouco depois das 6h, o líder oposicionista Domingo Laino pediu para ver-me. Wasmosy chamou-me. Disse que iria após receber Laino, e que, se o palácio de despachos estivesse em mãos leais, eu o encontraria lá. Sugeri a Laino que, com o outro líder oposicionista, Guillermo Caballero Vargas, passassem uma resolução pela qual o Senado se recusaria a sequer examinar qualquer pedido de renúncia do presidente ou do vice, por entender que estariam sendo apresentadas sob pressão. Laino concordou e (o que muito diz dele) pediu-me: “Embajador, puedo decir que la idea fué mia?”
No Palácio de Lopez, estavam os embaixadores acreditados, mais a grande maioria de deputados e senadores (estes já com a resolução de que não aceitariam examinar o pedido de renúncia), empresários, líderes de partidos, etc. Grande festival cívico-democrático. Só que, do outro lado da cidade, estava Oviedo com os canhões e blindados às suas ordens e, ainda acreditava Wasmosy, o apoio da totalidade dos generais. E já sem saída, pois o golpe direto fracassara pela decidida reação internacional e o indireto bloqueado pela iniciativa do Senado. Receava-se a possibilidade de um movimento desesperado de Oviedo.
A instâncias de Bambino, o ministro Zenildo falara novamente com Oviedo. Que fez chegar ao palácio que aceitaria “uma saída elegante para ele” (palavras textuais). Assunto que já havia sido objeto de especulações. Após exame pelo presidente, seus (poucos) ministros de confiança e os embaixadores, surgiram duas alternativas: a embaixada em Bonn ou o Ministério da Defesa (que, apesar do pomposo nome, está fora da linha de comando). Qualquer ministério exigiria a passagem prévia para a reserva. O que, entendíamos, reduziria de imediato o apoio dos generais a Oviedo.

Conversa áspera de duas horas
O ministro do Interior foi levar a oferta a Oviedo. Chega César Gaviria, secretário-geral da OEA, e junto aos demais, aguarda o resultado. Oviedo rechaçou liminarmente a embaixada, mas aceitou o ministério. Chegam os chanceleres do Mercosul (Bambino buscou-os no seu avião) e, como todos, aprovam o acordo como a melhor solução possível naquele momento.
Na manhã seguinte, Oviedo transfere o comando do Exército e é marcada sua posse na Defesa para o próximo dia. Até então aclamado, Wasmosy, uma vez conhecida a oferta do ministério a Oviedo, começa a ser alvo de pesadas críticas e chega-se a cogitar seu impeachment. Transferido o comando, entretanto, surgem sinais de quebra na unanimidade do apoio a Oviedo. Tentam os líderes militares convencê-lo a declinar do cargo. Wasmosy e o novo chanceler pedem-me que convença Oviedo. Tivemos longa e áspera conversa, duas horas. Oviedo começa a dar os primeiros sinais de afrouxar, mas Wasmosy ainda teme sua reação e hesita em suspender a nomeação.
Entra de novo Bambino em cena e pede a FHC que encoraje Wasmosy a suspender a nomeação. Com a ligação do presidente brasileiro, Wasmosy cobrou alento definitivo. Preparou-se rapidamente um discurso, em cuja redação colaborei a pedido de Wasmosy, e o presidente dirigiu-se ao Palácio de López, onde já chegava Oviedo para sua “posse”.
Após o pronunciamento do presidente e sendo-lhe barrada a possibilidade de dirigir-se ao povo da sacada presidencial, que ainda quis tentar, Oviedo, bastante desarvorado e com exíguo apoio, tentou dar início a uma carreira política. No que não teve sucesso, e após uma série de fatos, inclusive uma detenção, terminou por morrer num acidente de helicóptero.

O caso sem dúvida constituiu um evento ímpar na história diplomática brasileira, o desfazer de um golpe militar em país amigo por meio da ação diplomática. O chanceler Lampreia, que na ocasião estava ausente do Brasil a serviço, chegou a classificar o episódio como “a ação mais intervencionista que o Brasil já teve neste século”, como descreve o presidente Fernando Henrique na página 570 do seu “Diários da Presidência”. Mas o próprio presidente rotula o comentário do seu chanceler de “exagerado”... E acrescenta que tanto Bambino como eu esclarecemos que a ação no Paraguai foi feita em nome do Mercosul — que, na ocasião, ainda não “bolivarianizado”, valia preservar.
O episódio contribuiu inclusive para mudar junto aos círculos mais esclarecidos do país vizinho a imagem do Brasil , até então obscurecida pelo que era visto como um apoio aos anos da ditadura Stroessner,
Se Bambino não estivesse à frente do Itamaraty, talvez o Paraguai tivesse sofrido um golpe de Estado militar que desmoralizaria o Mercosul. Assim, além de todos os seus muitos amigos, ouso dizer que também o país vizinho tem motivos para lamentar o prematuro desaparecimento da grande figura profissional e humana que foi Sebastião do Rego Barros Netto, o nosso queridíssimo Bambino.

domingo, 23 de novembro de 2014

Sobre as ‘causas’ do golpe militar de 1964 - Paulo Roberto de Almeida


Sobre as ‘causas’ do golpe militar de 1964

Paulo Roberto de Almeida

Um historiador, já famoso por seus trabalhos de outra forma equilibrados e bastante conhecidos sobre o golpe “civil-militar” de 31 de março de 1964 – mais propriamente civil, como ele mesmo gosta de enfatizar – e de ensaios igualmente meritórios sobre o regime militar e de todo o período que se seguiu, termina um recente artigo sobre a questão de forma absolutamente surpreendente. Ele afirmou o seguinte:
 Quando um jornalista me perguntou qual era a causa, ‘em uma palavra’, do golpe de 1964, eu respondi: ‘o medo’. O autoritarismo que marcava e marca a sociedade brasileira expressou-se, naquela ocasião, no medo das elites e da classe média diante das possíveis conquistas sociais que as propostas de reforma de base representavam: mais vagas nas universidades, tabelamento dos aluguéis, reforma agrária etc. Essa talvez seja a principal atualidade do golpe de 1964.
(Carlos Fico, “50 anos do golpe: balanço”, blog Brasil Recente, 20/11/2014; link: http://www.brasilrecente.com/2014/11/50-anos-do-golpe-balanco.html?spref=fb)

Já comentei esta surpreendente afirmação – que destoa de outros argumentos mais razoáveis nesse seu curto artigo – em uma postagem rápida de meu blog, escrita on spot, ou seja, apenas como reação inicial a uma questão que me parece importante no quadro dos debates que tivemos durante o ano, pela passagem dos 50 anos do golpe (ver o link: https://www.facebook.com/paulobooks/posts/838895436173908?pnref=story). Também já escrevi o suficiente sobre a farsa das “reformas de base” do governo Goulart – que ficaram como um slogan, apenas, pois nunca vi algum desses que se referem a elas se aprofundarem em seu exame – para não ter que voltar ao exame de cada uma nesta oportunidade. Quem quiser conhecer a análise que fiz, pode buscar este texto: “Deformações da História do Brasil: o governo Goulart, o mito das reformas de base e o maniqueísmo historiográfico em torno do movimento militar de 1964”, Revista do Clube Militar (Rio de Janeiro: ano LXXXVI, no 452, fevereiro-março-abril de 2014; edição especial: “31 de Março de 1964 – A Verdade”, p. 107-122; ISSN: 0101-6547; disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/9430621/2590_Deforma%C3%A7%C3%B5es_da_Hist%C3%B3ria_do_Brasil_o_governo_Goulart_o_mito_das_reformas_de_base_e_o_manique%C3%ADsmo_historiogr%C3%A1fico_em_torno_do_movimento_militar_de_1964_2014_).
Vou tratar aqui mais em detalhe da afirmação do professor, acima transcrita, e ater-me estritamente às suas palavras, no que julgo ser um saudável exercício de debate acadêmico, aberto a todas as pessoas que dispõem de argumentos substantivos sobre os conceitos emitidos e o sentido que se lhes pode atribuir no contexto daquele processo histórico, de tão profundas consequências para mais de uma geração de brasileiros.
As palavras-chaves de sua resposta ao jornalista, talvez formulada rapidamente, sem a necessária reflexão (mas ela foi transcrita, posteriormente, para artigo escrito e, como tal, publicado num blog, o que é evidência de reflexão e de aprovação pessoal do argumento desenvolvido), são as seguintes: (a) “causa” (em uma palavra); (b) “medo”; (c) “possíveis conquistas sociais”; (d) “reformas de base”; (e) “atualidade do golpe de 1964”. Se todos concordarem com isso, procedo agora ao exame de cada um desses conceitos, tentando ser fiel ao contexto da época e ao espírito do historiador que trabalha sobre temas tão graves, em suas consequências políticas, e de tal complexidade para justificar inclusive certa fratura historiográfica, o que também não deixei de registrar na abertura de meu artigo acima referido.
Em primeiro lugar, poucos historiadores, ou cientistas sociais, seriam capazes de realizar uma síntese tão arriscada quanto apontar “a causa, ‘em uma palavra’, do golpe de 1964”. Parece evidente que evento, ou episódio tão momentoso, não possui uma causa podendo ser expressa numa única palavra, e seria difícil encontrar um único conceito que pudesse resumir toda a complexidade de uma grave crise política que vinha se arrastando desde o segundo governo Vargas, pelo menos, e talvez durante toda a era Vargas. As crises políticas brasileiras, constantes e regulares durante toda a República de 1946, refletiam as divisões existentes igualmente em outras formações políticas da América Latina, que colocavam em confronto estatistas e “livre-mercadistas”, liberais e “desenvolvimentistas”, conservadores e “progressistas”, e várias combinações possíveis dessas classificações. O uso de aspas em vários desses conceitos se justificam em função de possíveis interpretações ambíguas sobre seu real significado.
Não existiu uma única causa para o golpe – ou o movimento civil-militar, como prefere o próprio professor – e se as causas pudessem ser resumidas sob algum conceito provavelmente este não seria o “medo” das elites e da classe média das “reformas de base” do presidente Goulart (e dos movimentos que o apoiavam). Vou estender-me sobre esse suposto medo mais abaixo, mas antes vou abordar um outro conceito usado como suposto real da sociedade brasileira naquele momento, que é incorporado ao discurso do professor como algo natural, ou esperado: o “autoritarismo”. Por que a sociedade brasileira seria autoritária, mesmo naquela época e naquele contexto? Haveria algum tendência política majoritária que impeliria a sociedade para o autoritarismo?
A afirmação é tanto mais surpreendente porque nenhuma sociedade, em seu conjunto, pode ser considerada autoritária, como se isto fosse uma emanação cultural, ou algum traço civilizatório que pudesse marcar estruturalmente sociedades modernas, que são sempre mais complexas do que simples comunidades agrícolas ou pastoris, divididas entre diferentes classes, com interesses e objetivos políticos muito diversos entre elas. Vamos ver alguns precedentes históricos em torno desta questão.
Ao examinar a evolução da sociedade moderna, poderíamos, por acaso, considerar a sociedade francesa do final do século XVIII e do decorrer do século XIX como autoritária, em primeiro lugar porque passou pelo Terror do período do Termidor, quando Robespierre deu início ao período mais autoritário da revolução francesa, um período aliás admirado por Lênin e alguns outros? Seria ela autoritária porque seguiu o primeiro cônsul Bonaparte no seu 18 Brumário, e depois ao criar o maior império centralizado que já conheceu aquele velho país de tradições libertárias? Ou ao apoiar, novamente, o sobrinho, em sua eleição presidencial pós-1848, e depois novamente quando este fez o seu próprio 18 Brumário e se proclamou imperador, como o tio?
Seria a sociedade japonesa pós-Meiji autoritária? E a da Prússia, antes e depois da formação do Império alemão, também? Seria elas autoritárias porque apoiaram as derivas militaristas de suas lideranças políticas e militares, nos dois processos que presidiram à ascensão dessas duas novas potências no quadro de conflitos interimperiais do início do século XX? Seria autoritária a sociedade italiana dessa mesma época, por ter sancionado e seguido a liderança fascista de Mussolini, até quase o final do mais desastroso experimento político da Itália contemporânea. E seria autoritária a sociedade brasileira, por ter apoiado, em sua ampla maioria, os militares que derrubaram Goulart e deram início a um regime que deveria ser de correção dos problemas do momento – inflação, grevismo político, quebra de hierarquia nas FFAA, ameaça comunista – e de renovação dos quadros dirigentes?
Parece difícil admitir que a sociedade brasileira fosse “autoritária”, sob qualquer critério, inclusive porque a maior parte dos historiadores “progressistas”, ou seja, os que se posicionam claramente contra o golpe, não deixam de mencionar o “amplo apoio das massas” às “reformas de base” e às demais medidas “progressistas” de Goulart. Muitos desses historiadores consideram que tais reformas foram interrompidas por uma minoria conservadora, ou mesmo reacionária, que, lamentavelmente, colocou a alta cúpula das Forças Armadas a serviço dos latifundiários e da alta burguesia, ambos aliados ao imperialismo, segundo as interpretações correntes. Pareceria contraditório, portanto, mencionar o caráter “popular” dessas reformas, e ao mesmo tempo alegar a natureza autoritária da sociedade como um todo.
Creio que se pode, assim, descartar essa característica, que não se fundamenta em alguma análise empiricamente embasada que pudesse sustentar tal argumento para o Brasil de meio século atrás. Sociedades, em geral, não são uniformemente autoritárias, mas lideranças políticas específicas podem conduzir a maioria da cidadania a adotar uma tal postura em função de peculiaridades que se desenvolvem ao longo de uma história política marcada por eventos e processos que favorecem o autoritarismo (crises internas, aumento da anomia, graves desafios externos, ruptura de padrões anteriores). Em resumo, não existem evidências quanto ao “autoritarismo” da sociedade brasileira ao início dos anos 1960: provavelmente ela apenas seria um pouco mais conservadora do que foi o caso no período subsequente, acompanhando tendências comportamentais já detectadas, aliás, outras sociedades em outros países.
Chegamos agora ao suposto medo que teria, não a sociedade brasileira, mas especificamente as classes médias e as elites, de conquistas sociais que estariam embutidas – como se elas fossem uma certeza – nas reformas de base. Na verdade, o que havia, nos meses que precederam o golpe, era uma grande agitação em torno dessas reformas, mas jamais uma ação coerente para colocá-las em vigor, seja mediante medidas administrativas, as que não dependiam de processo legislativo – como a oferta de vagas nas universidades públicas, por exemplo –, seja pelo envio de projetos de lei que teriam de passar pela aprovação do Congresso para se converterem em realidade, como grande parte delas: reforma agrária em modalidades não previstas na Constituição (mas o governo poderia fazê-la sobre terras públicas, obviamente), voto do analfabeto e dos militares (com elegibilidade para ambos), ou diferentes medidas econômicas. Já tratei de cada uma delas no artigo citado acima, para retomar cada uma em detalhe.
O governo Goulart foi incapaz de desenvolver uma ação coordenada para levar adiante seu conjunto de reformas – que de toda forma não existiam como um programa coerente, tendo o conceito sido consolidado praticamente ex-post – e se contentou, às vésperas da crise final – que se desenvolveu de forma independente a qualquer ação em torno das reformas –, em assinar dois decretos: um previa a desapropriação de terras ao longo das grandes vias federais para fins de reforma agrária, e outro a fixação de um teto para os alugueis urbanos, cujo aumento contínuo era creditado à especulação imobiliária, não à inflação que, naquela altura já rodava ao ritmo de 90% ao ano. A classe média – e de fato todos os brasileiros – tinham mais medo da inflação do que de supostas conquistas sociais que seriam asseguradas por reformas diáfanas e vagas, raramente expressas em projetos legislativos.
Poucos historiadores (que são essencialmente políticos) se dão conta dos efeitos devastadores que uma inflação quase ultrapassando os três dígitos poderia ter sobre o poder de compra e os projetos de poupança (sempre remunerada a 6% ao ano) do conjunto dos brasileiros, que até então não tinham sido apresentados à fórmula mágica (e alimentadora da mesma inflação) da indexação, ou correção monetária (introduzida mais adiante sob o regime militar). Poucos desses historiadores se dão igualmente conta dos efeitos devastadores sobre os princípios militares da hierarquia e da disciplina que tiveram a revolta dos sargentos de setembro de 1963 (por motivos essencialmente políticos, diga-se de passagem) e a dos marinheiros, no início do ano seguinte. Mais grave ainda foi a sanção dada pelo poder político a esses atos de insubordinação e de desrespeito aos comandantes militares, o que indispôs a maior parte dos comandantes com o presidente da República e seus principais auxiliares, entre eles sindicalistas ligados ao Partido Comunista, considerado o inimigo principal da soberania do país desde a Intentona de 1935.
Havia, sim, na classe média, nas elites e principalmente nas Forças Armadas um sentimento de medo muito preciso, que não tinha nada a ver com as reformas de base, e sim com esse mesmo espantalho do comunismo, na verdade uma ameaça considerada real para os principais protagonistas do drama político que se desenvolvia no auge da Guerra Fria. Elementos indispensáveis desse clima algo paranoico eram os avanços do comunismo além das fronteiras da Europa oriental, com a revolução cubana, a crise dos misseis soviéticos em Cuba e várias bravatas dos líderes soviéticos sobre a possibilidade de o comunismo “enterrar o capitalismo”, como havia proclamado pouco antes Nikita Kruschov, o Secretário-Geral do PCUS. Ignorar que esse temor fosse uma preocupação legítima de amplos setores da sociedade brasileira seria considerar que a maior parte da população teria de assumir os pressupostos soi-disant progressistas e majoritariamente anti-imperialistas desses mesmos historiadores e analistas políticos da academia.
A verdade é que a maioria da sociedade brasileira estava – independentemente da mobilização dos grupos, partidos e movimentos de esquerda e direita – exasperada com o ambiente quase caótico vivido durante todos os confusos meses de lutas políticas vividos no período imediatamente anterior ao golpe. Esse ato de ruptura na legalidade democrática não estava exatamente planejado, nem obedecia a uma conspiração preparada pelas elites nacionais em conluio com o imperialismo, como tendem a proclamar os adeptos da historiografia de esquerda. Ele acabou se impondo por um conjunto desigual de circunstâncias, entre as quais se contam o ânimo oposicionista de governadores interessados na presidência e a impetuosidade de alguns chefes militares, todos eles observados de perto pelos observadores diplomáticos e agentes do setor de inteligência da embaixada dos Estados Unidos. O Big Brother hemisférico não estava obviamente disposto a deixar se instalar no continente um outro regime que poderia ser não uma nova Cuba, mas uma espécie de nova China, pela dimensão e importância do país. No ambiente exacerbado da Guerra Fria se tratava igualmente de uma preocupação legítima da maior potência capitalista e líder do chamado “mundo livre”.
Cabe considerar, finalmente, o que seria essa “atualidade do golpe de 1964”, que estaria contida na alegação de que foi o medo da classe média das “reformas de base” que precipitou o golpe militar, como se o mesmo processo pudesse se desenvolver nos dias que correm. Reformas são desenvolvidas todos os dias a todos os momentos dos processos políticos conhecidos em quase todas as democracia de mercado, e em alguns regimes menos democráticos também. Não são elas que precipitam a radicalização das forças sociais, se conduzidas pelos canais normais da democracia representativa. O que pode, sim, exacerbar paixões e precipitar rupturas não institucionais é a quebra de padrões e a ameaça de rebaixamento das condições de vida, que soem ocorrer em processos inflacionários virulentos, acoplados à quebra de confiança nas autoridades políticas. Foi isso, finalmente, que ocorreu no Brasil de 1963-64, e é isso que vem ocorrendo atualmente na Venezuela, e em menor escala na Argentina, por exemplo.
As condições “ideais” para a intervenção dos militares na arena política estão, no entanto, longe de se reproduzirem novamente, e pode-se inclusive dizer que o longo regime militar registrado de meados dos anos 1960 aos 80 pode ter imunizado o país de novas aventuras desse gênero. Nem o ambiente internacional, com a derrocada total, e aparentemente definitiva, do comunismo, suscitaria o mesmo clima de exacerbação dos espíritos como ocorria no auge da Guerra Fria. A menos que o mesmo caos político que caracterizou o governo Goulart se imponha novamente ao país, com forte descontrole inflacionário e quebra da legalidade em diferentes instâncias da vida política e social, não existe clima nem condições objetivos para qualquer “atualidade” de um golpe. Não se imagina tampouco qualquer temor da classe média ou das elites por reformas que promovam maior grau de igualdade distributiva e inclusão social, desde que conduzidas pelos canais admitidos do jogo político-partidário e dos mecanismos institucionais de representação política e de ação legislativa. A hipótese, portanto, simplesmente não existe, não cabendo, em consequência, qualquer argumento em favor da “atualidade” dessas “reformas de base”, um conjunto heteróclito e desordenado de propostas que adquiriu foros de mito, sem ter consistência empírica para tal.
Grande parte do trabalho do historiador consiste, entre outras tarefas de cunho interpretativo, em separar os discursos dos atores políticos – sempre tentados pela retórica fácil e muitas vezes demagógica – das ações efetivas tomadas no terreno dos processos em curso na arena das barganhas e negociações entre eles mesmos. Via de regra, sociedades avançam por meio de reformas progressivas, não mediante golpes ou revoluções, que de resto não são planejados, nem passíveis de uma coordenação efetiva entre seus supostos líderes. Tais rupturas são eminentemente acidentais na vida dos países, e se dão no quadro de deteriorações graves da vida social, política e econômica. Esse era o quadro do Brasil meio século atrás; não parece mais ser o caso atualmente, em que pese a permanência de alguns atores que parecem não ter aprendido quase nada com as infelizes experiências tentadas numa sociedade em crise.
As marcas dessa crise podem não ter desaparecido inteiramente no espírito de alguns atores e observadores do drama de meio século atrás. Certos eventos exigem a passagem de mais de uma geração de atores e espectadores para que um julgamento não passional possa ser feito por aqueles que se ocupam de interpretar o passado.

Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 23 de novembro de 2014.