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terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

O Brasil e o seu vizinho mais importante, a Argentina, talvez distante - Paulo Roberto de Almeida (Crusoé)

 O Brasil e o seu vizinho mais importante, a Argentina, talvez distante  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Artigo sobre as relações Brasil-Argentina, no contexto da primeira viagem de Lula; versão editada publicada na revista Crusoé: “O bloco do Cambalacho”, na revista Crusoé (n. 247, 20/01/2023, link: https://crusoe.uol.com.br/edicoes/247/o-bloco-do-cambalacho/).

 

 

Desde os tempos coloniais, o vice-reinado do Rio da Prata, parte do qual viria a se tornar a Argentina atual, ocupa um lugar especial nas relações exteriores do Brasil. Os patacões espanhóis, moedas de prata de 600 reis, eram uma espécie de “moeda comum”, alimentando o comércio de contrabando entre dois impérios funcionando sob um regime de exclusivo colonial. Depois da libra, veio o dólar, e os dois países passaram da hegemonia informal do império britânico, no século XIX, para a preeminência americana no século XX.

Ambos os países tinham suas diferenças de interesses nacionais, antes mesmo da transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, no decorrer do inédito experimento monárquico num hemisfério republicano e na mais longa ainda adesão dos dois países a regimes presidencialistas, com seus altos e baixos nessa longa duração. Os conflitos começaram na guerra da Cisplatina (atual Uruguai), se prolongaram na queda do ditador Rosas em 1853, se recompuseram parcialmente durante o enfrentamento comum do ditador Solano Lopez, na guerra do Paraguai, e continuaram entre indiferença e aproximação do decorrer do século XX. No início do século passado, a Argentina era cinco vezes mais rica do que o Brasil, em PIB per capita, pelo menos, e bem mais educada. 

A decalagem começou a ser lentamente erodida a partir dos anos 1930, a “década infame” na Argentina – quando foi escrito o tango Cambalache –, que marca também o início da industrialização no Brasil, completada sob o regime militar de 1964, quando o Brasil suplanta a Argentina no poderio industrial e se aproxima do seu nível de renda per capita. Mas esses anos também são marcados, se não pela hostilidade, como no século XIX, ao menos pela indiferença e por conflitos latentes, como nos casos da exploração dos recursos hídricos do Rio da Plata (Itaipu) e dos projetos nacionais (frustrados) de capacitação nuclear.

A convergência de interesses começou mesmo na redemocratização dos dois países em meados dos anos 1980, com a amizade entusiasta de Ricardo Alfonsin e de José Sarney, que também deram a partida a um projeto aberto de integração, mas que ainda não atingiu sua finalidade básica, a formação de um espaço econômico comum, unindo os dois maiores países da América do Sul a outros parceiros regionais, começando por Paraguai e Uruguai justamente. O Mercosul, criado quadrilateralmente em 1991, a partir de um tratado bilateral de 1988, ainda não atingiu os objetivos estipulados no seu Artigo 1º, qual seja, uma união aduaneira completa, base indispensável para justificar o seu nome: o Mercado Comum do Sul. Os obstáculos não estão propriamente no Tratado de Assunção, mas na resistência dos lobbies nacionais a uma verdadeira abertura econômica e à liberalização comercial.

Os seis primeiros países europeus que assinaram os tratados de Roma em 1957, atingiram a meta fixada do mercado comum no espaço de dez anos, ainda assim com diversas lacunas que foram sendo completadas em sua história de mais de meio século, chegando a constituir, atualmente, uma União econômica, dotada, não de uma moeda única, mas de uma moeda comum, que alcança inclusive países que ainda não integram o sistema comunitário. O Mercosul já passou dos trinta anos, mas sequer conseguiu completar sua zona de livre comércio e ainda está longe de se apresentar como união aduaneira perfeita. Os quatro membros originais possuem exceções nacionais à Tarifa Externa Comum, e as demais normas relativas a investimentos e serviços não foram implementadas devido à habituais restrições protecionistas em cada um deles, com destaque para os dois grandes. Depois de uma fase inicial de crescimento do comércio intrarregional, a dinâmica da integração cessou, e o Mercosul tornou-se um palanque retórico dedicado a outras causas que não o comércio.

Assim como ocorre no âmbito europeu, onde os impulsos comunitários são dados pelas suas duas maiores economias, a Alemanha e a França, o maior esforço no caso do Mercosul deveria ser feito pelos seus dois maiores membros. Entretanto, mesmo a despeito de um engajamento puramente formal em favor da integração, os dois grandes não lograram impedir que seus respectivos lobbies protecionistas introduzissem obstáculos burocráticos e regulatórios a uma plena abertura recíproca. Não obstante, tornou-se um hábito, quase que um ritual obrigatório, as viagens bilaterais recíprocas dos presidentes respectivos, primeiro entre Sarney e Alfonsin, depois Collor e Menem, e assim foi indo até chegar na negação dos contatos, durante a gestão Bolsonaro. Não apenas afastamento, mas hostilidade aberta, com base em preconceitos ideológicos sem qualquer sentido no caso de uma relação realmente estratégica, não limitado ao bilateralismo estrito, mas sobretudo no tocante ao Mercosul e a todos os demais temas de interesse comum num contexto bem mais amplo que o comércio.

O ritual das viagens iniciais e dos contatos intensos deve ser retomado a partir de agora com Lula, que só não visitou a Argentina antes da posse em função das dificuldades de uma transição atribulada, depois das eleições presidenciais mais divisivas da história política brasileira. Não se trata apenas de contatos amistosos, mas de uma agenda repleta de temas relevantes para os dois países, nas áreas econômicas, de fronteiras, de segurança e, não menos importante, de coordenação de posições com vistas às grandes questões da ordem política e econômica internacional. Haverá certamente muito mais retórica – ao estilo do velho bordão “tudo nos une, nada nos separa” – do que resultados concretos, tanto porque a Argentina se encontra engolfada numa nova hiperinflação – a maior em três décadas – e o Brasil ainda sequer encontrou a paz interna para cuidar de sua economia combalida, para prometer novos impulsos numa relação bilateral que se mantém em banho-maria desde a grande crise do Mercosul vinte anos atrás.

Registre-se que até o início do presente século, o intercâmbio global do Brasil com os países do bloco representava fração bem mais significativa do comércio total do país do que atualmente, quando os fluxos com a Ásia cresceram enormemente, sobretudo com a China. Registre-se igualmente que a “Brasil dependência” da Argentina acaba de encerrar-se, pois que a China também assumiu a liderança no seu comércio exterior, evolução que já tinha ocorrido para o Brasil desde 2009. A fragmentação do processo de integração que se vê no resto do continente – da qual a Aliança do Pacífico (México, Colômbia, Peru e Chile) é justamente a mais clara evidência, pois que voltada bem mais para a Ásia Pacífico do que para intercâmbios recíprocos – também atinge o próprio Mercosul, no qual o pequeno Uruguai volta a buscar relações comerciais preferenciais fora do bloco, antes na direção dos Estados Unidos, agora num acordo de livre comércio com a China (o Chile já tem um, aliás com praticamente 80% do PIB mundial, desde mais de vinte anos).

Nem o Brasil, nem a Argentina possuem uma visão unificada a respeito, por exemplo, do acordo do Mercosul com a UE, nem a respeito da adesão à OCDE ou a da Argentina ao BRICS (aceita e desejada pela China, que pretende fazer desse foro uma espécie de grupo contrário ao hegemonismo ocidental na OCDE). A referência a uma “moeda comum” no Mercosul não passa de um diversionismo ilusório, sem qualquer chance de prosperar, assim como anúncios reiterados de uma “reforma” no Mercosul que tem pouca chance de prosperar num contexto de dificuldades econômicas nos dois maiores membros. Não obstante, a velha retórica da relação especial vem sendo novamente invocada com certo ardor, como acaba de anunciar o novo chanceler em seu discurso de posse: 

Nossa ideologia na região será a ideologia da integração.

Daremos atenção especial à parceria estratégica com Argentina, Uruguai e Paraguai, fortalecendo os mecanismos bilaterais e a implementação de projetos de interesse comum.

O MERCOSUL deve ser aprofundado, juntamente com nossos três parceiros, nas vertentes que tenham impacto direto na vida das pessoas e no comércio intra e extrarregional, com ênfase no avanço da liberalização e facilitação do comércio dentro do bloco, da conclusão de acordos externos equilibrados, na promoção dos investimentos, no turismo, e na facilitação da circulação de pessoas e bens.

Em diálogo com nossos parceiros, buscaremos recuperar em novas bases a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), garantindo claro sentido pragmático e eficácia à organização. O pronto retorno à Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e a sua dinamização serão, também, objetivos imediatos da política externa brasileira. (chanceler Mauro Vieira, 2/01/2023)

 

Ou seja, nada que se diferencie muito de discursos do passado, por ocasião de posses presidenciais ou de visitas de alto nível. O que não falta, na região, em especial no Mercosul e na relação Brasil-Argentina, são invocações grandiosas de projetos e iniciativas que não tardam a modorrar na condução burocrática e rotineiramente delongada. Nenhum dos países do Cone Sul encontra a energia necessária para confrontar os lobbies protecionistas internos para desarmar, de fato, as barreiras que impedem a adoção do projeto integracionista que constitui o artigo primeiro do Tratado de Assunção: a constituição de um mercado comum do Sul, como aliás é o título oficial do bloco. Os europeus, depois de uma fase intermediária de retraimento na “euroesclerose” – depois do fim de Bretton Woods em 1971 – encontraram a saída firmando o ambicioso projeto do mercado unificado – o Ato Único de 1986 – que os levou a Maastricht e à conformação de um espaço econômico verdadeiramente comum, com a adoção de uma mesma moeda pelos países convergentes com uma série de regras rígidas em matéria monetária e financeira, o que está longe de ocorrer no caso do Mercosul. 

Do lado europeu, prevaleceu o desejo francês e alemão de encerrar definitivamente um século de guerras interestatais – que foram na verdade mundiais – para mirar no projeto comunitário que uniu toda a Europa ocidental e depois se estendeu a suas porções central e oriental. No caso do Cone Sul, a formação de um espaço econômico integrado na América do Sul depende inequivocamente da liderança do Brasil e da Argentina, mas talvez falte, para isso, o acicate de conflitos bem mais graves entre os seus principais protagonistas, entre eles Colômbia e Venezuela. Não é certo que Brasil e Argentina conseguirão superar a letargia dos últimos vinte anos, inclusive porque as eleições no país platino poderão, uma vez mais, levar a um novo distanciamento entre os projetos econômicos nacionais. Os Estados Unidos e a China estarão atentos a quaisquer movimentos dos dois grandes do Cone Sul, que, talvez, sejam parceiros no BRICS, mas provavelmente não na OCDE. Seria uma pena...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4304: 16 janeiro 2023, 4 p.

 

Fórum de Davos: o piquenique invernal do capitalismo bem-comportado - Paulo Roberto de Almeida (Crusoé)

Fórum de Davos: o piquenique invernal do capitalismo bem-comportado

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Artigo sobre o Fórum Econômico Mundial de 2023.

Publicado em versão revista e editada na revista Crusoé: “O capitalismo bem-comportado de Davos”, revista Crusoé (13/01/2023; https://crusoe.uol.com.br/secao/reportagem/o-capitalismo-bem-comportado-de-davos/).

 

 

Por mais de meio século, o suíço Klaus Schwab tem liderado esses convescotes anuais na atraente estação de esqui de Davos, reunindo centenas das maiores empresas mundiais e líderes políticos para debater temas de grande atualidade econômica e política e até alguns problemas de urgente necessidade de resolução cooperativa, como conflitos militares, crises econômicas ou ameaças ambientais e sanitárias de dimensões mundiais. Em 2023, o tema escolhido, de forma talvez deliberadamente ambígua, foi “Cooperação em um mundo fragmentado”, o que parece ser, na tradicional expressão em inglês, uma clara demonstração de understatement, ou seja, uma minimização da situação atual da política mundial.

De fato, a pandemia da Covid-19 em 2020 e 2021 — que levou o Fórum de Davos a se reunir online —, assim como a guerra de agressão da Rússia contra a vizinha Ucrânia — ex-república federada do finado império soviético- não causaram (ainda?) uma grave alteração da ordem global, a despeito de sobressaltos inevitáveis e de alguns impactos mais graves (como crises de abastecimento energético e alimentar em certas regiões do planeta, na Europa ocidental e na África em particular). A ordem econômica quase global de Bretton Woods continua funcionando, assim com a ordem política quase universal da ONU continua não funcionando em seu modo habitual, isto é, com muita retórica, mas poucos resultados práticos.

Na verdade, falar de “cooperação num mundo fragmentado” parece ser, no nosso próprio linguajar, “chover no molhado”, pois que se existe fragmentação no mundo atual este é claramente o momento, e se inexiste cooperação esta é exatamente a conjuntura sob a qual vivemos, duas situações para as quais o encontro de Davos será ineficaz para qualquer tipo de encaminhamento prático.

Nem sempre foi assim no passado, pois alguns convites a líderes de países em conflito — como no caso de Israel e palestinos, por exemplo — ou, na vertente photo opportunity, a celebridades hollywoodianas permitiram avançar alguns centímetros na direção da minimização de danos, nos temas ambiental, de refugiados de guerras civis ou interestatais e até crises sanitárias graves.

Não parece ser assim nesta edição de 2023, pois inexiste qualquer possibilidade de cooperação no caso do mais grave conflito militar no continente europeu desde a Segunda Guerra Mundial, a invasão e a destruição sistemática da Ucrânia pelo seu poderoso e criminoso vizinho, o que gerou uma das emigrações em massa, num curto espaço de tempo, jamais conhecidas em toda a história mundial. A tragédia ucraniana (e seus impactos externos) é totalmente devida à paranoia e à prepotência arrogante de um dirigente russo que não possui qualquer disposição para o diálogo em termos aceitáveis do ponto de vista do Direito Internacional ou simplesmente no contexto da Carta da ONU, cujas obrigações ele violou deliberadamente diversas vezes, e em relação aos quais já se tornou suscetível de “indiciamento” por crimes de guerra, contra a humanidade e contra a paz, as mesmas acusações que levaram líderes civis e militares nazistas ao Tribunal de Nuremberg em 1946.

Tal situação está muito acima da capacidade do Fórum de Davos de tratar de qualquer possibilidade de minimização de danos, assim como é o caso da própria ONU (congelada em face do inaceitável exercício do direito de veto por qualquer um dos cinco membros permanentes do CSNU, quando um deles é o próprio violador da sua Carta).

O Fórum de 2023 consistirá, portanto, em mais um exemplo de keep talking, continue falando a respeito, mas, sobretudo, perca a esperança de avançar em qualquer solução cooperativa, com fragmentação ou sem. Historicamente, nenhum dos grandes problemas da humanidade — desde o Congresso de Viena de 1815, passando pelas negociações de paz de Paris, de 1919, que levaram à criação da Liga das Nações, nem as conferências diplomáticas entre as grandes potências na Segunda Grande Guerra, que resultaram na fundação da ONU — foram resolvidas pela via multilateral e pacifica, e sim por um próprio arranjo consensual entre elas ou no completo esgotamento de outras possibilidades de resolução, depois de imensos danos acumulados. 

Foi assim nos casos da primeira guerra da Crimeia (1853-55), do tratado impositivo de Versalhes (1919) e da própria conformação iníqua e discriminatória do órgão decisor, em última instância, do Conselho de Segurança na conferência de San Francisco que criou a ONU em 1945.

Naquela ocasião, em nome do fundamento doutrinal central do multilateralismo contemporâneo, que é o princípio da igualdade soberana dos Estados — defendido arduamente por Rui Barbosa, na segunda conferência mundial da paz da Haia, em 1907 —, a delegação brasileira em San Francisco (ainda em pleno Estado Novo varguista) opôs-se formalmente ao direito de veto, justamente por ser iníquo e discriminatório, assim como a diplomacia brasileira do pós-guerra continuou opondo-se durante cerca de três décadas ao Tratado de Não Proliferação Nuclear pelas mesmas razões.

Tais questões, pertencentes ao exercício unilateral de uma espécie de “soberania imperial”, que está restrito ao domínio exclusivo da Realpolitik, exercida de forma arrogante pelas grandes potências, está muito além da capacidade resolutiva de um Fórum de “keep talking” como o de Davos, assim como da própria ONU. Os capitalistas multinacionais, assim como os líderes políticos necessitados de alguma photo opportunity, continuarão a frequentar o convescote criado por Klaus Schwab, mas não conseguirão apor sequer um band-aid à fragmentação atual e persistente do mundo.

Desde os anos 1970, quando foi criado, o Fórum de Davos não teve nenhuma influência sobre a dinâmica da Guerra Fria geopolítica dos anos 1947-1990: esta só veio a termo pela implosão autoinduzida do socialismo realmente existente, não por qualquer vitória do capitalismo triunfante sobre seus inimigos autocráticos e estatistas. Também parece improvável que ele consiga influenciar a dinâmica da atual Guerra Fria Econômica entre os Estados Unidos e a China, e a da presente confrontação militar entre a Otan (indiretamente, pela via da Ucrânia) e a Rússia semi-imperial do neoczar Putin.

Davos continuará a ser um jamboree anual de capitalistas bem-sucedidos, condescendendo em ouvir alguns belos discursos entre uma e outra descida de esqui nos Alpes suíços. Todos eles merecem um pouco de divertimento em meio ao extenuante trabalho de garantir lucros e dividendos para proprietários e acionistas dessas grandes empresas politicamente corretas. Superricos também são humanos…

E o Brasil nisso tudo? Em 2003, Lula (recém-empossado) compareceu, numa imediata sequência, ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre, aqueles dos antiglobalistas (hoje praticamente desaparecido, por sua própria contradição nos termos), e ao Fórum Econômico Mundial de Davos, globalista por excelência, falando em cada um aquilo que correspondia exatamente às expectativas das respectivas plateias, o que sempre foi o seu estilo populista. Em 2023, salvo impedimento maior, ele deveria arriscar novamente seu grande prestígio mundial, para tentar atrair alguns bilhões de investimentos externos tão necessitados pela combalida economia brasileira. Como o antigo Fórum “Surreal” Mundial já não apresenta qualquer atrativo midiático, Lula pode exercer o melhor do seu talento na tentativa de “desfragmentar” o mundo e apelar para o aumento da cooperação ao desenvolvimento dos países mais pobres. Apelos desse tipo sempre confortam o ânimo e retiram um pouco do “remorso social” desses capitalistas multinacionais que torram algumas dezenas de milhares de dólares nos poucos dias que passam em Davos. Superricos também têm coração, e um tino especial para novas oportunidades de ganhos. Só não se sabe se o Brasil de Lula III oferece, realmente, oportunidades tão aliciantes quanto aquelas dos anos 2000, quando a economia mundial parecia flutuar em céu de brigadeiro e quando a China e os Estados Unidos ainda pareciam entreter a complementaridade perfeita de uma Chimérica, como sugerida pelo historiador Niall Ferguson.

Os tempos são outros…

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4292: 22 dezembro 2022, 4 p.

 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

De repente, o mundo descobre um brasileiro pouco cordial - Paulo Roberto de Almeida (Revista Crusoé)

 Meu artigo na Crusoé, escrito no calor da hora: 

De repente, o mundo descobre um brasileiro pouco cordial 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

Publicado na revista Crusoé (9/01/2023; link: https://crusoe.uol.com.br/diario/de-repente-o-mundo-descobre-um-brasileiro-pouco-cordial/).


Surpresa! Um Brasil violento aparece nas manchetes da imprensa mundial

A famosa expressão do historiador Sérgio Buarque de Holanda, sobre o brasileiro cordial, tantas vezes mal interpretada, mas muitas vezes mais repetida à exaustão, não deve ser muito conhecida no exterior, mas o fato é que mundo tinha exatamente essa imagem do brasileiro médio: um cidadão pacato, folgazão, amigo de todos, sempre disposto à música e à diversão e bem mais associado às imagens de praias e do Carnaval do que ao trabalho duro. A despeito de um ex-presidente carrancudo, mal-educado e inimigo da natureza, prevalecia a noção de que o brasileiro comum era um cidadão simpático, acolhedor, propenso ao futebol-arte, antes que a esses esportes brutos ou à luta livre, apreciados pelos americanos.

O Capitólio tupiniquim do 8 de janeiro veio desmentir, ou desvelar, o ledo engano. A invasão e a depredação, não de apenas um, mas de três poderes simultaneamente, levaram às primeiras chamadas do noticiário internacional, e às primeiras páginas dos jornais, assim como das novas mídias, imagens deploráveis de novos bárbaros tentando derrubar pela força um novo governo legitimamente eleito pouco mais de dois meses antes. Não se deploram mortos como no Capitólio dos trumpistas, mas o cenário de destruição depois da passagem dos hunos bolsonaristas foi ainda mais devastador do que em Washington. De repente, quase sem aviso, o que eram “manifestações de protesto” – segundo os apoiadores dos vândalos – se converteram em cenas de fúria desenfreada, prontamente reproduzidas em quase todos os canais de informação nos quatro cantos do planeta.

A reação de muitas autoridades mundiais foi também imediata. Poucos minutos após a transmissão das primeiras imagens, declarações, notas e mensagens de indignação e de solidariedade passaram a ser prontamente divulgadas pelos mesmos canais da mídia mundial. Da Argentina à Venezuela, passando por Cuba e Estados Unidos, no hemisfério, da Áustria ao Timor Leste, ao redor do mundo, chefes de Estado, de governo, diretores de organizações multilaterais e de organismos regionais emitiram notas e fizeram pronunciamentos em defesa da democracia brasileira e condenando o que parecia ser, e talvez fosse efetivamente, uma tentativa golpista, no mais puro estilo Donald Trump, inclusive com as mesmas indecisões exibidas pelos órgãos de segurança nos dois casos. O mundo foi então apresentado à face menos risonha do brasileiro supostamente cordial e boa praça, aparecendo em seu lugar um bando de trogloditas enrolados na bandeira nacional. Tudo isso muito pouco depois que o mundo deplorou, de forma unânime, o desaparecimento do rei do futebol, o maior atleta do mundo, o brasileiro mais conhecido do mundo, o “passaporte Pelé”, que salvou a vida de mais de um repórter trabalhando em zonas inóspitas e perigosas.

Como foi a reação mundial aos eventos inéditos da baixa política brasileira?

Imediatamente após as primeiras notícias de Brasília, pelo menos cinco autoridades da União Europeia – os presidentes do Conselho, da Comissão e do Parlamento comunitário, o comissário de relações exteriores e o representante diplomático acreditado no Brasil – emitiram notas, declarações e tuites lamentando o evento e hipotecando solidariedade. Assim também fizeram vários governos europeus na pronta sequência. Na América Latina, não só líderes nacionais dos executivos, mas responsáveis de outros poderes, inclusive do judiciário, também se manifestaram prontamente. Dos Estados Unidos, tanto o presidente Joe Biden e o Secretário de Estado saíram em defesa da democracia no Brasil, além do diretor da OEA e dos conselhos editoriais dos grandes jornais e organismos sediados em Washington; da capital americana, o novo diretor do BID, o brasileiro Ilan Goldfajn, tuitou sua mensagem no primeiro minuto. Letônia, Malta, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Celac, também emitiram seus comunicados. Comissões de juristas, responsáveis de ONGs humanitárias e o próprio Conselho de Segurança da ONU tampouco faltaram na lista das primeiras manifestações de preocupações com a estabilidade democrática no Brasil.

O tom geral é de condenação à tentativa de golpe, ainda que os militares brasileiros – tão criticados no passado por uma das ditaduras mais longevas da América Latina – tenham permanecido estranhamente silenciosos durante a ascensão dos golpistas claramente ligados ao presidente derrotado em outubro passado. A maior parte das manifestações é de confiança, ainda que puramente formal, na solidez democrática das instituições públicas, embora o mundo conheça o nosso histórico de impeachments, bem ou malsucedidos. O presidente da Argentina, Alberto Fernández – o primeiro a receber uma próxima visita de Lula – deu uma entrevista ao vivo, e à quente, à BandNews na qual não descartou cumplicidades em altos escalões das instituições públicas para que a tentativa de golpe chegasse tão longe no ataque ao coração das principais instituições do Estado brasileiro, o que nenhum outro dirigente estrangeiro ousou ainda aventar. De fato, os golpistas não teriam chegado tão longe se não contassem com uma sólida rede de apoios, tanto entre dirigentes do setor privado apoiadores da agenda reacionária de Bolsonaro, quanto da conivência de comandantes no alto escalão das Forças Armadas, amplamente beneficiadas pelas prebendas do ex-chefe.

O que o atentado frustrado à democracia implica para a imagem do Brasil no mundo?

O baixo crescimento brasileiro, as declarações estatizantes e contra o equilíbrio fiscal do presidente recém-empossado e a própria possibilidade de recessão na economia mundial já sinalizavam, desde a formação do governo nas últimas semanas de 2022, perspectivas pouco auspiciosas para a atração de investimentos diretos suscetíveis de criar novos empregos e de dinamizar as exportações, via programas de reindustrialização do setor produtivo. Ameaças de instabilidade política podem representar caução redobrada por parte de empresários interessados no mercado local e, sobretudo, de fundos de investimento apenas financeiros, pois que temerosos de novas turbulências políticas que afetem as reformas mais esperadas pelos mercados: tributária, regulatória, do próprio Mercosul, que ainda é, a despeito de todos os contratempos, a segunda união aduaneira mais relevante no mundo, depois da UE.

Por outro lado, a pronta reação das autoridades, a responsabilização dos responsáveis pelos atos atentatórios às instituições e a inédita união – talvez de circunstância – entre os três poderes na defesa da democracia apontam para uma convergência de intenções, na classe política, no sentido de eliminar pela raiz esse tipo de ameaça antidemocrática, pois que poucos parlamentares de direita – e eles são muitos nesta nova legislatura – ousarão apoiar ou enveredar por uma oposição doravante identificada como propensa à quebra das instituições ou da normalidade democrática. Pode-se até dizer, com alguma suspeita de subjetividade em defesa da democracia, que diminuiu sobremaneira a possibilidade de consolidação de uma extrema-direita no país, retornando o sistema político brasileiro ao usual costumeiro, que é a da alternância entre governos oligárquicos ou populistas, sempre controlados, em última instância, por uma maioria conservadora no Congresso.

De todo modo, pode também ter diminuído a confiança dos grandes parceiros do Brasil no Ocidente desenvolvido numa rápida recondução do país aos canais centrais que se espera de um país plenamente integrado aos cânones usuais dos sistemas democráticos: um governo dispondo da confiança da maioria da população para empreender grandes reformas que são urgentemente demandadas numa agenda quase consensual de governança, em especial no domínio ambiental, a área que mais sofreu sob o desgoverno destruidor anterior. Nessa mesma linha, a relutância do Brasil em seguir o Ocidente na condenação veemente da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, assim como declarações do presidente e do seu principal assessor internacional contrárias a uma rápida adesão do Brasil à OCDE podem turvar um cenário que se apresentava como claramente favorável a esse retorno do país ao antigo grande protagonismo diplomático internacional que vinha praticamente desde o início da redemocratização. O terceiro-mundismo de Lula, sua adesão à fantasmagoria de um tal de Sul Global e a aliança no quadro do BRICS não perturbaram gravemente esse protagonismo.

Pelo menos para a fração democrática do mundo, Trump e Bolsonaro representaram – talvez ainda representem – ameaças à necessária convergência de valores na governança das democracias de mercado, o que se converte em uma agenda ainda mais crucial, no momento em que duas grandes autocracias parecem sinalizar uma competição mais agressiva vis-à-vis o Ocidente liberal, no sentido de oferecer uma outra “ordem mundial” que não é exatamente aquela desenhada em Bretton Woods, instituída em San Francisco e mantida contra ventos e marés durante o longo período de confrontação na geopolítica bipolar dos anos de Guerra Fria. Já a aliança do Brasil e da Índia no quadro do BRICS a essas duas potências autoritárias enfraquece a necessária unidade do campo democrático na defesa de valores e princípios que sempre foram os da diplomacia brasileira, desde o Barão do Rio Branco, de Rui Barbosa, de Oswaldo Aranha, de San Tiago Dantas e de Celso Lafer no quadro do multilateralismo atual, que tem como eixo central a defesa intransigente do Direito Internacional.

As primeiras reações de Lula aos dramáticos eventos do Capitólio bolsonarista deram ao mundo a impressão de um dirigente partidário mais voltado para o lado ideológico dos embates contra seus atuais inimigos, do que a reafirmação do tino racional de um líder político com estatura de estadista mundial, como ele era visto até o presente momento. Espera-se, de modo otimista, que ele faça de suas próximas visitas já programadas – à Argentina, aos Estados Unidos e à China – novas plataformas para a plena reinserção do Brasil ao mundo e não apenas reafirme o Brasil num papel de mero protagonista típico de um país emergente, ainda lutando para reformar uma democracia de baixa qualidade. Oxalá!

Paulo Roberto de Almeida

[Brasília, 4300: 9 janeiro 2023, 4 p.; 8500 caracteres.]


quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Toffoli: o novo "engavetador geral da República"? - Mario Sabino (Crusoé)

Dias Toffoli faz história

Mario Sabino
Crusoé, 22/08/2019

Nestes tempos tão pródigos em acontecimentos empolgantes, como a aprovação da lei de abuso de autoridade que salvará o país da sua própria Justiça, elejo uma frase proferida por Dias Toffoli, em palestra em São Paulo, como o melhor resumo de tudo o que está ocorrendo: “O Brasil ficou travado em quatro anos num moralismo enfrentando questões de ordem e esquecendo o progresso. Você nunca vai ter progresso se tiver que ter ordem como uma premissa.”
Sim, caso você tenha perdido, o presidente do Supremo Tribunal Federal, chefe do Poder Judiciário, disse exatamente isso, segundo o G1, numa inversão do lema da Bandeira Nacional.
Posso estar errado, mas acho que Dias Toffoli criticou a maior operação anticorrupção da história brasileira e quiçá mundial. A minha dedução parte da constatação de que faz quatro anos que a Lava Jato começou a mandar para a cadeia os peixes graúdos do espetacular assalto à Petrobras e adjacências. As palavras de Dias Toffoli levam a crer que ele também compartilharia da opinião pitoresca de que a Lava Jato é a grande culpada pela recessão e estagnação da economia brasileira, ao pulverizar as empreiteiras e outras campeãs nacionais que viviam de pagar propinas milionárias ao governo, em troca de contratos superfaturados. A crise teria pouco a ver com a irresponsabilidade fiscal de Dilma Rousseff e, antes dela, o endividamento geral dos cidadãos promovido por Lula, para além da própria dinheirama desviada do Erário.
Avançando na interpretação de texto, a Lava Jato travou o progresso porque teria deixado em segundo plano o desenvolvimento do país. O que move os procuradores e juízes seria apenas moralismo — aquela afecção da moral que tende a priorizar exacerbadamente valores éticos e mesmo religiosos, em detrimento do contexto. Arrisco um exemplo: Jesus Cristo no momento em que expulsa os mercadores do templo. Ele simplesmente ignorou a teia econômica da Jerusalém de dois mil anos atrás. Contra-exemplo: os robber baronsamericanos do século XIX. Talvez Dias Toffoli ache que, se não fosse a Lava Jato, Marcelo Odebrecht poderia ter-se tornado o nosso Cornelius Vanderbilt. Ou o nosso Jay Gould — modelo mais apropriado, por ter elevado à categoria de arte a distribuição de propinas a políticos e juízes.
Sigo para o corolário toffoliano: “Você nunca vai ter progresso se tiver que ter ordem como uma premissa”. A afirmação significaria, portanto, que barões ladrões que desafiam a ordem são toleráveis, assim como nos Estados Unidos do passado, visto que inevitáveis para impulsionar a economia neste ponto da nossa infância histórica. Ou seja, só daqui a 150 anos não seria moralismo pôr na cadeia os ladrões poderosos que criam departamentos de operações estruturadas, para meter a mão no dinheiro público e comprar facilidades nos poderes constituídos. No futuro, com uma nação plenamente desenvolvida, os barões ladrões, que tanto ajudaram a destravar o caminho, não seriam mais necessários. Se a minha interpretação é correta, Toffoli tem uma visão evolucionista do processo histórico, que iria adiante por meio de fases e mutações sempre positivas. É uma espécie de Giambattista Vico em ondas tropicais.
Como a opinião categórica do presidente do Supremo Tribunal Federal tende a prevalecer no próximo século e meio, deixando em suspenso o imperativo categórico da moralidade, só resta aos cidadãos variar nos sinônimos de ladrão. Vou contribuir para o progresso brasileiro com o roubo de 35 expressões do Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo: 
“Ladrão, camafonge, pichelingue, unhante, lapim, meliante, rato, milhafre, rabaz, empalmador, abafador, rapinante, harpia, quadrilheiro, alfaneque, lascarino, pente-fino, sacomão, filhos da noite (atualíssimo), captor, corsário, fraudador, marraxo, embusteiro, miquelete, forrageiro, peculatário, estelionatário (há os digitais patriotas), concussor, mensaleiro (está no livro, não é contrabando meu), corrupto, escroque, corruptor, propinado aliciante, extorsor.”
Ninguém tem moral para julgar Dias Toffoli. Ele está fazendo história.

sábado, 6 de julho de 2019

O vice-presidente em versão light - Crusoé

O vice em versão light
Hamilton Mourão revela que recebeu um pedido de Jair Bolsonaro para agir com mais moderação e rechaça a desconfiança do entorno do presidente de que os militares estariam interessados em tomar o poder

Igor Gadelha, Rodrigo Rangel
Revista Crusoé, 05.07.2019

Hamilton Mourão agora foge de confusão. Se na campanha ele fazia coro às ideias mais radicais dos apoiadores de Jair Bolsonaro, depois de assumir a cadeira de vice-presidente, o general de 65 anos passou a se comportar como uma espécie de reserva de equilíbrio em um governo afeito a cabeçadas e estridências. Por diversas vezes, entrou em rota de colisão com o próprio Jair Bolsonaro. Quando partidários do presidente, especialmente os evangélicos, defendiam meios para se combater o aborto, ele disse que cabe a cada mulher decidir se deve ou não abortar. Quando o presidente baixou o decreto das armas, afirmou que armar a população não é o melhor caminho para se combater a violência. Quando Bolsonaro fez o ministro da Justiça, Sergio Moro, voltar atrás na nomeação de uma cientista política para um conselho, por diferenças ideológicas, o vice declarou que o país perde quando pessoas que divergem não podem sentar-se à mesma mesa. Quando Bolsonaro afagava Israel e o premiê Benjamin Netanyahu, ele se reunia com o embaixador da Palestina. A sucessão de divergências públicas fez Bolsonaro e seu núcleo mais próximo desconfiarem. Não faltaram suspeitas de que o vice estaria pavimentando um caminho alternativo para alcançar o poder. Mourão passou a ser atacado frontalmente pelas alas mais radicais do bolsonarismo. A relação entre ele e o presidente, que nunca foi das melhores, só fez piorar. Até que, recentemente, Bolsonaro lhe pediu para falar menos e agir com mais moderação.

Na terça-feira, 2, o vice-presidente recebeu Crusoé em seu gabinete, no andar térreo de um dos anexos do Palácio do Planalto. Pela primeira vez, ele admitiu publicamente ter ouvido do presidente o apelo para se expor menos e adotar um perfil, digamos, mais light. “Vamos diminuir um pouco a exposição, vamos manter um perfil moderado nas coisas. Foi um pedido dele”, afirma. Embora não diga, Mourão claramente se ressente por não receber do presidente atribuições claras na máquina do governo. E não esconde a contrariedade por ser, com alguma frequência, alvo de ataques de gente muito próxima do presidente, como Carlos Bolsonaro, o filho 02 de Bolsonaro. “Não sei o que deu na cabeça desses caras. Mas o presidente já entendeu há muito tempo que sou uma linha auxiliar dele.” Sobre a mesa do vice, livros que dizem muito. Um deles, a leitura do momento de Mourão, é Leadership: In Turbulent Times (Liderança em tempos turbulentos, em tradução livre), em que a historiadora Doris Kearns Goodwin, a partir da experiência de quatro dos mais proeminentes presidentes da história americana, discute de onde vem a ambição pelo poder e se líderes são construídos ou já nascem líderes. Logo ao lado, repousa Apelo à razão – A reconciliação com a lógica econômica, no qual os economistas Fabio Giambiagi e Rodrigo Zeidan defendem que o Brasil “deixe de flertar com o populismo, com o atraso e com o absurdo”. Mesmo na nova fase, mais comedida, o vice-presidente não deixa de surpreender. A seguir, ele também conta o motivo pelo qual o general Carlos Alberto Santos Cruz foi demitido por Bolsonaro: “O Santos Cruz ficou chateado com aquela história das mensagens montadas e pediu para abrir um inquérito. Acho que ali eles andaram se estressando”. Eis o que ele disse a Crusoé.

Como o sr. enxerga a leitura de que haveria intenção do governo de pressionar, por meio de seus apoiadores nas ruas, os outros poderes?
Não vejo que a coisa ocorra dessa forma. Não vejo que o governo atue nesse sentido. Se o governo atuasse nesse sentido, teria que dar dinheiro. Nessa militância que, digamos, é mais aguerrida, que tem ido à rua nessas últimas manifestações, vejo uma coisa mais espontânea. Vem desde aqueles movimentos que foram criados em 2013, e aí eles ficaram mais organizados depois. O MBL, o Vem Pra Rua, o Nas Ruas…

Não há, então, a intenção de emparedar o Supremo e o Congresso?
Não. Se houvesse, o governo estaria sendo antidemocrático, e o governo não é antidemocrático. Agora, eu falo sempre: o governo tem três vetores em que temos que atuar o tempo todo. Um deles é a clareza. Temos que demonstrar por que nós viemos, a situação que estamos enfrentando, todo mundo tem que entender isso. Também é preciso ter determinação para superar isso aí. E tem que ter paciência. É um jogo de paciência. Paciência no sentido que você tem que negociar, conversar, ir lá para dentro do Congresso. Não adianta você se exasperar e dizer: por que não aprovaram a Previdência até agora? Eles vão aprovar. Mas vão aprovar no tempo que lhes convêm.

Falta jogo de cintura do governo nessas relações?
Acho que não. Acho que, por exemplo, o coitado do Onyx (Lorenzoni, ministro da Casa Civil) sofre muita crítica, mas tem procurado fazer o trabalho dele. Fala com os ministros para que atendam os parlamentares. Em toda reunião ele volta a esse tema: olha aí, minha gente, vamos atender os parlamentares, vamos conversar, vamos receber.

Há quem diga que Onyx está com a cabeça a prêmio…
Não, acho que não. Pelas demonstrações que o presidente tem dado, ele não está com a cabeça a prêmio, não. Não vejo dessa forma. Não vejo.

E o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, será demitido?
O ministro do Turismo é aquela história: o presidente já foi claro, já conversou com o (ministro da Justiça, Sergio) Moro, chamou o Moro, e (não demitirá) enquanto não houver a culpabilidade ou indício realmente forte de que ele está metido nisso aí. Na realidade, vamos colocar assim, os valores envolvidos são muito pequenos. É aquela velha história: se você desviou mil ou um milhão, o desvio é igual. Mas são valores pequenos envolvidos nessa guerra toda. Então, enquanto não houver provas conclusivas sobre o ministro, o presidente vai mantê-lo.

De alguma forma, isso não é seguir a cartilha que o PT adotava?
Não. A Dilma, por exemplo, passou o rodo ali no começo daquele segundo governo dela. Pegou oito caras ali e mandou tudo para a rua. Virou a faxineira. No caso do Marcelo, o presidente tem os elementos dele, eu não disponho dos elementos que o presidente tem. O presidente me perguntou a respeito. Eu emiti a minha opinião, que vou me reservar de falar aqui para vocês.

A posição do sr. foi pela demissão?
Não. Não foi por aí, não. Então, o presidente vai decidir quando achar necessário. Ele já respondeu isso.

Como está sua relação hoje com o presidente?
Nossa relação é ótima. Tivemos aqueles problemas ali na época que o Olavo de Carvalho resolveu me atacar, (o deputado Marco) Feliciano, não sei mais o quê. Não sei o que deu na cabeça desses caras. Mas o presidente já entendeu há muito tempo que sou uma linha auxiliar dele. Que eu tenho uma tarefa aqui com determinados segmentos, que eu posso levar a mensagem dele de uma forma bem clara. Ele já entendeu isso.

O presidente lhe deu alguma missão específica, como, por exemplo, ajudar na aprovação da reforma da Previdência?
Não, ele não me deu nenhuma missão nisso porque essa missão está nas mãos do Onyx.

Qual foi o momento mais crítico desse período de estresse com o presidente?
Não tivemos conversa estressante, na realidade. Mas o que aconteceu? Quando você é bombardeado por gente que seria nossos aliados, você fica preocupado com isso aí. E aí as únicas coisas que tratamos ali foi: vamos diminuir um pouco a exposição, vamos manter um perfil moderado nas coisas. Foi um pedido dele.

Como recebeu esse pedido?
De forma normal. Essa é uma orientação que o comandante passa para seu subordinado. É normal isso aí.

Como enxergou a demissão do general Santos Cruz e de outros militares? O presidente quer evitar sombras ao poder dele?
Não. O que vejo é que há uma interpretação errada de parte da imprensa como um todo sobre a questão de núcleo militar. Não existe esse núcleo militar. Existem militares que foram convocados pelo presidente. A imensa maioria de vocês não consegue fazer uma leitura correta do que é o pensamento militar, porque não tiveram vida de caserna. Durante muito tempo os militares estiveram afastados da política. Então, não era preocupação para ninguém saber como é que a gente é formado, como é que vivemos. Então, há essa leitura errada. Quando você chama um militar, coloca o cara lá de ministro-chefe da Secretaria de Governo, ele está focado naquilo ali. Ele não está olhando para os lados. É diferente do político. O político está sempre olhando assim, porque daquilo depende a sobrevivência dele, do prosseguimento dele dentro da carreira política. Nós, não. Nós já temos uma carreira. Então, o cara foca naquela tarefa que ele recebeu. O caso específico das demissões não passou por mim. O presidente, em nenhum momento, discutiu comigo a saída do general Santos Cruz, a saída do (general) Juarez dos Correios e aí o Floriano Peixoto ter ido para lá (para os Correios). Mas, ele tirou o Santos Cruz e está trazendo o (general) Ramos. O que vejo é que ele procurou, num segundo momento, organizar melhor, dentro da visão dele, aquele núcleo duro que fica em volta dele no palácio.

Chamou atenção o sr. ter tomado conhecimento da demissão do general Santos Cruz pela imprensa. Não gostaria de ter sido consultado?
Olha, é aquela história: o presidente é o decisor. Se ele quisesse a minha opinião, ele me consultava. Acho que ele vinha amadurecendo essa ideia. Ele conversa muito com o general Heleno, tem outros conselheiros dele ali mais próximos. Eu não fico preocupado com isso aí, não.

Mas gostaria de ter sido ouvido?
Não era o caso. Não era o caso de eu ter sido ouvido, porque não fui eu que o escolhi. Se fosse uma pessoa escolhida por mim, acho que aí sim.

Mas houve críticas de alguns colegas, militares, pela forma como se deu a demissão.
Ministro é aquela história. Você chama o cara e diz: “Olha, não estou mais gostando do seu trabalho, você, por favor, apresenta uma carta de demissão”. E aí o cara, normalmente, diz assim: “Eu não vou me demitir, você que me demita”. A coisa, mais ou menos, rola dessa forma. Não sei como foi a conversa entre eles. Então, não posso fazer nenhuma ilação sobre isso.

Fica a percepção de que o presidente estaria tirando do próprio entorno militares que poderiam criar sombra para o poder dele.
Não. Do entorno dele, ele só tirou o Santos Cruz. Acho que a questão que pode ter havido entre o Bolsonaro e o Santos Cruz foi que o Santos Cruz ficou chateado com aquela história das mensagens montadas e pediu para abrir um inquérito. Acho que ali eles andaram se estressando. Era montagem. A Polícia Federal está com inquérito aberto, investigando.

Na última segunda-feira, o vereador Carlos Bolsonaro voltou a criticar os militares, com foco agora no GSI. Como o sr. enxerga essa desconfiança?
Olha, eu não conheço o Carlos Bolsonaro. Nunca tive a oportunidade de conversar com ele. Os outros dois filhos conheço superficialmente, e não posso emitir uma opinião sobre eles. Então, o Carlos, ele, pô, é um vereador, está há 20 anos na política. Ele tem as opiniões dele. Então eu deixo o Carlos falar. Fala. O cara quer falar, quer emitir suas críticas, emite. Deixa para lá.

Incomoda essa leitura do Carlos de que há um movimento de militares para usurpar o poder do pai dele?
Acho que, talvez, isso esteja na cabeça dele, do Carlos. Mas, se existe um grupo leal, é o grupo militar, pô. Esse ele pode ter certeza que estará com ele até o último dia, não importa o que acontecer.

Há alguma razão na crítica que ele faz ao GSI?
Não. Ele desconhece. Porque o episódio da droga era algo afeito à Força Aérea. A Força Aérea é que era responsável pelo controle do pessoal que embarca na aeronave. Não era uma aeronave onde o presidente estaria. Era uma aeronave que estava levando a turma de apoio. Então, é um controle que a Força Aérea tem que estabelecer. Não tem nada a ver com o GSI. O GSI não controla essa aeronave. Ele controla quem vai embarcar na aeronave do presidente. Inclusive, a coisa funciona da seguinte forma: o VC1 levanta voo, faz um circuito de 10 minutos para ver se está tudo bem, toca o solo, e aí ele é lacrado. É chamado de “o voo da bomba” (refere-se ao procedimento de rotina adotado antes das viagens do VC1A, o avião que transporta o presidente da República).

Mas todos que viajam em aviões da FAB passam por revista?
Não. Pois é. A nossa visão é que todo mundo que for embarcar numa aeronave da Força Aérea tem que passar. Quando tu vai embarcar na TAM, na Gol, não tem que botar tua malinha no raio-X? Então, bota a malinha no raio-X.

Mas todo mundo tem passado? O sr., como vice-presidente, não é obrigado a passar, certo?
Agora começa por mim. Passa por mim primeiro. O burro puxa a fila.

O governo já tem alguma informação se o sargento faz parte de um esquema maior?
Não. Isso aí está dentro de um inquérito. Tem um inquérito que a Força Aérea está conduzindo, que é para olhar o lado de cá. E a polícia espanhola está conduzindo a parte dela lá, para saber para quem que o cara ia entregar essa droga. Agora, vocês já viram que o cara é todo enrolado, né? Todo enrolado. O cara tinha se separado da mulher, deixou a mulher morando com os filhos no Próprio Nacional Residencial (PNR, como são chamadas as residências oficiais destinadas a militares), o que não podia, se juntou com outra criatura e foi morar lá em Taguatinga. Ou seja, é um poço de problemas. É um alvo fácil.

Fale um pouco das delícias e também dos desafios da vida de vice-presidente da República.
Vivemos uma vida de presos albergados. Eu ainda tenho mais liberdade que ele (o presidente). Mas, realmente, em qualquer lugar que você chega, daqui a pouco o pessoal começa a tirar foto. Hoje você atrai a simpatia das pessoas. Vamos ver quando começarem a vaiar e jogar pedra (risos).

Qual foi o momento mais desafiador desse seu período na vice-presidência?
É você entender a tarefa. A partir do momento em que entendi perfeitamente qual era a minha tarefa e qual era, vamos dizer assim, o canal que eu tinha para prosseguir, ficou tranquilo. Sem mistério.

O que o sr., como vice-presidente, já sabe a respeito da onda de invasões de celulares de autoridades da Lava Jato?
Não sei de nada. Porque é aquela história: a área de inteligência trabalha de forma compartimentada. Quem está investigando isso aí não está vazando ou falando aos quatro cantos. Eu não tenho necessidade de conhecer, não sou escalão decisório para isso. Não preciso saber de nada.

Aposta que será possível chegar ao hacker?
Acho que sim.

É a Lava Jato que está sob ataque?
Olha, não sei se é a Lava Jato ou as pessoas que compõem a Lava Jato. Não sei se é a operação em si ou as pessoas que a compõem. Agora, uma coisa é muita clara: existe um crime continuado sendo executado. Vejo muito claro: se eu tomo conhecimento de coisas que poderiam ser irregulares que chegam para mim, eu vou ao Ministério Público e digo: “Está aqui, investigue isso aqui. Era isso que teria que ser feito” (refere-se à informação de que Sergio Moro indicou uma testemunha aos procuradores). E você vê nitidamente que existe um vazamento de mensagens que você não sabe se são verdadeiras, não sabe o contexto em que elas foram trocadas. E mesmo as que estão sendo divulgadas não indicam conduta irregular por parte dos ministros e dos procuradores. Ou seja, está se fazendo uma celeuma política em torno de um crime.

O sr. vê uma segunda intenção por trás desse movimento? Libertar o ex-presidente Lula, por exemplo?
Pode ser que o Lula seja, vamos colocar assim, o efeito colateral disso aí. Mas acho que talvez a maior coisa é destruir a imagem do ministro Moro. É um ataque ao maior patrimônio dele, que são a honra e a integridade dele.

O sr. confia no ministro Moro?
Plenamente.

Agora que o presidente já anunciou que poderá disputar reeleição, o sr. já conversou com ele sobre repetir a chapa?
Não. Vamos lembrar o seguinte: o presidente Bolsonaro buscou vários parceiros antes para compor a chapa dele. Sempre me disse: olha, você fica em condições porque posso precisar de você. Foi sempre o nosso acerto. Na hora em que ele precisou, muito bem. Se em 2022, ele efetivamente for concorrer e não precisar de mim, tranquilamente volto para minha vida, sem problema nenhum.

O sr. considera que foi um acidente de percurso na vida de Jair Bolsonaro?
Não, acidente de percurso não porque ele vem falando comigo há cinco anos. Então, não houve acidente de percurso. Eu não tenho ambições políticas. Nunca tive.

Em que medida a reforma da Previdência, se aprovada, vai contribuir para solucionar a crise econômica?
A reforma da Previdência, o Paulo Guedes explica bem isso aí, e a gente fala também, não é a solução dos nossos problemas de hoje para manhã. Pelo contrário. Ela é a solução de médio prazo. A imagem melhor é a de o país que está dentro de uma garrafa. Estamos presos nessa garrafa e tem um gargalo para a gente sair dela. O gargalo é a reforma da Previdência. Então, a gente passa a reforma da Previdência e você sai da garrafa, e aí tem campo aberto para as outras reformas que serão colocadas. A (reforma da) Previdência vai te dar uma previsibilidade. Este ano, por exemplo, o déficit da Previdência é de 370 bilhões. A partir do momento em que você diminui esse déficit, vai pagar menos juros da dívida. Estamos pagando 400 bilhões. Se eu pagar menos 30 bilhões, são mais 30 bilhões que tenho para investir. A lógica é essa.

O governo está fazendo toma lá, dá cá para aprovar a reforma da Previdência?
Isso não passa por mim. Então, não posso chegar e responder que isso daí está sendo feito, que foram prometidas emendas, porque estou tomando conhecimento disso pelas próprias publicações da imprensa. Essa negociação não é afeta a mim. Agora, acho que a liberação de emenda… A emenda é uma coisa obrigatória, foi colocada como uma coisa obrigatória. A liberação de emendas faz parte do jogo político.

E os cargos?
Eu sei que o presidente sofre pressão por cargos. Mas ele tem procurado se manter dentro da linha de ação que traçou de não entregar o governo de mão beijada.

domingo, 12 de maio de 2019

A Internacional olavista - Duda Teixeira (Crusoe)


A Internacional olavista
Como Olavo de Carvalho se encaixa no movimento global que tenta empurrar a direita para o populismo nacionalista
Marina Dias/Folhapress

Olavo de Carvalho cumprimenta Steve Bannon, em março, ao lado de Eduardo Bolsonaro 10.05.19

Crusoe, n. 54

O presidente Jair Bolsonaro recebeu das urnas um mandato para combater a corrupção e resolver o problema da segurança pública. O estado de devastação deixado pelos governos anteriores do PT, com seus gastos sem controle, também o levou a aceitar a prescrição de remédios ortodoxos, como as privatizações, a reforma da Previdência e a redução da máquina pública. No conjunto, esses pilares seriam mais do que suficientes para colocar o atual governo no campo da direita liberal, a exemplo de outros da região, como os da Argentina, do Chile e da Colômbia. A ideia era que o discurso mais conservador na área comportamental, muito utilizado durante a campanha eleitoral, fosse apenas moldura. Mas, pressionado pelo escritor Olavo de Carvalho, o presidente parece ter perdido o controle sobre a ala mais ideológica do seu governo.
Este grupo, que entrou em conflito aberto com os militares nas últimas semanas, é composto por dois filhos do presidente, Eduardo e Carlos, o assessor especial do presidente para assuntos internacionais, Filipe Martins, e o chanceler Ernesto Araújo. Ao emplacar diversas nomeações, a ala fincou raízes principalmente no Itamaraty e no Ministério da Educação. Seus integrantes destilam uma esperada ojeriza à esquerda, ao PT e ao suposto domínio marxista nas instituições brasileiras. Mas vão mais além ao incluir em suas reivindicações um fervor de natureza religiosa que tenta incluir a disputa política doméstica numa campanha mundial em prol de valores judaico-cristãos e ideais ultranacionalistas. No entendimento dos envolvidos, eles seriam os escolhidos para redimir o povo, que foi ludibriado e submetido pelas elites, pela imprensa, pelo sistema político e pelas organizações internacionais. É com essas bandeiras extras, de alcance menor na população, que a ala ideológica do governo brasileiro se incorpora à onda liderada pelo americano Steve Bannon, o ex-estrategista que trabalhou para Donald Trump durante sua campanha e depois, por oito meses, na Casa Branca.
Em janeiro de 2017, mês em que Trump tomou posse em Washington, Bannon e o advogado Mischael Modrikamen, fundador do Parti Populaire (Partido Popular) na Bélgica, registraram em Bruxelas a organização The Movement (O Movimento). O objetivo da dupla era apoiar grupos populistas e nacionalistas na Europa e no resto do planeta. São três os eixos principais do Movimento: mais soberania para as nações que fazem parte de mercados únicos, ênfase contra o radicalismo islâmico e uma política rígida de fronteiras. Em agosto desse mesmo ano, Bannon foi demitido por Trump. Depois de chorar e de implorar para manter o cargo, ele passou a se dedicar com mais fervor à sua causa nacionalista e populista. A América Latina, que de início mal aparecia em seu mapa, acabou virando uma das maiores surpresas.
Bolsonaro venceu as eleições de 2018 com quase 58 milhões de votos. Sua vitória fez com que os contatos que já estavam sendo feitos com Eduardo Bolsonaro se intensificassem em velocidade vertiginosa. “Durante a campanha de Jair Bolsonaro, Steve Bannon deu conselhos para equipe do brasileiro, da mesma forma como ele fez durante a campanha de Donald Trump”, disse a Crusoé Mischael Modrikamen, parceiro de Bannon. “O Movimento enxerga Bolsonaro como um líder populista chave e sua eleição como parte da insurreição populista que vimos no Brexit e na eleição de Trump”. Em janeiro de 2019, após a posse de Bolsonaro, Bannon visitou a casa de Olavo de Carvalho no estado americano da Virgínia. Os dois vivem a duas horas de distância. Conversaram sobre a situação do Brasil e ao que consideram ameaças ao Ocidente. No mês seguinte, Bannon nomeou o deputado Eduardo Bolsonaro para ser líder do Movimento na América do Sul. Na viagem de Jair Bolsonaro aos Estados Unidos, em março, o primeiro evento da agenda foi um jantar na residência oficial do embaixador brasileiro em Washington, Sergio Amaral. Olavo de Carvalho e Steve Bannon estavam entre os convidados à mesa. “Olavo é um dos maiores intelectuais conservadores do mundo. O que ele prega é o que eu chamo de evangelho da verdade”, disse Bannon, em vídeo compartilhado nas redes sociais.
Afinados na ideologia, Olavo de Carvalho e Steve Bannon são personalidades com habilidades diferentes, mas complementares. “Minha impressão é a de que Olavo tem perfil mais intelectual, de professor, enquanto Bannon é, sobretudo, um operador político, um homem de ação”, diz o embaixador Rubens Ricupero. Há também uma distinção em relação aos interesses. Bannon olha muito mais para a Europa e para os Estados Unidos. Ele já afirmou que dedicaria 80% de seu tempo ao Velho Continente, que terá eleições para o Parlamento Europeu entre 23 e 26 de maio. Olavo de Carvalho, obviamente, tem os olhos voltados principalmente para o Brasil. “Ele tem a pretensão de promover uma revolução conservadora no país, que estaria dominado pelo marxismo cultural”, diz o especialista em relações internacionais Carlos Gustavo Poggio.
Nas batalhas retóricas dos últimos dias, o general Eduardo Villas Bôas, assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional que foi atacado por Olavo de Carvalho, chamou o escritor de “Trotski de direita” – uma comparação que, na verdade, se encaixaria muito mais ao figurino de Bannon do que ao do guru, cada vez mais identificado como o longa manus do plano mirabolante de Bannon na parte brasileira do Globo. “Bannon estaria muito mais próximo de Trotski, pois tem buscado mais ativamente a internacionalização de seu movimento através de uma espécie de revolução global permanente”, diz Poggio. “Olavo de Carvalho é apenas uma peça no xadrez do americano”. A  mais recente ofensiva do guru, que adora bater em Hamilton Mourão, teve como alvo o ministro da Secretaria de Governo, o general Carlos Alberto Santos Cruz. Sob a alçada do militar está a comunicação do Palácio do Planalto. Internamente, há quem veja nos ataques de Olavo de Carvalho um movimento orquestrado para que a ala mais ideológica do governo tome o controle não só da estrutura como da verba milionária da área. Vencer a resistência dos militares e passar a controlar o setor seria um atalho para amplificar, com dinheiro e organização, o ideário do grupo.
Para cumprir a missão que se atribuiu, o Movimento tem como proposta funcionar como um “clube”, abrigando sob o mesmo guarda-chuva líderes populistas para discutir e trabalhar juntos. “Os da esquerda e os globalistas já têm as suas plataformas: o Fórum de Davos, o Clube de Bildeberg, George Soros e sua Open Society Foundation e, em alguma medida, a União Europeia e as Nações Unidas”, diz Modrikamen. Mais do que promover reuniões, seus fundadores se propõem a prover estratégia de campanha, conexões e aconselhamento político para agremiações populistas nacionalistas dispostas a pagar pelos serviços. Para as eleições do Parlamento Europeu, o Movimento espera que esses partidos formem uma única bancada coesa dentro do Parlamento Europeu. “O grupo não seria chamado de Movimento, mas nós certamente o apoiaríamos”, diz o belga.
Com o objetivo de formar líderes populistas para o futuro, o Movimento iniciou na Itália outra empreitada. No Monastério de Trisulti, construído em 1204, Bannon pretende fundar a Academia do Ocidente Judaico-Cristão. Seria uma “escola de gladiadores para guerreiros culturais”, segundo seu coordenador, o inglês Benjamin Harnweel. O complexo histórico, que fica no alto de uma montanha, foi alugado por 100 mil euros por ano pela organização Dignitates Humanae Institute, de Harnweel. A localização, a duas horas de Roma, é simbólica. “Roma, além de Jerusalém e de Atenas, é o centro do Ocidente Judaico-Cristão”, diz Bannon. O primeiro curso piloto, que tem entre duas e quatro semanas de duração, está programado para este ano. As aulas devem incluir teologia, economia, história, filosofia e mídias digitais. Entre os professores, estaria Olavo de Carvalho. “Ele disse que seria uma honra juntar-se à universidade”, disse o americano ao jornal Financial Times. Para oferecer diplomas certificados de mestrado, Bannon está buscando uma parceria com uma universidade católica americana.
É na Itália que o Movimento mais tem obtido sucesso. Em agosto do ano passado, o vice-presidente e ministro do Interior, Matteo Salvini, assinou a entrada de seu partido, a Liga (ex-Liga Norte) no grupo de Bannon. A legenda está em franca ascensão. Das atuais seis cadeiras que ocupa no Parlamento Europeu, a Liga deve pular para 26. Outro partido de direita do país, a Fraternidade Italiana, de Georgia Meloni, também aderiu ao Movimento. Alinhado com Bannon, Salvini propôs a união de diversos partidos nacionalistas europeus em um único bloco no Parlamento Europeu, o Europa das Nações e Liberdade (ENF, na sigla em inglês). Entre os que já aderiram, está o francês Reunião Nacional, de Marine Le Pen. Juntos, os membros do ENF devem conseguir perto de 60 das 751 cadeiras do Parlamento em Bruxelas, cerca de 8% do total. Mas o Movimento também tem esbarrado em diversos obstáculos. No ano passado, o grupo divulgou que pretendia fazer uma convenção com vinte a trinta partidos populistas do mundo todo. O evento acabou adiado por falta de quórum.
“Esses partidos não precisam de Bannon para seguir adiante”, diz a socióloga Mabel Berezin, professora da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, e estudiosa da política francesa e italiana. O Movimento não tem uma lista oficial de membros próprios, mas afirma ter feito acordos com três siglas. Além da Liga, de Salvini, e do Fraternidade Italiana, apenas um desconhecido partido de Montenegro, Movimento por Mudanças, integra a lista. “Bannon costuma exagerar a influência que de fato exerce na Europa. É certo que contatos ocorreram, mas ele não participa ativamente das campanhas. Bannon se comporta muito mais como um conselheiro informal”, diz o cientista político italiano Lorenzo Pregliasco, professor da Universidade de Bolonha e autor do livro O Fenômeno Salvini.
As especificidades da política europeia, bem mais heterogênea que a americana, também deve inviabilizar o crescimento do bloco de partidos nacionalistas, como gostaria o Movimento. Salvini e Le Pen, do ENF, têm tentado atrair o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán, cujo partido, o Fidesz, pertence a outro bloco de direita, o Partido do Povo Europeu (EPP, na sigla em inglês). Orbán tem resistido a aceitar a proposta. Os poloneses do Partido Lei e Justiça também não pretendem se unir a Salvini e Le Pen. Isso porque ambos são próximos do russo Vladimir Putin, o que naturalmente causa desconfiança na Polônia. O Movimento 5 Estrelas, que governa a Itália em coalizão com a Liga de Salvini, também tem preferido ficar longe de Bannon e integrar outro bloco com o inglês Ukip. Os nacionalistas, ao final, deverão estar fragmentados em três blocos no Parlamento Europeu. A maior parte deles acha até contraditória a proposta de uma frente “internacional”. O fato de o Movimento ser liderado por um americano e ter a sede em Bruxelas, a cidade que é o símbolo da União Europeia, só piora as coisas.
A Academia do Ocidente Judaico-Cristão também se viu obrigada a redimensionar os seus planos. Para alugar o mosteiro, a organização ligada a Bannon alegou que tinha experiência na administração de museus, o que se provou falso. A Dignitates Humanae Institute não estava, ainda, legalmente registrada à época da negociação com o governo italiano — o que contraria a legislação. Moradores locais, anarquistas e ambientalistas têm protestado contra a chegada do Movimento. Eles alegam que Bannon, seus professores e alunos desvirtuariam o local, até então dedicado à paz e à contemplação. As finanças são outro buraco no caminho. O prefeito da vila medieval de Collepardo, aos pés da montanha, aplicou um imposto de 80 mil euros por ano aos novos locatários. Não há qualquer garantia de que conservadores do mundo inteiro se sentirão atraídos a estudar na Academia do Ocidente Judaico-Cristão, pagando entre 40 mil e 50 mil euros por curso. Bannon não convenceu outros patrocinadores a investir na instituição. Até agora, tudo tem saído do seu próprio bolso.
“Nossa perspectiva de crescimento é global”, diz o belga Modrikamen. “Vemos muito potencial em países como Japão, Israel, Paquistão, Estados Unidos e, claro, Brasil”, diz ele. O cumprimento desse objetivo, contudo, dependerá da habilidade de vencer barreiras. No Brasil, o papel de pedra no caminho tem sido desempenhado pelos militares, avessos à ideia de uma “internacional  nacionalista”. Daí os ataques constantes de Olavo de Carvalho aos integrantes das Forças Armadas que integram o governo. Em uma postagem no Facebook no dia 5 de maio, o general Paulo Chagas mandou um recado para a ala ideológica que se reúne em torno de Olavo de Carvalho. “Vejo o deslumbramento e o radicalismo da parte dos aliados que se julga a única representante e responsável por estes novos tempos que podemos vir a desfrutar. São, em sua maioria, pessoas bem intencionadas, mas que se tornaram pacientes de um processo de submissão passional e intelectual que as impede de entender a importância, a sensibilidade e a complexidade deste momento”, escreveu Chagas. “Que, pelo menos, nos motivemos para pensar sobre isto antes de pôr em risco a melhor oportunidade que já tivemos para alcançar o tal futuro que há tantas gerações estamos a perseguir’.