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quinta-feira, 1 de novembro de 2018

O que Margaret Thatcher teria a ensinar ao Brasil? - Paulo Roberto de Almeida (Instituto Millenium)

O que Margaret Thatcher teria a ensinar ao Brasil?

Paulo Roberto de Almeida
 [Objetivo: gravação de podcast; finalidade: Convite do Instituto Millenium]
Podcast do Instituto Millenium em 6/11/2018, disponível no seguinte link: https://www.institutomillenium.org.br/destaque/o-que-o-brasil-pode-aprender-com-margaret-thatcher/


Em 1 de novembro de 2018 concedi uma entrevista em áudio, sob a forma de podcast, para o Instituto Millenium, a propósito da figura da falecida primeira ministra britânica Margaret Thatcher e os ensinamentos que sua experiência como estadista poderiam ter para o novo governo brasileiro. 
Relaciono abaixo as perguntas efetuadas, e as simples notas que eu havia tomado para desenvolver oralmente no momento da gravação, de aproximadamente meia hora no total. O podcast foi editado e recebeu uma introdução-resumo pelo jornalista Frederico Portella, editor de conteúdo do IM, cujo texto transcrevo ao final. O link para a gravação do áudio também está disponível.

(A) Notas rápidas preliminares de Paulo Roberto de Almeida: 

1) Quem foi Margaret Thatcher e por que ela era conhecida como “a dama de ferro”?
Formação em trabalho de mercearia; estudos universitários, com leituras de obras de Friedrich Hayek, Adam Smith, Milton Friedman, entre outros autores liberais. 
Situação da Grã-Bretanha nos anos 1970: declínio industrial, crises fiscal e monetária, aprofundamento do sindicalismo agressivo, Inglaterra quase país do Terceiro Mundo, com PIB per capita inferior ao de sua colônia Hong Kong.
Ela só passou a ser chamada de Dama de Ferro depois de ter sido elevada ao cargo de primeira-ministra e ter se mostrado inflexível na sua resolução de reformar a Inglaterra num sentido liberal, e também ter enfrentado o desafio da reconquista das ilhas Falkland/Malvinas, que haviam sido tomadas pela ditadura militar argentina.

2) Quais foram as medidas liberais que o thatcherismo implantou na Inglaterra durante o tempo em que ela ocupou o cargo de primeira ministra? 
Em primeiro lugar, as privatizações de quase todas as companhias públicas, dominadas pelo sindicalismo militante e pela ineficiência, sob a forma de ações oferecidas ao grande público, uma forma de devolver o poder às pessoas; nisso ela teve de enfrentar batalhas duríssimas contra os sindicatos, sobretudo os mineiros de carvão, tendo a Inglaterra passado um inverno no frio, por causa da falta de aquecimento.
Ademais de sua batalhar pela abertura econômica, ela também passou a defender os valores e ideais do Ocidente democrático e capitalista, podendo ser apontada, junto com o Papa João Paulo II e o presidente americano Ronald Reagan, como um dos estadistas responsáveis pelo desmantelamento final do sistema comunista, uma vez que soube dialogar firmemente com o último SG-PCUS Mikhail Gorbatchev.

3) O Brasil tem ao longo da sua trajetória uma postura estatista, onde medidas liberais não prosperaram. A própria Thatcher já afirmou que o país era o contrário do que ela defendia: um estado grande e fraco. Como o novo governo eleito pode se inspirar em Margaret Thatcher para implantar aqui medidas similares? 
A receita é exatamente a mesma: privatizações de todas as empresas públicas, abertura econômica, liberalização comercial, redução do peso do Estado na economia e enfrentamento das corporações que conquistaram o Estado em seu benefício exclusivo.

4) O corte da inflação também era uma meta do governo Thatcher e pra isso, ela cortou radicalmente gastos. Conter o gasto público também é uma urgência no Brasil? 
Certamente, e como tarefa urgente, imediata, de caráter fiscal, mas ao lado disso já empreender as tarefas de médio prazo de novos investimentos privados em setores importantes da economia, ademais de cuidar da tarefa de longo prazo de melhorar os índices de produtividade do país.

5) Em um país que destina bilhões de reais a partidos e campanhas, a responsabilidade com o uso do dinheiro dos impostos, que também era defendida por Thatcher, deve estar entre as prioridades? 
Certamente, isso faz parte da reforma política e do ataque à fragmentação e dispersão do sistema partidário. Seria preciso extinguir imediatamente o Fundo Eleitoral e depois também completamente o Fundo Partidário. Essas duas medidas permitiriam reduzir radicalmente o número de partidos políticos existentes no país.

6) Perguntada sobre Collor em uma entrevista, ela disse que o Brasil não havia tido um bom governo capaz de atuar com base em princípios, na defesa da liberdade, sob o império da lei e com uma administração profissional. Tivemos outros presidentes depois disso, mas de maneira geral, o que o senhor acha das administrações públicas que tivemos até aqui no sentindo de buscar desinchar o país e impor medidas liberais? 
Foram poucos os presidentes que enfrentaram efetivamente a obesidade do Estado, e praticamente nenhum conseguiu vencer o corporativismo estatal.

7) Qual é a sua expectativa para os próximos anos? 
Um longo período de adaptação, a curto, a médio e a longo prazo.

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(B) Apresentação-resumo do áudio-gravado pelo jornalista Frederico Portella: 
     O podcast recebeu edição do jornalista Frederico Portella, editor de conteúdo do Instituto Millenium; transcrevo a seguir o seu resumo do podcast.

O que podemos aprender com Margaret Thatcher?
A Inglaterra não vivia os seus melhores dias nos anos 1970. A ilha britânica não só havia sido ultrapassada por outros países desenvolvidos, como por sua própria colônia Hong Kong, que chegou a ostentar uma renda per capita superior à da metrópole ao adotar uma economia aberta. Esse cenário mudou após 1979, quando Margaret Thatcher assumiu o cargo de Primeira-Ministra do Reino Unido. À frente do Estado, a Dama de Ferro conseguiu reconquistar o caminho de prosperidade ao travar uma batalha para implementar medidas liberais.
Do outro lado do oceano, o Brasil de 2018 muito se parece com a Inglaterra de algumas décadas atrás. Desde o pós-guerra, partidos com programas marxistas, socialistas e intervencionistas se alternavam no poder. Recursos da sociedade eram dominados por sindicatos e corporações, e a economia sofria com o retrocesso no âmbito das liberdades e a decadência nos planos industrial e de negócios. O diplomata Paulo Roberto de Almeida, Doutor em ciências sociais e Mestre em planejamento econômico, lembra que muitas das medidas impostas por Thatcher poderiam ser colocadas em prática aqui no Brasil. O especialista do Instituto Millenium destaca que o Brasil aparece na 144ª posição do relatório sobre as liberdades econômicas do mundo, produzido pelo Fraser Institute. “A China comunista está em 108º lugar no ranking. Isso significa que ela tem uma postura mais capitalista do que nós! Somos dominados pela república sindical, corporações, sindicatos de funcionários públicos... Valores que estavam presentes na Inglaterra pré-Thatcher”.
As privatizações estão entre as principais medidas adotadas pelo Thatcherismo. A Primeira-Ministra privatizou a maior parte das estatais britânicas de diferentes setores e a população teve acesso à compra de ações das empresas. “Nós temos ainda 146 estatais, das quais a maioria produz déficit público que é alimentado por todos os brasileiros. Acredito que o governo eleito começaria bem se fizesse uma privatização radical, inclusive as consideradas estratégicas. Elas são estratégicas unicamente para os políticos, que as usam para cargos, verbas e outras medidas políticas”, alerta Paulo Roberto.
Outra medida importante apontada pelo especialista é a necessidade de quebrar o poder das corporações e grupos organizados que promovem verdadeiros “assaltos aos recursos da população”. O diplomata lembra que, para devolver o poder às pessoas, Thatcher travou uma longa batalha contra sindicatos que dominavam empresas estatais e a política britânica. Longas greves foram deflagradas na época e os mineiros de carvão chegaram a paralisar as atividades por um ano, deixando a Inglaterra gelada no rigoroso inverno europeu.

O alerta ao gasto público
A contenção do gasto público também era amplamente defendida por Margaret Thatcher, que governou até 1990. Em seus discursos, a dama de ferro salientava que não há “dinheiro público”, existe apenas o dinheiro dos pagadores de impostos. Paulo Roberto  acrescenta que o Brasil vive um crescimento desenfreado de suas receitas, e além disso possui uma carga grande de subsídios destinados a quem já é rico:
“A Thatcher costumava dizer que o socialismo acaba quando acaba o dinheiro dos outros. É um fato. Os gastos públicos na era do lulo-petismo subiram sistematicamente, sempre acima do crescimento do PIB, da produtividade e da taxa de inflação. É uma conta para o futuro que se reverteu no que a gente viu nos anos de 2014 a 2017. Nenhum país, família ou indivíduo pode viver acima do que ganha. O Brasil chegou em 2015 a ter um déficit orçamentário de 10% de PIB. É um suicídio! É condenar os nossos filhos e netos a uma conta de dívida pública impagável”.

O futuro
Ao longo da sua história, o Brasil teve governos com diferentes níveis de centralização, mas de maneira geral, ideias desestatizantes e liberais nunca prosperaram. Para Paulo Roberto, temos pela frente uma longa trajetória para recuperar a destruição das contas públicas. O especialista lembra que em 2022, quando comemoramos os 200 anos de independência, teremos uma renda per capita igual a de uma década atrás.
“A destruição das contas públicas foi de tal ordem que vai exigir três ou quatro anos apenas para tapar o buraco, diminuir o déficit orçamentário e restabelecer as bases de um superávit primário. Acredito que apenas em 2022 ou 2023, teremos restabelecido o equilíbrio. Isso a curto prazo. No médio, temos um problema de investimento que depende de mudança na regulação para atrair investidores estrangeiros e nacionais. E no longo prazo, temos um problema de produtividade, que está muito vinculada à educação. Será preciso trabalhar duro para fazer o Brasil enveredar por um processo de crescimento sustentado”, prevê.

Podcast do Instituto Millenium em 6/11/2018 disponível no seguinte link: https://www.institutomillenium.org.br/destaque/o-que-o-brasil-pode-aprender-com-margaret-thatcher/


Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1 e 6 de novembro de 2018


domingo, 19 de agosto de 2018

Ciro Gomes atribui altos salarios a legislação, nao produtivididade - Samuel Pessoa

Ciro Gomes e a Alemanha

Não ocorre a Ciro que o salário na Alemanha é alto porque a produtividade é alta

Ciro Gomes tem criticado muito a reforma trabalhista do governo Temer. Também tem citado a Alemanha como a economia com boas práticas no mercado de trabalho.

Todo o argumento surpreende. A reforma não foi feita pelo governo Temer, mas resulta de esforço do Congresso Nacional. A partir de um projeto tímido enviado pelo presidente Temer, o Congresso desenhou uma lei muito mais abrangente.

Adicionalmente, Ciro confunde totalmente a causalidade. Parece que considera que foi a legislação trabalhista da Alemanha que produziu os elevados salários do país. Não lhe ocorre que a produtividade no país é alta —bom ambiente institucional e escolaridade de excelente qualidade, entre tantos outros motivos— e que essa é a causa dos elevados salários. 

De fato, o produto por hora trabalhada na Alemanha em 2017, segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), foi de US$ 60 (R$ 236), US$ 3 (R$ 11,8) a menos do que o mesmo indicador para os EUA.

Ou seja, salários altos ou baixos resultam do fato de a produtividade do trabalho ser alta ou baixa. A legislação trabalhista ajuda (ou atrapalha) à medida que estimula (ou desestimula) a elevação da produtividade.

Surpreende também Ciro utilizar a Alemanha para criticar a reforma brasileira de 2016. Entre 2003 e 2005, a Alemanha implementou a reforma Hartz —Peter Hartz, diretor de recursos humanos da Volkswagen, foi chefe da comissão que desenhou as medidas— com inúmeras medidas que liberalizaram o mercado de trabalho alemão.

A natureza da reforma Hartz foi a mesma de nossa reforma de 2016: criaram-se outras figuras de contrato de trabalho assemelhadas ao contrato intermitente e temporário introduzido na reforma de 2016, além de a reforma alemã ter restringido os critérios de elegibilidade ao benefício do seguro-desemprego em prazo, valor e contrapartidas para o beneficiário.

Em reportagem de 1999, a revista The Economist se referia à Alemanha como a economia doente da Europa: baixo crescimento com elevado desemprego. O desemprego, após o pico de 11% em 2005, atingiu a mínima de 4% recentemente. 

No mesmo período, Itália, Espanha e França vêm lutando para reduzir suas taxas, que, apesar da queda recente, encontram-se em níveis muito superiores aos observados na Alemanha.

Estudo recente de meus colegas Bruno Ottoni (Ibre/FGV e Idados) e Tiago Barreira (Ibre/FGV) sugere que três reformas trabalhistas, que liberalizaram o mercado de trabalho em moldes semelhantes ao de nossa reforma de 2016, tiveram impactos significativos sobre a queda do desemprego, a elevação da população ocupada (PO) e o aumento da população economicamente ativa (PEA), isto é, ampliação da oferta de trabalhadores.

Bruno e Tiago estudaram a reforma Hartz na Alemanha, a reforma de Menem na Argentina, entre 1989 e 1990, e a reforma australiana de 1994. Compararam o ocorrido 12 anos após as reformas com um cenário contrafactual no qual elas não teriam sido implantadas. 

Os resultados indicaram que as reformas levaram a expressivas quedas das taxas de desemprego: de 3,4, 1,2 e 2,9 pontos percentuais, respectivamente, para Alemanha, Argentina e Austrália, a aumentos expressivos da PEA, de 6, 3 e 7 pontos percentuais, e da PO, de 10, 5 e 9 pontos percentuais.

Tudo indica que a nossa reforma de 2016 deixará saldo positivo, como foi o caso das outras. 

Ajustes podem ser necessários, mas o sentido geral da reforma de 2016 é amplamente positivo.

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Reformas no Brasil, pela razao ou pela violencia - Bolivar Lamounier

O instinto nos salva

*Bolívar Lamounier
O Estado de S.Paulo, 25/02/2018

A ideia é aterradora e absurda, mas, no momento, tudo indica que o Brasil está perdendo a capacidade de equacionar seus problemas de maneira racional e civilizada, pela via da política. Nessa marcha, só o instinto de sobrevivência nos salvará. 
No falatório sobre a intervenção, sobre as candidaturas presidenciais, sobre o funcionamento das instituições, o tom predominante é um desânimo furibundo, e até mais que isso, uma vontade meio doida de achar uma solução fácil, rápida e definitiva, ainda que o preço seja a quebra da ordem civil. No limite, é como se todos quisessem que metade (sua metade) da população matasse a outra, presumindo que a metade sobrante se dedicaria sinceramente à realização dos valores que elegeu como os mais altos. Isso vem por todos os lados, não é privilégio de nenhum partido ou grupo ideológico. 
E o pior, infelizmente, é que por trás dessa fumaça realmente há muito fogo. Tal desorientação não chega a surpreender, pois estamos mal e mal saindo da pior recessão de nossa História e tomando consciência da metástase de corrupção que se difundiu por quase todo o sistema institucional do País. Dispenso-me de elaborar este ponto, limitando-me a observar que o cartel das empreiteiras botou no bolso praticamente toda a estrutura partidária de que dispúnhamos: quatro ou cinco organizações com algum potencial e umas trinta obviamente inúteis. Hoje vemos esvair-se até aquele elementar sentimento de lealdade sem o qual a vida interna de um partido se torna inviável. Na mais alta Corte de Justiça do País, salta aos olhos que alguns juízes trabalham sorrateiramente para livrar o sr. Luiz Inácio Lula da Silva, um corrupto notório, já sentenciado a 12 anos e um mês de prisão. No Senado e na Câmara, só quem mantém as estatísticas em dia sabe quantos parlamentares estão indiciados, acusados ou já na condição de réus. 
A intervenção federal no sistema de segurança do Rio de Janeiro pôs em alto-relevo a questão da corrupção nos corpos militares e policiais, que inclui a entrega de armas potentes ao narcotráfico e à bandidagem em geral. Noves fora, então, a ressalva que se há de fazer diz respeito à competência e à seriedade da equipe econômica, da equipe liderada pelo juiz Sergio Moro e pela Polícia Federal, graças às quais o País não descarrilou por completo. 
No culto da irracionalidade, a esquerda ganha por duas cabeças. Na questão da intervenção no Rio de Janeiro, por exemplo, ela aposta no fracasso com base em seus tradicionais cálculos eleitorais, ou num requintado cinismo, “esquecendo”, por exemplo, no tocante à concessão de mandados coletivos, as posições que a ex-presidente Dilma Rousseff defendeu em 2016. Não só a esquerda, mas ampla parcela do Congresso recusou-se a aprovar a reforma da Previdência, embora consciente da precariedade fiscal em que nos encontramos e de que o sistema brasileiro de seguridade é campeão mundial em transferir renda dos pobres para os ricos. 
Não me sinto no direito de aborrecer os leitores me estendendo sobre a deterioração em que se encontra nossa capacidade de conduzir racional e civilizadamente as operações de governo, mas há uma questão mais ampla, que transcende todas as já mencionadas, para a qual me vejo obrigado a chamar a atenção. Refiro-me ao médio prazo, ou seja, ao futuro de nosso país dentro de uma ou duas décadas. Nessa referência de tempo, se não recuperarmos a capacidade de raciocinar e colaborar, realmente, só o instinto de sobrevivência nos salva. 
O quadro que me esforcei por esboçar é em si mesmo sinistro, mas é brincadeira de criança se o colocarmos num horizonte de 20 anos. Já me referi outras vezes a esse ponto e temo ter de voltar a ele muitas vezes nos próximos meses, ainda mais em se tratando de um ano eleitoral. A incapacidade da política acarreta uma progressiva liquefação do próprio Estado. O País perde sua stateness, ou seja, a presença efetiva da máquina de governo. Ninguém ignora que diversas áreas do Rio de Janeiro já há muito tempo se tornaram inacessíveis à autoridade pública. O que muitos talvez não saibam é que os Correios já não entregam correspondência em quase metade dos endereços da Cidade Maravilhosa. Refiro-me a ela porque é lá que a perda da “estatalidade” se tornou mais perceptível, mas em maior ou menor grau o processo se manifesta no País inteiro. Com um fator agravante: temos agora um vizinho, a Venezuela, onde o Estado atingiu um estágio avançado de putrefação, forçando centenas de milhares de cidadãos a buscarem refúgio em Roraima. 
Com a contração causada pela recessão engendrada pelo lulopetismo, nossa renda anual por habitante deve ser atualmente metade da correspondente à Grécia e bem inferior à de Portugal. Se, recuperando a economia, lograrmos crescer 3% ao ano, o que não é trivial, precisaremos de mais de 20 anos para alcançar os dois países citados, e lá chegaremos com uma distribuição de renda muito pior, com uma situação educacional claramente inferior, com as condições de saneamento que conhecemos e possivelmente com índices ainda muito mais altos de violência. Isso significa que o debate público dos últimos anos nem sequer arranhou a superfície dos verdadeiros problemas, que são a velocidade do crescimento e a profundidade das reformas de que necessitamos. 
Escusado dizer que não me estou referindo à antiga ladainha do “governo forte”, pedra de toque da retórica fascista, que por aqui vicejou vigorosamente à época da ditadura getulista. Refiro-me ao óbvio: o imperativo de quebrar a resistência dos grupos corporativos e encetar um esforço reformista muito maior. As reformas virão, de um jeito ou de outro: pelo caminho mais ou menos civilizado da política ou por sucessivas ondas de anarquia e violência. 

*Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor do livro ‘Liberais e Antiliberais’ (Companhia das Letras, 2016)

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Um manifesto de apoio 'as reformas no Brasil - "intelectuais" do PSDB, Paulo Roberto de Almeida



Paulo Roberto de Almeida
Comentários a programa de reformas de intelectuais do PSDB

Eu nunca chamaria um manifesto como esse, reproduzido abaixo, de propostas de reformas das políticas públicas e sobretudo de reformas constitucionais, pelo nome de um político de ocasião ou de oportunidade, ainda que ele possa merecer o apoio momentâneo de filiados ao partido. Pela simples razão de que se trata de um conjunto de reformas racionais, necessárias, em qualquer tempo e circunstância, para que o Brasil se converta em um país normal, mormente nesta fase de transição para algo que não sabemos exatamente do que será feito. Por isso mesmo, não se poderia vincular esse conjunto de reformas a um nome, que pode ser passageiro, e não revelar-se como "a" solução para os problemas do país (pois homens públicos podem sempre transigir e conciliar).
Eu não aceitaria conciliação em torno de reformas que, objetivamente, são absolutamente necessárias, indispensáveis, independentemente de quem esteja na presidência de um partido que se contaminou na corrupção, na total indiferenças dos líderes partidários (ou até com a sua conivência).
Dito isto, apoio a maioria, senão a totalidade das reformas propostas, e até acrescentaria várias outras, mas que entendo estejam embutidas nestas descritas genericamente. Mas quando se fala em “privatização radical”, caberia precisar o que significa ser “radical”. Inclui os bancos públicos, a Petrobras, todas as demais estatais de infraestrutura? Eu privatizaria todas as estatais, sem distinção.
Além das reformas políticas, acredito que o Brasil necessite, por exemplo, de uma revolução educacional, com alteração radical das bases sob as quais têm funcionado as diversas instâncias do ensino público (e influenciado, negativamente, o privado) no Brasil. As universidades federais precisam ganhar total autonomia, o que significa não apenas uma alocação básica federal, para pesquisa fundamental, e total liberdade para contratações, pagamentos diferenciados aos professores, fim dessa escolha irracional de reitores por votação do próprio corpo acadêmico – e escolha de profissionais de mercado que sejam gestores especializados nesse tipo de atividade – fim da gratuidade absoluta – com pagamento generalizado, e financiamento e bolsas para os merecedores e providos de renda insuficiente – e associações livres com o setor privado, em quaisquer níveis e setores.
Da mesma forma, o manifesto possui propostas para abertura econômica externa – com as quais eu concordo absolutamente, mas até iria além, no sentido de não se requerer negociações externas para acordos de livre comércio, mas simplesmente abertura unilateral, incondicional e irrestrita, por parte do Brasil, uma vez que somos nós os protecionistas, e os parceiros externos não têm nenhuma culpa nisso, e não se deve obrigá-los a fazer concessão em troca de uma abertura que só beneficia o próprio povo brasileiro – mas não possui nada em relação à política externa stricto sensu. Não vou elaborar agora a esse respeito, mas eu me permitiria simplesmente referir a necessidade de uma revisão completa – eu disse completa – na política externa seguida nos últimos quinze anos, que considero seriamente enviesada por concepções sem qualquer conexão com as necessidades brasileiras de inserção internacional.
Tratarei desse aspecto em documento à parte.
Finalizo dizendo que se trata de um bom começo.

Paulo Roberto de Almeida  
Recife, 7/11/2017

Manifesto de Apoio a Tasso Jereissati
6/11/2017

Este é um manifesto em apoio à candidatura de Tasso Jereissati à Presidência do PSDB. Mais do que nomes ou correntes partidárias, o que está em jogo é a postura que se requer do partido diante do Governo Temer. O PSDB deve aprovar as reformas que modernizem o Brasil, independentemente de quem as envie ao Congresso ou as proponha. Mas não deve participar de um Governo que não parece ter se comportado de acordo com os preceitos éticos na condução dos assuntos de interesse público.
Além da postura ética, o Brasil precisa de um Governo que entenda as prioridades nacionais e tenha como foco o bem-estar da grande maioria dos brasileiros. O PSDB precisa voltar a ser o PSDB do Plano Real, capaz de formular e implementar a agenda de reformas necessária para que o Brasil volte a crescer de forma sustentável, com justiça social e respeito aos direitos civis.
Caberá ao Presidente do Partido conduzir as discussões que levarão a um novo programa do PSDB e ninguém melhor do que Tasso Jereissati para liderar esse processo de renovação das ideias de que o País tanto precisa.
Oferecemos à reflexão de todos algumas ideias e princípios que deveriam, em nosso entendimento, nortear um novo Programa do PSDB e a atuação do Governo a partir de 2019.

Visão de Brasil

• Uma economia sustentável, moderna, competitiva e aberta ao mundo.
• Um governo ágil, eficiente e capaz de responder aos anseios dos cidadãos.
• Políticas públicas focadas em educação, saúde e segurança pública.
• Uma sociedade democrática, fundada no respeito aos direitos humanos, na liberdade de expressão e respeito aos direitos das minorias.
• Um sistema político que represente seus eleitores de forma efetiva.

Cinco pilares para a atuação do Governo em matéria  econômica

(A) Austeridade Fiscal
• O governo nem deve nem precisa aumentar a carga tributária. Se a alíquota de um imposto aumentar a de outro deve ser reduzida.
• Programa anual de revisão dos gastos. Eliminar estruturas ociosas; aumentar a concorrência nos processos de compra; inovar na contratação de serviços e obras públicas assegurando processos transparentes na licitação, autorizando a entrada de capital estrangeiro e coibindo práticas viciadas como aditivos desprovidos de racionalidade técnica.
• Programa anual de revisão de isenções tarifárias, isenções tributárias e benesses de toda ordem que impactam as finanças públicas. Todo subsídio deve constar da previsão orçamentária, eliminando-se todo e qualquer subsídio implícito.

(B) Redefinição do papel do Estado: do produtor/financiador para o regulador e planejador
• Na economia brasileira de hoje o Estado não precisa nem produzir nem financiar a produção. A meta é liberar o capital hoje alocado nas estatais, bancos e empresas públicas para usos socialmente mais legítimos ou para reduzir o endividamento público.

Programa radical de privatização.
• O Estado precisa sim regular as atividades produtivas do setor privado para assegurar a concorrência e a prestação adequada dos serviços públicos a cargo de concessionárias com controle privado.
Para tal é urgente acabar com a captura política das agências reguladoras.
• O Estado precisa sim planejar a infraestrutura e o desenho dos mecanismos de atração do capital privado.
• O Estado deve também fixar a política de preservação e uso sustentável do meio ambiente, em busca de uma economia de baixo carbono, evitando a dilapidação do nosso patrimônio natural na busca por lucros.

(C) Postura não intervencionista
• Respeitar contratos.
• Aumentar a previsibilidade do quadro legal e regulatório.
• Não intervir na formação de preços através de congelamentos de tarifas ou de preços administrados.
• Evitar regras que criem proteção artificial a determinados setores ou atividades (lei do similar nacional, requisito de competência técnica para ganhar concessões etc.).

(D) Abertura
• Diminuição de barreiras e entraves à importação, com redução gradual de todas as tarifas de importação e eliminação de entraves burocráticos.
• Acordos de livre comércio com os parceiros relevantes abrindo espaço para produtos brasileiros no exterior e reduzindo os custos de importação, em especial dos insumos importados utilizados como insumos na produção e nas exportações.
• Simplificação e eliminação as barreiras burocráticas que limitam o fluxo migratório de estrangeiros ao Brasil.

(E) Reformas para modernizar o ambiente de negócios
• Estimular a livre iniciativa e o empreendedorismo.
• Estimular o investimento estrangeiro.
• Simplificar a vida dos cidadãos e das empresas reduzindo o custo de conformidade com as leis e consequentemente o contencioso.
• Desburocratizar, tratar os iguais como iguais, evitar regulamentação excessivamente minuciosa.

Reformas constitucionais
• A reforma da Previdência é fundamental para o equilíbrio das contas públicas. Ajustar os planos atuariais às tendências da demografia e acabar com os privilégios.
• Desconstitucionalizar impostos e vinculações orçamentárias para assegurar uma gestão mais flexível do Orçamento.
• Acordo federativo substituindo todos os impostos de intermediação (IPI, ICMS, Cofins, ISS, PIS) em favor de um único Imposto sobre Bens e Serviços com alíquota nacional única.


Foco na agenda social
• O Governo não precisa ter escolas nem hospitais. Não precisa contratar professores ou médicos. Mas precisa prover saúde e educação de qualidade. Tem que ter indicadores de eficiência na tomada de decisão de como gerir os recursos das áreas de educação e saúde.
• Além de educação básica, o Governo deve priorizar a superação de nosso atraso tecnológico e científico, apoiando pesquisa e inovação. Integração com os centros de pesquisa avançados do exterior.
• Buscar a igualdade de oportunidades no acesso à educação, ao mercado de trabalho e à Justiça.
• Manter a rede social de apoio (bolsa família e seguro-desemprego) evitando distorções e fraudes.
• Adotar uma política nacional contra a criminalidade.
• Acabar com privilégios de apropriação do dinheiro dos trabalhadores (FGTS, contribuição sindical obrigatória).
• Incluir sistema S no orçamento da Educação.

Transformação estrutural na gestão da máquina pública
• Firmeza para enfrentar as pressões corporativas dos servidores públicos. Introduzir a meritocracia no trato com o funcionalismo público, premiando a competência e penalizando quem não trabalha. Limitar a estabilidade a carreiras de Estado estritamente definidas.
• Ampliar o programa de desestatização para focar a atuação Estado nas atividades essenciais e reduzir o número de servidores e funcionários vinculados à aposentadoria pública.
• Impessoalidade na relação com os grupos empresariais e representações classistas (fim de regras ad hoc, isenções e benesses seletivas etc.).
• Transparência como norma. Ajustar as leis orçamentárias para fazer com que todos os fatores que afetam as finanças públicas estejam incluídos no Orçamento da União e sejam inteligíveis ao público.
• Anunciar as metas de cada programa de governo e dar divulgação a seu cumprimento. Lembrar que a meta não é gastar mas sim atingir objetivos socialmente relevantes como reduzir os índices de criminalidade, diminuir tempo de espera de cirurgias etc.
• Submeter os programas e autarquias do Governo, inclusive Universidades, a avaliação externa independente.
• Implementar o Governo Digital com os objetivos de reduzir custos, aumentar controles e dar mais transparência. O Governo Digital deve ser também a plataforma da cidadania oferecendo um canal de avaliação dos serviços públicos e informando os contribuintes sobre os impostos que pagam.

Bolivar Lamounier, Edmar Bacha, Elena Landau, Luiz Roberto Cunha, Persio Arida

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

A reconstrucao do Brasil, com a ajuda da globalizacao: livro de Jose Fucs - Paulo Roberto de Almeida


A reconstrução do Brasil, com a ajuda da globalização

Paulo Roberto de Almeida

Tenho em mãos este livro: José Fucs, A Reconstrução do Brasil: os grandes desafios do País para alcançar o desenvolvimento sustentável, a estabilidade política e o bem-estar social (São Paulo: O Estado de S. Paulo, 2017, 149 p.), que foi elaborado a partir das muitas reportagens feitas pelo repórter especial do Estadão entre setembro de 2016 e janeiro deste ano, às quais foram acrescidos alguns editoriais do jornal, feitos justamente a propósito de temas especiais levantados nas matérias sobre inúmeros problemas do Brasil nesta fase de transição para uma nova situação que ainda não sabemos exatamente do que será feita. Partimos da suposição de que esse futuro será melhor do que a atual fase de crise econômica, política, social (e profundamente moral), na verdade a maior recessão já enfrentada pelo Brasil em toda a sua história econômica, um legado maldito do governo companheiro anterior.
Como é meu hábito, e vício profissional enquanto diplomata, busquei no livro quais seriam os problemas detectáveis neste série de reportagens que teriam origem no cenário internacional ou que poderiam ser atribuídos a questões externas ao Brasil. Para minha frustração, não encontro nenhum: simplesmente não existem, nos diversos problemas focados por José Fucs, com base em pesquisas extensas, leituras intensas e conversas com especialistas em cada uma das áreas selecionada, qualquer um que possa ser vinculado a algum obstáculo internacional, a alguma característica negativa do sistema de comércio mundial, alguma defecção de investidores estrangeiros, sabotagem dos centros financeiros, má vontade de organismos internacionais; simplesmente não consigo detectar qualquer restrição externa ao Brasil enquanto economia emergente. Na verdade, existe sim, uma questão, que é a da questão da abertura comercial (objeto de um editorial do jornal publicado em 8/12/2016, com base numa das matérias feitas por Fucs), mas que não constitui de fato um problema, e sim trata-se de uma solução, ou seja, é algo que o Brasil precisa fazer em seu próprio benefício, não para fazer favor a qualquer exportador externo, ou atender a acordos comerciais.
Todos os demais problemas detectados, e objeto de uma quinzena de capítulos, segundo as matérias publicadas, são problemas perfeitamente brasileiros, totalmente construídos no Brasil, inteiramente made in Brazil, a 150%, se ouso dizer. Listo aqui, pela ordem: a reforma das reformas (a tal de Constituição cidadã, que é propriamente esquizofrênica do ponto de vista econômico), o ajuste fiscal, a batalha contra os privilégios, o rombo recorde da Previdência, a flexibilização do trabalho (parcialmente empreendida recentemente), a luta contra a burocracia, o cerco à roubalheira, o peso colossal dos tributos, um ambiente mais amigável para os negócios, o peso absurdo do protecionismo comercial (incorporado sob o conceito de “renascimento na arena global”, e que foi justamente objeto do editorial mencionado acima), o desmonte do Leviatã, os desafios da retomada do crescimento, a descentralização do poder e a modernização dos sindicatos (uma tarefa que eu mesmo julgo impossível, pois eles se converteram em “máquinas de extração de dinheiro” e em obstrutores das reformas).
Segundo depreendo do conjunto das matérias preparadas e muito bem editadas por José Fucs, a totalidade dos problemas e a integralidade das reformas necessárias são devidas única e exclusivamente a nós mesmos, erros, equívocos, deformações de nossas políticas públicas e de funcionamento das instituições, questões que cabem apenas ao Brasil e aos brasileiros resolver, para superar o atual quadro pavoroso feito de milhões de desempregados, o crescimento medíocre ou inexistente, as desigualdades sociais e regionais persistentes e a infraestrutura deficiente. O mundo, a globalização, o sistema internacional, como constatado pela experiência de crescimento de países emergentes, na própria região e especialmente na Ásia Pacífico, são absolutamente favoráveis à retomada de um processo sustentado (e sustentável) de crescimento no Brasil. Sob qualquer critério que se examine, cabe reconhecer uma massa colossal de liquidez ávida de aplicação, sob a forma de investimentos diretos ou de capitais de empréstimos, a permanência de um protecionismo comercial setorial ou limitado ((com a possível exceção da área agrícola), um ambiente cada vez mais favorável à interdependência entre economias abertas e propensas a aceitar os novos requerimentos dos intercâmbios globais (que não se limitam a tarifas ou acesso a mercados, mas passam por regras e padrões em serviços, propriedade intelectual e normas relativas a investimentos e fluxos de capitais). O mundo, enfim, está aberto a quem é aberto e participante, o que talvez não seja o caso atual do Brasil.
A recente decisão tomada pelo governo Temer, no sentido de solicitar adesão (ou acessão) à OCDE, pode ajudar nesse processo de reformas e retomada do processo de crescimento, desde que o Brasil não adote, como antes no caso do Mercosul, uma atitude defensiva, restritiva ou de abertura limitada. Se TODAS as medidas dependem mesmo do Brasil, cabe ler este livro, ou reler as matérias publicadas, estabelecer uma lista de reformas, e começar a empreender a difícil tarefa de converter o Brasil num país normal, o que ele absolutamente não é, atualmente. Devemos ser gratos a José Fucs por ter começado essa missão, pela listagem absolutamente clara dos problemas: ele já deu a sua contribuição. Cabe a nós, agora, isto é, a cidadania ativa, para não mencionar os altos responsáveis governamentais, empreender a tarefa de empreender o dever de casa, conscienciosamente. Allons enfants...


Paulo Roberto de Almeida
São Paulo, 20 de setembro de 2017

domingo, 30 de julho de 2017

Reflexoes sobre a transicao no Brasil: um partido das reformas - Paulo Roberto de Almeida


Reflexões sobre a transição no Brasil: um partido das reformas

Paulo Roberto de Almeida
 [Continuidade do exercício de reflexão – iniciado pelo trabalho 3134, “Lições da história, de 1961 a 2017: da necessidade de reformas no Brasil” (30/06/2017; https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/07/nas-origens-da-crise-divisao-estrutural.html); tarefas políticas da presente conjuntura]


1. Introdução: liberdade, igualdade, civilidade
Em outubro de 1789, muito pouco tempo depois, portanto, da queda da Bastilha, Edmund Burke deu início às suas “Reflexões sobre a Revolução na França” (“e sobre as discussões em certas sociedades de Londres relativas a esse evento”) sob a forma de uma carta que tencionava despachar a um “jovem cavalheiro em Paris”, que havia solicitado sua opinião sobre aqueles acontecimentos que, “desde então e continuamente, capturaram a atenção de todos os homens”. A resposta foi mantida sob reserva devido a “prudential considerations”. Imediatamente depois Burke deu início a uma discussão ampla sobre o tema, que ele terminou na primavera seguinte, tendo o resultado sido publicado em Londres, por J. Dodsley, em Pall-Mall, em “M.DCC.XC”, isto é, 1790 (como leio no texto das “coleções online do século XVIII” da Universidade de Oxford).
Nessa carta, aludindo retoricamente a dois clubes de cavalheiros londrinos, a “Constitutional Society” e a “Revolution Society”, Burke faz uma distinção bastante nítida entre aquilo que se poderia designar por “partido constitucional” – que seria algo equivalente ao sistema político inglês depois da Revolução Gloriosa de um século antes – e um “partido da revolução”, que seria justamente representado pelo espírito da Assembleia Nacional nos quadros da Revolução francesa. Burke primeiro cumprimenta os franceses pelo “espírito da liberdade em ação”, mas ele imediatamente suspende os seus cumprimentos com base num raciocínio bastante sensato:
I must be tolerably sure, before I venture publicly to congratulate men upon a blessing, that they have really received one. Flattery corrupts both the receiver and the giver; and adulation is not of more service to the people than to kings. I should therefore suspend my congratulations on the new liberty of France, until I was informed how it had been combined with government; with public force; with the discipline and obedience of armies; with the collection of an effective and well-distributed revenue; with morality and religion; with the solidity of property; with peace and order; with civil and social manners. All these (in their way) are good things too; and, without them, liberty is not a benefit whilst it lasts, and is not likely to continue long. The effects of liberty to individuals is, that they may do what they please: We ought to see what it will please them to do, before we risque [sic] congratulations, which may be soon turned into complaints. Prudence would dictate this in the case of separate insulated private men; but liberty, when men act in bodies, is power. Considerate people before they declare themselves will observe the use which is made of power; and particularly of so trying a thing as new power, in new persons, of whose principles, tempers, and dispositions, they have little or no experience, and in situations where those who appear the most stirring in the scene may possibly not be the real movers. (Burke, 1790, p. 7-8 of the “Eighteenth Century Collections Online”, University of Oxford; original emphasis)

Burke, que reconhece, pouco adiante (p. 9), que “tomadas em conjunto todas as circunstâncias, a Revolução francesa é a mais impressionante [das crises] que aconteceram no mundo até aqui.” Mas ele sempre contrasta o exercício da liberdade com a garantia da legalidade do exercício do poder e do respeito aos “direitos do homem”, um conceito que já estava então bastante assentado no constitucionalismo inglês, desde a Magna Carta, e que estava sendo introduzido no direito e na política da França. E, como revelado pelo trecho acima transcrito de sua carta dirigida a um “jovem cavalheiro francês”, ele combinava o exercício da liberdade à existência de um governo legítimo, à segurança pública, à disciplina e obediência nos exércitos, à arrecadação e à boa distribuição das rendas auferidas pelo Estado, à moralidade e religião, à solidez da propriedade, à paz e ordem e, finalmente, às maneiras civis e sociais, ou seja, o bom comportamento dos indivíduos em sociedade.

À maneira de Burke, mas sem pretender absolutamente comparar-me a ele, vou também alinhar algumas reflexões sobre o atual momento de transição no Brasil, que alguns chamam de “golpe”, que eles pretendem transformar em revolução, mas que para outros consiste num processo de ajuste e de reformas, após uma deterioração sensível da situação econômica e das contas públicas, quase tão relevante quanto aquela ocorrida pouco antes da Revolução francesa. Pretendo permanecer no espírito da Sociedade Constitucional, mas levarei em conta a ação do “clube revolucionário”, suas ações, sua filosofia e seus propósitos divisionistas, tentando oferecer algumas luzes para a atuação dos homens de bem em meio ao caos e à fragmentação atual da política brasileira.
As notas a seguir podem ser lidas na sequência deste trabalho, “Lições da história, de 1961 a 2017: da necessidade de reformas no Brasil” (30/06/2017), sobre a crise política criada com a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, a título de reflexão retrospectiva sobre a atual crise brasileira, disponível em meu blog Diplomatizzando (https://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/07/nas-origens-da-crise-divisao-estrutural.html) e preliminar a um esforço de elaboração de propostas de reformas. Elas também oferecem continuidade a trabalho imediatamente anterior, no qual eu já refletia sobre o estado relativo de anomia política no Brasil, perguntando se o Brasil já era um “Estado falido”, mas constatando, ao mesmo tempo, que seu sistema político já podia ser considerado como completamente falido: “Brazil as a Failing State (or, is it already a Failed State?)” (12/06/2017, igualmente disponível no blog Diplomatizzando http://diplomatizzando.blogspot.pt/2017/06/brasil-existe-uma-crise-da-democracia.html).

2. A dominação hegemônica da esquerda: incontornável?
O Brasil aparece hoje como uma sociedade dividida, embora muito dessa divisão seja alimentada artificialmente, calculadamente pelos inimigos da liberdade, que se apresentam como pretensos defensores da igualdade, dois conceitos que estão no coração da Revolução francesa e que constituem o objeto das reflexões de Burke e de mais de dois séculos de debates contínuos sobre o papel do Estado, sobre a organização do sistema político, sobre as prioridades na determinação das políticas públicas, ou seja, aquilo que o filósofo conservador britânico chamava de exercício do poder. Essa divisão ocorre em meio à maior crise econômica – que se desdobrou em grave crise política e que explica, mais do que os atos de corrupção, o ato do impeachment, em maio-agosto de 2016 – jamais enfrentada pelo Brasil (quase 10% a menos no PIB entre 2015 e 2016), o que deveria supostamente suscitar alguma unidade de propósitos entre as principais forças políticas na difícil missão de resgatar o país da recessão e levá-lo novamente ao caminho do crescimento.
Tal união, no entanto, não ocorreu, por uma razão muito simples: a sociedade, especialmente em sua fração “pensante” – ou seja, aquela porção que influencia a opinião pública e que determina parte dos comportamentos, não sociais, mas dos movimentos ditos “sociais”, entre os quais se situa o sindicalismo – já se encontrava dividida por décadas de “hegemonia cultural” da esquerda, basicamente representada pelo assim chamado “gramscismo acadêmico”, que conforma o padrão usual de referência intelectual para a quase totalidade dos movimentos de esquerda no Brasil. Há muito tempo existe uma preeminência desse tipo de pensamento político – para não dizer ideologia – nos meios típicos de influência social relevante no Brasil. Não é difícil citar as esferas usualmente afetadas: todo o aparelho educacional (a partir das universidades para todo o sistema), na rede sindical (em praticamente todos os níveis e nas diferentes centrais existentes), na mídia (na qual, em sua maioria, os jornalistas são esquerdistas mesmo sem o saber, resultado de uma deformação curricular até inconsciente), nos meios culturais e supostamente “intelectuais” (onde, até por força do politicamente correto, o progressismo de tipo esquerdista predomina amplamente), no ambiente político, de modo geral (já que não existem partidos de “direita” e quase todos dizem defender “causas sociais”) e até em certas categorias profissionais supostamente identificadas com os mercados (engenheiros, por exemplo) ou a defesa da legalidade (os bacharéis em direito são especialmente “vítimas” desse tipo de contaminação).
Não seria exagerado dizer que o “universo mental” ordinário, no Brasil, se confunde com esse espectro cultural do pensamento de esquerda, isto é, socialmente progressista, distributivista, igualitário, ainda que a maioria da população se defina ao longo de valores conservadores para a maior parte dos costumes correntes. A questão é que são aqueles meios identificados com o pensamento progressista que fornecem os ativistas de base – militantes de partidos de esquerda; voluntários de movimentos ditos “sociais”; jornalistas que “trabalham” as informações e análises; sindicalistas que fazem de sua atividade um meio de vida, antes que uma atividade-meio; professores com teses pré-concebidas, absorvidas de acadêmicos gramscianos; funcionários públicos e agentes de entidades oficiais que estão comprometidos antes com a “justiça social” do que com a legalidade dos atos – que sustentam, direta e indiretamente, a predominância dessas ideias identificadas com a hegemonia cultural da esquerda.  
A própria acumulação de fatos, evidências e processos que comprovam o envolvimento direto de grande parte da esquerda “oficial” – ademais de outros agentes políticos de todo o espectro ideológico – com a onda avassaladora de corrupção que passou a percorrer praticamente todas as instâncias públicas, as maiores estatais e até grandes empresas privadas, não parece ter abalado o apoio de que dispõem esses meios desde o início das investigações identificadas com a chamada Operação Lava Jato, a despeito de algumas poucas desvinculações tópicas de personalidades progressistas.

3. O que fazer?; as tarefas do partido da reforma
Uma situação de hegemonia cultural só poderia ser aparentemente vencida por um outro tipo de hegemonia cultural, mas esse é um caminho longo, eivado de dúvidas quanto à eficácia desse tipo de estratégia, povoado de incertezas quanto à temporalidade dessa substituição e, de toda forma, a “contra-hegemonia” não dispõe, e não disporá no futuro previsível, do conjunto de aparelhos civis, paraestatais ou diretamente estatais, que permitiram à esquerda estabelecer e manter seu predomínio cultural e político ao longo das últimas décadas. Quais seriam, então, os caminhos para o início de uma inversão das tendências observadas até aqui no campo da mobilização política de apoios sociais em prol de outras políticas mais identificadas com a liberdade dos mercados?
Pessoalmente não creio que uma ação no mesmo plano conceitual dos resultados atualmente exibidos pela hegemonia cultural da esquerda consiga ter sucesso nos próximos anos, pela ausência, por parte do “partido da reforma”, de meios, mecanismos e instrumentos similares ou funcionalmente equivalentes aos detidos atualmente pelos “hegemônicos”, de maneira a ocorrer uma substituição de hegemonias. Uma estratégia de “combate de ideias”, em torno de conceitos abstratos, do tipo defender o liberalismo ou o conservadorismo, ou um “partido de direita”, enquanto alternativas melhores, ou desejáveis, como eixos de ação política, não parece suscetível de conquistar apoios ou influências significativas na sociedade. Menos ainda terá sucesso qualquer projeto no sentido de esperar alguma ação por parte das FFAA, ainda que fosse por meio dessa figura totalmente contraditória designada pela nome esquizofrênico de “intervenção militar constitucional”. O que resta, então, às forças da reforma?
Justamente esquecer qualquer debate no plano das ideias “liberais”, de “direita” ou de inspiração “conservadora”, conceitos que não possuem qualquer chance de se impor no plano das referências sociais para fins de influência política. O debate precisa se dar ao nível de questões práticas, concretas, vinculadas à vida cotidiana dos cidadãos, e suas preocupações mais prosaicas. Mesmo que esse fosse o terreno de jogo, e não é, o partido da reforma não tem condições de levar um “combate” nesses termos, e por razões muito simples: em primeiro lugar, não existem liberais no Brasil, ou são poucos; os conservadores são ainda em menor número, e os que se acreditam pertencer a um ou outro campo, parecem (ou são) totalmente desprovidos de formação teórica numa ou noutra vertente, já que ideias das vertentes respectivas não são discutidas, aprendidas, transmitidas nas instituições de ensino superior, ou em qualquer outro nível de estudo.
Em segundo lugar, os que se classificam sob esses rótulos, ou até mesmo os de “direita”, se apressam em agregar algum conteúdo ou adjetivo “social” ao epíteto principal, para não incorrerem em qualquer acusação de “insensibilidade” em relação aos graves problemas sociais que existem objetivamente no Brasil. O antigo Partido da Frente Liberal se apressava em agregar o conceito de “liberalismo social” às suas propostas de políticas públicas, e mais tarde abandonou completamente o adjetivo, talvez por pressentir que não encontrava receptividade eleitoral (o que se explica, justamente, pela campanha viciosa da esquerda contra qualquer ideia de liberalismo como opção política aceitável no plano eleitoral ou no das definições de políticas). Não existem perspectivas de mudanças repentinas nessa frente, o que pressupõe que tais conceitos, abstrata ou concretamente, não gozarão de ampla aceitação e legitimidade política em prazos razoáveis. O Brasil ainda é um país no qual o conceito de igualdade prevalece arrasadoramente contra o da liberdade.
A mensagem, ou as mensagens que devem ser defendidas incessantemente pelo partido da reforma, a ser apresentado sob essa designação, são justamente as de que o Brasil é um país entrevado, bloqueado, cerceado e empobrecido pelo conservadorismo das ideias de esquerda, que são de fato anacrônicas, desadaptadas ao mundo moderno, contraditórias com os requerimentos da globalização, e de que propostas reformistas, de ampliação das franquias democráticas no campo das atividades econômicas são, de fato, progressistas e avançadas. Não será uma tarefa fácil, pois isso implica, justamente, sair do terreno das ideias abstratas, dos conceitos políticos gerais, e penetrar na formulação de propostas pragmáticas, que atendam aos interesses da população, de forma clara, direta, empiricamente comprovada.
A população provavelmente não quer ouvir, ou se ouvir não vai entender, que o liberalismo econômico, se implantado, vai ser bom para o Brasil, ou que, na outra vertente, o conservadorismo é melhor que o “progressismo” para resolver os problemas que ela enfrenta, concretamente. A população gostaria de ouvir propostas práticas sobre como sua vida pode ser melhorada ou facilitada por meio de explicações claras, diretas, contendo medidas podendo ser implementadas de modo transparente. Tal objetivo implica um estudo detido e fundamentado de cada um dos grandes problemas concretos da população brasileira, geralmente a nível microeconômico (mas que necessitam ter, igualmente, alguma sustentação macro, ou seja, fiscal, monetário, creditício).
O que liberais, conservadores, pessoas de “direita” precisam fazer, no Brasil, é arregaçar as mangas, abrir livros, relatórios, consultar especialistas, reunir técnicos e começar a preparar propostas simples para os grandes problemas do países. Não existem, obviamente, respostas simples a problemas complexos, mas existem modos de explicar à população como as propostas esquerdistas, socialistas, distributivistas e intervencionistas são nefastas e, na verdade, agravam os problemas, em lugar de resolvê-los. É preciso quantificar os custos efetivos, orçamentários e de oportunidade, das políticas atualmente em curso no Brasil, em todos os terrenos práticos de atividade.
Um começo de ativismo, nesse terreno, seria partir de mapeamentos já feitos, que indicam, aliás, onde estão os problemas existentes, e quais seriam as possíveis soluções aos obstáculos atuais. Um dos melhores “mapas da realidade” disponíveis no mercado é o relatório anual do Banco Mundial “Fazendo Negócios” (Doing Business), que tem indicadores precisos sobre cada uma das etapas burocráticas que infernizam a vida dos empreendedores no Brasil, nas dimensões nacional e comparada. Uma equipe dedicada ao estudo desse relatório do Banco Mundial, fazendo um detalhamento das distorções mais aberrantes atualmente em curso, poderia produzir propostas de políticas nos terrenos mais relevantes da atividade empresarial, aquela suscetível de produzir emprego e criar renda para milhões de trabalhadores.
Uma concentração nesse tipo de exercício traria mais frutos, a curto e a médio prazo, do que milhões de horas-aulas dedicadas ao enriquecimento cultural dos eleitores mediante aulas teóricas sobre os benefícios do liberalismo ou do conservadorismo para ouvintes preocupados com problemas da vida diária. Os conservadores, na verdade, são aqueles que se opõem às reformas, e estes são os esquerdistas e em primeiro lugar, mas também, e amplamente, os políticos tradicionais. Liberais, ou pessoas se apresentando como tais, já partem com o ônus original da desconfiança, quando não com a acusação (equivocada mas “credível”) de “inimigo dos pobres” ou “amigo dos ricos”, o que pode ser mortal. Uma ação política eficaz não pode ficar na defensiva, e sim partir para a ofensiva, teórica e praticamente.
Sou por um “partido das reformas”, progressista, inovador, ousado, voltado para soluções práticas e desprovido de qualquer rebuscamento intelectual ou de deformações conceituais inúteis para 99% dos eleitores. Num momento de transição como o que o Brasil atravessa atualmente, liberais, conservadores, pessoas de “direita” (se existem, de fato) não podem perder o seu tempo em propaganda abstrata ou discussões principistas em torno das grandes ideias que dizem defender, inclusive porque elas não serão bem recebidas pelo eleitor médio, que é desprovido completamente de educação política, quando não de educação simplesmente. Mas não basta proclamar-se a favor de reformas, também tomadas genericamente: seria preciso ter um cadernos de sugestões e de debates sobre cada uma das reformas focadas em resultados práticos, com exposição concreta sobre as maneiras de implementá-las. Edmund Burke pode até fornecer belas ideias sobre a superioridade do constitucionalismo civil sobre o igualitarismo violento, mas isso não basta: é preciso descer ao terreno da práxis, como já disse um filósofo...

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3141: 23 de julho de 2017.