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sábado, 28 de novembro de 2020

Reflexões sobre um personagem que anda à procura de um autor (com a devida licença de Pirandello) — Paulo Roberto de Almeida

 Reflexões sobre um personagem que anda à procura de um autor (com a devida licença de Pirandello)

Paulo Roberto de Almeida

O Josias de Souza chamou o patético personagem — a quem eu chamo de chanceler acidental — de “sub-chanceler”. 

Acho que faz sentido, mas não todo o sentido. Tem muito mais coisas atrás dessa pobre filosofia.

Lula já tinha inventado a figura do “sub do sub”, mas falando de ninguém menos do que o USTR de Bush, Robert Zoellick.

Bolsonaro queria um “sub do sub” no Itamaraty. Acabou achando, sem ser preciso ler “Trump e o Ocidente” (que, de resto, ele não entenderia nada).

O rapaz perdeu um tempo enorme fazendo um blog cheio de altas considerações metapolíticas e metahistoricas, para meia dúzia de leitores. Ignaros além de tudo.

É um escritor sem leitores, para gente que só queria um pau-mandado no Itamaraty.

Como aquele coronel do Garcia Marquez, que “no tenia quien le escribiera”, o rapaz não tem quem o leia. Está mais para mero escrevinhador das alucinações alheias.

Na verdade e de fato, acho que está mais para capacho de toda essa gente: do degenerado, do Rasputin OC, do Zero Três, do Robespirralho, do Trump e do Pompeo, de quem mais?

É o sub do sub do servilismo automático...

Acho que o cara deve se angustiar, na frente do espelho, antes de ir dormir, toda noite.

Aliás, deve ser difícil conciliar o sono, pensando e remoendo tanta humilhação diariamente, constantemente, cada uma pior que a outra. 

O Serviço Médico do Itamaraty vai ter de conseguir uma equipe inteira de conselheiros “espirituais”, depois que terminar o sofrimento: um psicanalista, um psiquiatra, um psicólogo, um neurologista, um curandeiro, das várias escolas combinadas: um freudiano, um outro junguiano, não pode faltar um lacaniano, talvez um reichiano, quem sabe um marcusiano? (êpa!), um umbandista, o pessoal da canabis recreativa, do Santo Daime, whatever, whoever...

Deve ser duro de aguentar ter de trabalhar para gente tão ignara, que o vigia de perto: ninguém ali leu Also Sprach Zarathustra no original, ninguém penetrou nos segredos da Imitação de Cristo, ninguém pensou na batalha de Salamina como a salvação do Ocidente antes do Ocidente vir a ser o Ocidente, nem o Trump, que nunca ouviu falar de Spengler, muito menos de Toynbee, que achava que os EUA já tinham entrado em decadência aí por 1947...

Deve ser duro para o rapaz: podia estar escrevendo novelinhas distópicas, mas foi se meter com um bando de bárbaros fundamentalistas. 

Será que já está arrependido?

Se não está agora, se sentindo todo poderoso, protegido pelo degenerado e seus rebentos, vai se sentir depois, quando a festa acabar.

Imaginem o “corredor polonês” virtual do Itamaraty, quando a luz apagar e os lambe-botas se afastarem? Como é que vai ser?

Amanhã vai ser outro dia, como diria o seu compositor favorito...

Pois é, agora é tarde para se arrepender.

Devia ter pensado antes.

Mas, sempre tem compositor com Réquiem já preparado: assim acaba uma carreira.

Não vou antecipar o julgamento da história. Eu mesmo vou fazer a crônica dos tempos presentes e passados: aliás, já está no quarto volume, só falta encontrar um título accrocheur, que não pode ser RIP evidentemente. Deve ter algum slogan latino apropriado. Preciso sacar o meu Cícero, o meu Virgílio, quem sabe até um Dante? Talvez encontre alguma sugestão no Metapolítica 17, alguma coisa com laivos wagnerianos...

Nada menos abaixo da sua desimportância para a história da diplomacia brasileira...

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 28/11/2022

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Por que ainda se discute a possibilidade de uma moeda comum sul-americana? - Natan Cauduro (Beta Redação)

Por que ainda se discute a possibilidade de uma moeda comum sul-americana?

Interessante na teoria, criação da moeda comum encontra fortes barreiras na realidade econômica e política da América do Sul

Natan Cauduro
Nov 25 · 8 min read

Em junho de 2019, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o ministro da Economia, Paulo Guedes, marcaram presença nas manchetes de vários jornais brasileiros e estrangeiros com declarações sobre a possibilidade de criação de uma moeda comum com a Argentina. Um ano depois, a  decidiu revisitar o tema e descobrir se, afinal, há chances de uma moeda comum nascer na América do Sul.

Sonho x realidade

Ex-secretário de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior no governo Lula (2007–2011), Welber Barral comenta que, em teoria, a chance de se criar a moeda comum existe, mas a realidade econômica e política do continente inviabiliza a oportunidade. Ele também reforça que, para considerar tal moeda, faz-se necessário compreender sua equivalência na Europa: o euro.

O processo de criação do euro foi longo e apresentou uma série de complicações. Welber pontua algumas ações dos países europeus que foram essenciais para o nascimento da moeda: alinhamento macroeconômico; acordos sobre endividamento; e bases monetárias fortes (era o caso da Alemanha) que atuavam como geradoras de credibilidade para a moeda, tornando-a conversível (que pode ser trocada por outras moedas, como o dólar). “Não há nenhuma dessas coisas na América do Sul”, pontua o ex-secretário.

Em terras sul-americanas, Welber cita as taxas de endividamento altas e distintas de cada país como um dos grandes empecilhos, além de problemas na coordenação de políticas macroeconômicas entre as nações vizinhas. O continente não conta com uma moeda conversível, ao contrário da Alemanha e de sua moeda da época, o marco alemão. Outra dificuldade são as divergências de dados sobre a inflação de cada país. “Como se compara ou equipara o real brasileiro com o peso argentino sendo que eles [argentinos] estão com 50% de inflação?”, comenta.

Diplomata de carreira com atuação nas embaixadas de Paris e Washington, e ex-diretor do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IPRI), Paulo Roberto de Almeida concorda que a América do Sul não está preparada para uma moeda comum. “Poucos países no mundo renunciam a suas moedas nacionais. Eu não conheço nenhum grande país que o tenha feito, a não ser como parte de um projeto mais amplo de mercado comum totalmente unificado, como é o caso da União Europeia”, conta.

“Se você tem um mercado unificado, não faz sentido manter moedas distintas para um mercado totalmente livre”, acrescenta Paulo Roberto.

O diplomata reforça que os países da América do Sul são díspares, divergentes e contraditórios, o que dificulta ainda mais a implementação de uma moeda comum. “Essa é a razão básica pela qual eu não acredito que nossos países estejam preparados para uma moeda comum, não única. Única é uma loucura, nem a Europa tem.”

Welber também destaca a importância dos Bancos Centrais na implementação de uma moeda comum. “Você ter uma moeda conversível não é porque você quer, mas é porque ela é aceita no mercado internacional.” Isso resulta, segundo o ex-secretário, em uma moeda com credibilidade, lastro, usada em operações com terceiros e que tenha fluxo livre aqui e no exterior. “A moeda brasileira não tem isso, então os bancos centrais teriam de regulamentar”, destaca Welber. Outra entidade importante nesse processo é o Conselho Monetário Nacional.

E se…

Num exercício de futurologia, o ex-secretário Welber Barral reflete sobre quais benefícios o Brasil teria caso uma moeda comum fosse implementada. Um deles seria o custo de câmbio, pois o mesmo não seria necessário, uma vez que todos os países utilizariam uma mesma moeda. Outro estaria em evitar a imprevisibilidade das moedas, como dólar e real, pois a variação de inflação é uma só, o que auxilia nas importações e exportações. Welber também pontua a percepção popular como sendo impactada positivamente quando viaja para outro país. “Ele (indivíduo) não quer fazer cálculo para saber quanto custa, se é mais caro ou mais barato. Já existe uma previsibilidade de custo”, comenta.

“É preciso ressaltar que uma moeda comum pode ser uma boa coisa em mercados comuns, o que está longe de ser o caso do Mercosul”, aponta o diplomata Paulo Roberto. “Quando e se o Mercosul chegar nessa fase, talvez seja interessante uma moeda comum”, mas ele ainda se mostra cético, em especial porque numa união entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, o Brasil, sozinho, detém mais de 70% do mercado consumidor, o que inviabiliza a renúncia da soberania nacional sobre a moeda e o próprio mercado. “Você se prender a uma política comum para atender a um mercado secundário não é uma boa coisa”, analisa.

Não é a primeira vez

O governo Bolsonaro não foi o único a cogitar uma moeda comum sul-americana. O governo Lula (PT) também foi manchete por comentar tal possibilidade. O ex-secretário Welber lembra ainda de outras tentativas de unificação monetária. Uma delas foi nos anos 80 com o governo do ex-presidente José Sarney (MDB) com o uso do gaucho, uma moeda escritural entre Brasil e Argentina. Moeda escritural se equivale a depósitos bancários usados como forma de pagamento — cheques e cartões de crédito, por exemplo. De qualquer modo, nenhuma das tentativas foi efetivada.

Estando no governo Lula, Welber lembra que naquele período havia no Ministério alguns estudos e a possibilidade de criação de um Tribunal Arbitral para Investimentos, mas tudo era encabeçado pela União de Nações Sul-americanas (Unasul), não pelo Brasil. Com essa organização perdendo força, as ideias pararam no tempo.

Circula também a ideia de que, sendo o Brasil o maior dos países sul-americanos, é responsabilidade dele dar início a um programa político de criação de moeda única, mas Welber não vê o governo Bolsonaro interessado em tamanha empreitada. “Esse é um governo tipicamente isolacionista, então eu não espero nada positivo em geral, até por conta da pandemia e da crise (econômica). Ele (governo) está focado bastante numa agenda interna”, analisa.

“O Bolsonaro falou sobre criar a moeda do Mercosul ano passado. Eu não sei quem disse isso para ele, mas seguramente ele não tinha a menor ideia do que estava falando”, afirma Welber.

Paulo Roberto de Almeida tem uma opinião parecida sobre as manifestações do presidente e do ministro da Economia. Ele, inclusive, lembra de encontros com Paulo Guedes e, após ouvi-lo reclamar sobre o Mercosul, percebeu que o campo da política e economia internacional não era o forte do ministro. “O Paulo Guedes é um cara de mercado financeiro, de mercado de capitais, mercado de investimentos. Ele não entende de acordos internacionais, de economia política internacional, de tecnocracia, de estadismo, de diplomacia. Então o que o Bolsonaro e o Guedes falaram é uma bobagem monumental”, avalia.

Em junho de 2019, data das manifestações do presidente e do ministro, o chanceler Ernesto Araújo manifestou-se de forma esquiva, afirmando que “o Mercosul requer eficiência no comércio entre os membros, mas também que seja uma plataforma de abertura e de eficiência para o resto do mundo, como se vê em negociações estratégicas que estão perto de concluir, como a com a União Europeia”, segundo matéria da revista Veja.

Para Paulo Roberto de Almeida, um assunto como o de uma moeda comum “não pode ser política de governo, isso é uma política de Estado. Moeda é política de Estado”. Ele também afirma que o Itamaraty tem bons economistas, diplomatas e uma boa base de dados. “(a quantidade e qualidade de informações) do Itamaraty sobre o Mercosul e a União Europeia é perfeita”, destaca. O diplomata afirma que o chanceler Araújo deveria ser capaz de alertar ao presidente e ao ministro Guedes que a ideia de uma moeda comum é inviável. Paulo Roberto também recorda que Ernesto Araújo é um estudioso do Mercosul, inclusive com um livro sobre o tema publicado nos anos 90, e que o diplomata classifica como “muito bom”.

O livro mencionado chama-se Mercosul Hoje, publicado em 1998, pelos autores Sérgio Abreu, Lima Florêncio e Ernesto Henrique Fraga Araújo. O chanceler também possui sua tese, apresentada em 2008 no Instituto Rio Branco, intitulada O Mercosul: Negociações Extra-regionais.

Também em 2019, o Banco Central do Brasil emitiu nota sobre as declarações do presidente e do ministro da Economia. Na nota, é dito que “o Banco Central do Brasil não tem projetos ou estudos em andamento para uma união monetária com a Argentina. Há tão somente, como é natural na relação entre parceiros, diálogos sobre estabilidade macroeconômica, bem como debates acerca de redução de riscos e vulnerabilidades e fortalecimento institucional”.

 entrou em contato com o Banco Central do Brasil em busca de informações. Segundo a assessoria de imprensa do órgão, “o posicionamento do BC continua o mesmo”.

A nota oficial pode soar vaga, mas antigos dirigentes do BC já se manifestaram sobre a ideia de uma moeda única. Foi o caso de Alexandre Schwartsman, que, em entrevista à Folha de S. Paulo, afirmou tratar-se de uma proposta sem sentido. Outra manifestação veio do também ex-dirigente do BC José Júlio Senna, no mesmo jornal. Ele afirma não ser otimista quanto ao resultado final de uma integração de moedas.


Ainda uma mini-reflexão sobre o racismo e o nacionalismo — Paulo Roberto de Almeida

 Ainda uma mini-reflexão sobre o racismo e o nacionalismo 

Paulo Roberto de Almeida


Eu não diria que o racismo representa o que há de pior no ser humano, como acreditam alguns: a sensação de desconforto com a alteridade é praticamente natural na “raça” humana: deve ter existido no Cro-Magnon ao se confrontar com o Neandertal, se por acaso isso ocorreu. O racismo vem daí: é quase incontrolável nos grupos humanos diversificados.

Isto, evidentemente, não é uma justificativa para o racismo; apenas um alerta para se evitar simplificações indevidas com respeito a um dos fenômenos mais “comuns” na história humana.

Progressos civilizatórios podem minimizar os sentimentos racistas de pessoas simples (e até de algumas aparentemente “sofisticadas”), mas eles não evitam que tais sentimentos (até inconscientes) aflorem e floresçam em determinadas circunstâncias. O racismo que coexistiu e acompanhou o inconsciente alemão do romantismo nacionalista do Das Vaterlands, Das Volk, sem falar do Der Führer, é uma prova disso, numa sociedade que supostamente conviveu ou apreciou Kant, Goethe e Beethoven.

A tolerância “budista”, ou cristã, que prega a fraternidade e o amor ao próximo, qualquer que seja ele, aparece depois de alguma reflexão sobre o sentido da vida, e do respeito pela vida, costumes, aparência, linguagem e religião dos outros, diferentes.

O racismo pode vir junto com as formas mais canhestras de nacionalismo exclusivista, como no famoso Deutschland über Alles.

Aliás, se parece muito com Make America Great Again e com o “Brasil acima de tudo”, não é mesmo?

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 26/11/2020


Mini-reflexão sobre as agruras existenciais de acadêmicos sobre as “teorias” do racismo e sua relação com o “capitalismo” - Paulo Roberto de Almeida

 Mini-reflexão sobre as agruras existenciais de acadêmicos sobre as “teorias” do racismo e sua relação com o “capitalismo”

Paulo Roberto de Almeida


Debate mais ou menos inútil para saber se as teorias racistas precedem ou não o “capitalismo”, esse superlativo conceitual que nem era usado por Marx — que preferia falar em modo de produção burguês —, mas que enche a boca de acadêmicos e de jornalistas. 

Sempre existiu racismo, em todos os tempos, latitudes e longitudes; se existiam teorias ou não, isso é coisa de acadêmicos. Fatos reais precedem teorias; se as teorias existem, pré-existem ou subsistem, isso não afeta minimamente a existência do racismo, ou dos fatos em seu redor.

Apenas acadêmicos precisam das muletas mentais das teorias para entenderem a realidade. Os historiadores mais sensatos preferem primeiro investigar os fatos: se o fazem com a ajuda das muletas mentais ou não, isso não afeta os fatos, desde que precisamente e honestamente expostos.

Em tempo: Darwin nunca teve nenhuma teoria racista; ele apenas andava atrás dos fatos, e só se angustiava com o fato desses fatos contradizerem o seu livro sagrado, daí a demora em expor a sua teoria da seleção natural. Só se decidiu pela ameaça de concorrente que chegou às mesmas conclusões por outras vias.

Quem construiu teorias equivocadas na sequência foram Gobineau e Spencer, dois acadêmicos equivocados, mas “convenientes” para os manipuladores que os seguiram, criando teorias estapafúrdias no seu seguimento. Rosenberg e Hitler, por exemplo, exageraram na dose, provocando uma das maiores tragédias, senão a maior, da Humanidade. Não eram teóricos, nem acadêmicos, mas seduziram muitos acadêmicos e jornalistas, assim como o populacho em geral.

Os fatos continuaram existindo, independentemente dos equívocos conceituais e das falcatruas monstruosas criadas em torno deles.

A teoria da seleção natural, aliás, continua subsistindo, a despeito da bestialidade do criacionismo, do desenho inteligente e de outras bobagens inventadas depois, que nem são coisas sustentáveis, de verdadeiros acadêmicos, e sim “produções” mambembes de fundamentalistas religiosos. 

Darwin morreu na sua religião, embora um pouco angustiado com a sua “descoberta” de fatos. Ele não os inventou; apenas expôs, com base na sua atenta observação da realidade.

De vez em quando é preciso colocar ordem na confusão mental.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 26/11/2020

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Mini-reflexão sobre os tempos que correm (ops, que escoam) - Paulo Roberto de Almeida

 Mini-reflexão sobre os tempos que correm (ops, que escoam)

Paulo Roberto de Almeida

No imediato seguimento da Grande Destruição lulopetista da economia, 2015-16 — quando caímos -3,8 e -3,5 no PIB e -10% na renda — eu imaginava que a recuperação se daria entre 7 e 10 anos. Superavit primário consistente, só ali por 2029, com sorte, e se tudo corresse bem no ajuste macroeconômico e nas reformas estruturais.

Agora, com a pandemia e a terra devastada sendo produzida atualmente, eu chuto a recuperação plena aí por 2032-33, com a mesma renda per capita de 2014!

Com a desvalorização voltamos a ficar pobres e, nas “comemorações” (se houver) do bicentenário em 2022, teremos a mesma renda de dez anos antes (ou mais).

Se isso não é retrocesso relativo e absoluto, encontrem-me um outro nome. 

Mais catastrófico, quero dizer. 

Depois da Grande Destruição de Dona Dilma, teremos o Grande Retrocesso do Grande Mentecapto, que vai deixar um rastro de devastação ainda pior do que a recessão lulodilmista: esta atingiu basicamente a economia e os empregos. Agora, estamos sendo invadidos por uma malta de reacionários anacrônicos (sic!; redundância autorizada), que além de destruírem as instituições, a cultura e a nossa autoestima, ainda atuam como “body snatchers”, roubando o cérebro de muita gente (muitos, com só dois neurônios, nem precisa muito esforço).

Meus caros: nem a catástrofe da Revolução Cultural de um Mao já demencial, causou tanto estrago...

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 25/11/2020

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Redes sociais e democracia política - Paulo Roberto de Almeida

 Redes sociais e democracia política  

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[ObjetivoQuestões para debate onlinefinalidadesubsídios a questões relevantes]

  

Entrevista gravada e reproduzida na plataforma Instagram (24/11/2020; link: https://www.instagram.com/p/CH-cuKQh4mg/).


1- Qual tem sido o impacto do uso das redes sociais sobre a política em um sentido amplo?

PRA: Esse impacto é enorme, descomunal mesmo, em relação às formas anteriores de comunicação política, de conquista de votos, de disputas eleitorais.

Podemos caracterizá-las como uma quarta ou quinta revolução social na missão de conquistar adeptos para suas posições e de galgar assim o poder político. Nas sociedades tradicionais, reinos ou impérios da antiguidade, ou nas sociedades feudais e monarquias absolutas, regimes despóticos em geral, a “propaganda política” é mais bem feita pela força das armas. Nos Estados mais ou menos organizados, passam a existir as coalizões de forças sociais ou personalidades individuais que predominam pela força da palavra e do convencimento, com algum apoio ocasional, ou latente, no poder econômico e militar. A política, a propaganda, o aliciamento de apoiadores são feitos na ágora, na praça pública das cidades-estados da Grécia antiga, no Senado romano, na mobilização dos cortesãos e dos mandarins que sempre circulam em torno do poderoso do momento, até que algum outro se imponha, pacificamente ou pela força. Se trata, portanto, do contato direto dos chefes políticos com súditos ou cidadãos de uma sociedade organizada em estamentos ou classes sociais diferenciadas (sendo os proprietários de terra, os comerciantes, os banqueiros os estratos mais importantes dessas sociedades tradicionais). A comunicação é direta, ou pela via de “cabos eleitorais” primitivos, os assessores dos chefes políticos, dos condottieri.

A primeira revolução social na comunicação política é, evidentemente, a invenção da imprensa, o uso de tipos móveis e dos mecanismos de impressão para reproduzir de forma infinita o que antes era objeto de cópias manuais, trabalhosas, restritas, caras. Ela é concomitante com a expansão da alfabetização e da escolarização, sobretudo nas sociedades protestantes da Europa setentrional, uma vez que a China já estava adiantada nas formas de escrita e disseminação de textos literários e oficiais. A imprensa vai fazer explodir os jornais, os pasquins, os panfletos, os livros, e provocar, pela primeira vez, um amplo debate de ideias, nas ruas e praças, nos cafés, nos parlamentos que se vão instalando com a passagem das monarquias absolutas para regimes constitucionais. Guerras civis e revoluções para a conquista do poder são em grande medida o resultado da disseminação da palavra escrita, e da propaganda política que vem junto. 

Mas é partir da segunda revolução industrial, desde meados do século XIX até o início do XX que se desenvolve uma segunda revolução: as máquinas gráficas movidas a diversas formas de energia, o telégrafo elétrico e depois os cabos submarinos e o telégrafo sem fio, que inaugura a era das grandes tendências políticas organizadas em partidos: liberais, socialistas, anarquistas, conservadores, todos os movimentos se organizam em torno de um jornal, de um periódico, da propaganda ocasional nos debates pré-eleitorais e depois nas tribunas dos parlamentos. O interior recebe as notícias das capitais e se insere igualmente na política, as classes subalternas também se organizam em torno de seus panfletos e jornais. Desde a Revolução francesa, atravessando todas as revoluções democráticas do século XIX, a principal forma de conquista de poder passa a ser a conquista de votos não mais unicamente pelo contato direto, pela arenga pública, mas pela comunicação impressa distribuída aos milhares de exemplares. Grandes jornais e revistas já existem há mais de dois séculos, e continuam ainda a desempenhar um papel relevante na propaganda política. 

A terceira revolução social na comunicação política é a que nasce com a segunda revolução industrial e tem a ver com o telefone e o rádio, este o meio principal, ainda, capaz de alcançar praticamente todos em todos os rincões do país. A televisão virá em seguida e completará essa revolução decisiva na formação das democracias contemporâneas, ao lado dos sempre presentes órgãos da imprensa, independentes ou partidários. Ela ainda é a forma principal de propaganda política nas campanhas eleitorais, mas passou a ceder lugar, desde 20 ou 30 anos, à internet, que serve à comunicação direta entre o candidato e seus eleitores. Até o seu surgimento, os candidatos eram obrigados a mandar imprimir milhares ou milhões de “santinhos” ou mensagens políticas, cartas e panfletos, para distribuição direta nas casas dos eleitores ou envio pelos correios e serviços de entrega. Ela não substituía a arenga direta, os comícios, os palanques, as marchas e visitas dos candidatos nas praças, nos estádios, ou nas casas dos eleitores, nos casos de candidaturas locais. Toneladas de papeis impressos, em preto e branco ou coloridos, jorravam das gráficas a cada dois ou quatro anos, enquanto os candidatos se preparavam para mentir o melhor possível nas rádios e nas redes de televisão. Uma má sorte num debate televisivo jogava o candidato lá atrás nos resultados das urnas.

Tudo isso continuou existindo, mas veio a ser complementado e agora suplantado, talvez diminuído, pela irrupção das redes de comunicação social, que podem ser chamadas de quarta ou mesmo quinta revolução social da comunicação política, pois ela também evoluiu terrivelmente ao longo da última década e meia. O presidente Barack Obama talvez tenha sido o primeiro presidente eleito, e financiado, pelas redes de comunicação social, cuja característica básica, em relação à rádio, jornais e televisão, é a de que elas sejam, na sua essência, descentralizadas. Obama recebeu milhares, milhões de pequenas contribuições individuais de eleitores seduzidos pela novidade, do candidato e das suas formas de comunicação e de mobilização de eleitores. Isso permitiu vencer a força dos grandes lobbies, os financiamentos milionários de grupos de interesse, o apoio de grandes carteis e empresas aos “seus” senadores e deputados, o que tem sido crucial para a expansão da participação democrática nas sociedades abertas da contemporaneidade. 

De 2008 para cá, as ferramentas e mecanismos das redes sociais se estabeleceram como a principal forma de propaganda política à disposição de todos, praticamente, ainda que necessitando igualmente a contratação de especialistas nas novas formas de comunicação social, para o bem e para o mal. O presidente Trump foi provavelmente o primeiro a usar essas formas de comunicação deliberadamente com o objetivo de falsificar, de enganar, de desacreditar seus adversários, de manipular eleitores ingênuos com hábil propaganda mentirosa. É o primeiro arquiteto da máquina de FakeNews que ele nunca cessou de denunciar, e da qual abusou tremendamente para vencer sua adversária em 2016, e que ainda continuou usando em 2020, tendo sido vencido, desta vez, pela pandemia e pela exposição de todas as suas más qualidades e preconceitos. 

Para o bem e para o mal, as redes estão estabelecidas em todas as vertentes e dimensões da competição política, e vão marcar as disputas eleitorais no futuro imediato e nas décadas à frente, mas muitas outras inovações vão surgir nesse mesmo universo.

 

2- O uso das redes sociais tem contribuído para a crescente polarização ideológica, própria do debate político nos últimos anos?

PRA: Sim, e não. Polarização ideológica sempre existiu, em todas as épocas, embora desde a Revolução francesa ela tenha adquirido esse formato divisivo que ainda permanece entre nós, a despeito do surgimento de novas correntes políticas (feminismo, ambientalismo, etc.). Os grupos e partidos políticos costumam ocupar o largo espectro que vai da extrema-esquerda à extrema-direita, sendo mais comuns os partidos centristas, para um ou outro lado. O linguajar político e as propostas de políticas públicas não mudaram muito, desde então. A esquerda é normalmente identificada com as causas dos pobres e dos trabalhadores, propondo distributivismo, socialismo, igualdade e intervenção estatal, em oposição aos interesses dos patrões e dos setores conservadores, que defendem a propriedade, os mercados e o patrimônio, insistindo mais na garantia da lei e da ordem, a pretexto de ficar do lado da liberdade. Essa polarização, que se tornou mais explícita com os movimentos socialistas dos séculos XIX e XX, permanece até hoje, e deve marcar o debate político no futuro previsível, uma vez que as sociedades, mesmo as mais avançadas, ainda são marcadas por diferenças de renda e de bem-estar, dimensões bem mais caracterizadas nas sociedades mais pobres e menos capitalistas. 

O que as redes sociais fazem é levar a polarização ao alcance de todos os cidadãos eleitores conectados de alguma forma às informações que circulam livremente por elas. Mas, muito antes das redes, grupos políticos opostos já se combatiam pela imprensa, nas ruas e nos parlamentos. O que elas trazem é uma capacidade de mobilização maior, sobretudo em termos de protestos sociais, como se viu na Primavera Árabe e em outros países, e geralmente em detrimento de ditadores e dirigentes incompetentes. 

 

3- O uso crescente das redes sociais constitui uma ameaça à Democracia?

PRA: Sim e não, novamente. Elas transmitem ideias, boas e más, informações, verdadeiras ou falsas, consignas, unificadoras ou divisivas. Ou seja, elas constituem um aporte extraordinário à participação democrática dos cidadãos, mas também podem servir, como se viu no seu uso maligno pela nova direita americana, e por Trump especialmente, para provocar erosão da fé cidadã na democracia tradicional, em favor do culto a um salvador da pátria. Isso não depende apenas das redes, pois elas não podem criar sozinhas crises econômicas, conflitos políticos, tensões sociais, desemprego, conflitos maiores, nacionais ou extranacionais. 

A terceira onda da globalização, que justamente fez emergir a força das redes sociais, também provocou certo stress social, ao provocar desemprego nos países da segunda revolução industrial em favor das economias emergentes dinâmicas, geralmente da Ásia. O desemprego, acompanhado da imigração de massas de miseráveis, migrantes econômicos ou refugiados de guerra, provocou reações na Europa e nos Estados Unidos, juntamente com a irrupção do terrorismo islâmico, que acentuou um deslocamento do eleitorado para grupos, movimentos e partidos de direita, nacionalistas, xenófobos, racistas. No meio de tudo isso, é fácil encontrar os adeptos de teorias conspiratórias que fazem um uso perverso das redes sociais de uma forma que os antigos serviços de propaganda dos governos, na época da Guerra Fria, não podiam sequer imaginar. 

Populismo econômico, demagogia política, estavam relativamente em recuo, desde as experiências fascistas do entre guerras, com seu uso intensivo das ferramentas de comunicação social – basicamente rádio, imprensa e um pouco de TV, complementado por filmes e documentários de massa – para mistificar as massas. Os demagogos voltaram a incomodar os partidos tradicionais, como também já tinham feito nos anos 1920 e 30 – que eram basicamente os conservadores e os socialdemocratas – e agora passam a dispor de ferramentas poderosas de manipulação das massas, que não hesitam a usar das formas mais viciosas e viciadas possíveis. Nesse sentido, elas constituem, sim, uma ameaça à democracia, daí essas demandas recentes de combate às FakeNews, de controle dos provedores de acesso, de códigos de conduta para as ferramentas mais conhecidas na atualidade. 

Não se trata de missão simples, uma vez que as FakeNews estão no âmago da propaganda política desde séculos, apenas assumindo formas e suportes diversos. Sociedades abertas são evidentemente mais suscetíveis de sentirem o peso da manipulação política, uma vez que nas ditaduras a solução mais simples é a censura da imprensa e o controle arbitrário dos produtores e disseminadores de informação, com a forte mão do Estado atuando sem freios contra quaisquer dissidentes da verdade oficial. 

 

4- De que modo o uso das redes sociais tem influenciado a política internacional?

PRA: Até a Segunda Guerra Mundial as comunicações internacionais eram muito restritas, por serem caras e limitadas. Com a explosão das comunicações por satélite, desde os anos 1960, a comunicação é instantânea e cada vez mais acessível a empresas de mídia e a todo e qualquer cidadão. As redes sociais, desde a inauguração da internet, no final dos anos 1980 e a sua disseminação universal via celular desde então, mobilização cidadãos identificados com as mesmas causas, co-nacionais ou não, em qualquer canto do planeta, o que criou uma opinião pública suscetível de ser mobilizada para pressionar os governos e, portanto, as diplomacias. Os próprios dirigentes, diplomatas e chefes de Estado, passaram a se comunicar mais facilmente, multiplicando-se, antes da pandemia, os encontros presenciais, as grandes conferências, as viagens e todos os tipos de contatos de cooperação internacional. Um desastre natural, uma guerra, uma carência de abastecimento em qualquer canto da terra podem ser comunicados e serem objeto de administração multilateral em tempos recordes. 

As redes sociais conectam cientistas, pesquisadores, dirigentes políticos e ativistas sociais de modo instantâneo, o que significa que os governos podem ser pressionados a adotar esta ou aquela política em função das novas pressões políticas e sociais que emergem a partir das redes. O presidente Trump, novamente, foi o dirigente que inaugurou a direção do país por essa via, tuitando furiosamente desde a manhã até a noite. É possível que o grande fator de vitória do seu seguidor e admirador no Brasil tenha sido o uso intenso – inclusive de forma desonesta – dessas redes, para construir o mito do homem salvador (no caso, contra a volta da esquerda). Funciona no âmbito doméstico e no ambiente externo igualmente, pois não existem mais diferenças entre as clientelas que é possível atingir por meio das redes: todos estão no mesmo universo, instantaneamente. Mas, assim como esses líderes podem usá-las para disseminar falsas notícias, eles também podem ser desmentidos no mesmo momento, e até fazer parte de campanhas de boicote, como tem ocorrido com Bolsonaro a propósito das queimadas e devastações na Amazônia: ele não mais conseguirá se desvencilhar dessa imagem de destruidor que já adquiriu justamente pelo uso das redes de comunicação social. 

 

5- O uso das redes sociais afetará futuramente as noções tradicionais de esquerda e de direita?

PRA: Não creio, pois as redes são apolíticas e amorais: elas servem a todos os propósitos, intenções e orientações políticas, das mais sensatas às mais hediondas e perversas. Mas, ao trazer novas dimensões sociais, filosóficas, espirituais, ao jogo político tradicional, que era, sim, muito marcado à direita e à esquerda, as redes vão diversificar o mercado de mensagens políticas e de clientelas. Feminismo, ambientalismo, defesa dos direitos dos animais, dos direitos das minorias sexuais e correntes religiosas as mais diversas encontram canais de comunicação que elas talvez não tivessem nas mídias tradicionais (jornais, rádios e redes de TV). A quantidade de ONGs já é incalculável, e seu trabalho é tremendamente facilitado pelas redes, uma vez que elas não possuem os recursos disponíveis nos meios tradicionais pela propaganda comercial paga. 

O impacto na educação também é significativo, o que talvez mude um pouco o universo no qual as políticas nacionais têm se movimentado nos últimos dois séculos e meio, que é ainda, um pouco ou bastante, o da Revolução francesa e suas grandes causas, que eram ainda a da emergência da sociedade industrial. Na economia do conhecimento, dos serviços, da inteligência artificial, talvez essas noções tradicionais de esquerda e direita percam um pouco de sua preeminência nos debates políticos junto ao grande público do futuro. As novas causas são menos de direita e esquerda e mais da saúde do planeta, dos direitos humanos e da democracia, no sentido mais amplo do termo. 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3799, 23 de novembro de 2020

 


domingo, 22 de novembro de 2020

O papel do euro no sistema monetário internacional (1999) - Paulo Roberto de Almeida

Um desses casos incríveis de um texto que foi, aparentemente, escrito DEPOIS (1999) que foi publicado (1998). A razão é conhecida por vários editores de periódicos: atraso na publicação dos periódicos, e busca de material para preencher as lacunas. O texto repete várias passagens que eu já havia exposta neste artigo: 606. “O futuro euro e o Brasil: efeitos esperados”, Brasília, 5 março 1998, já divulgado neste espaço: Diplomatizzando (22/11/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/11/o-futuro-euro-e-o-brasil-efeitos.html).


 O papel do euro no sistema monetário internacional

 

Paulo Roberto de Almeida 

Conselheiro. Chefe da Divisão de Política Financeira do

Ministério das Relações Exteriores. Doutor em Ciências Sociais.

Brasília, 22 janeiro 1999, 5 p.

Publicado em Carta Internacional

(São Paulo: NUPRI-USP, ano VI, nº 69, novembro 1998, p. 4-5). 

Relação de Publicados nº 231.

 

 

A inauguração do euro, em janeiro de 1999, como moeda oficial — embora ainda escritural — de onze dos quinze países-membros da União Europeia e sua introdução efetiva, a partir de 2002, como meio circulante único dos integrantes da “Euroland” representarão, para a Europa e para o mundo, o início de uma fase de grandes transformações no atual sistema monetário internacional, até agora marcado pela presença quase dominante do dólar enquanto instrumento de intercâmbio, reserva de valor e mesmo unidade de referência para dezenas de países integrando o sistema financeiro mundial. 

Caberia, contudo, advertir, antes de mais nada, que a criação do euro, em si, tem pouco a ver com seu papel futuro de desafio à hegemonia internacional do dólar, derivando essencialmente, não de um suposto projeto de “poder monetário”, mas, de um longo processo que pode ser remontado à visão integracionista de Jean Monnet e à concepção política que presidiu até agora à integração europeia. Não obstante tal fato, e a despeito da (até agora) oposição de princípio do Reino Unido e da Dinamarca, a opção dos Estados-membros pela renúncia à soberania monetária e em favor da administração coletiva da coordenação macroeconômica carrega também forte conteúdo emblemático sobre a Europa unida do século XXI e seu papel internacional. O elemento fundamental desse avanço na “união cada vez mais estreita dos povos europeus” no plano monetário é de natureza interna e tem a ver, em termos kantianos, com o compromisso irrevocável dos países membros com uma ordem comunitária como garantia de “paz perpétua” no continente. Adicionalmente, as funções que o euro possa assumir futuramente enquanto “moeda mundial” representarão a consequência eventual da afirmação ulterior do poder econômico da União Europeia no plano internacional.

O euro representa, portanto (e em primeiro lugar), a conformação definitiva do mercado unificado prometido pelo Ato Único de 1986 (conformado em 1993) e do projeto de união monetária estabelecido pelo Tratado de Maastricht de 1992 (em vigor desde novembro de 1993). Numa visão mais sequencial, o euro pode ser visto como o resultado dos primeiros esforços de coordenação de políticas e de unificação monetária, tal como estabelecidos nos planos Barre (1967-69) e Werner de união monetária (aprovado em 1970 e prevendo sua realização num espaço de dez anos), ambos tornados inexequíveis pelo desmantelamento do sistema de Bretton Woods em 1971-73. No regime de flutuação de moedas que se seguiu, a então Comunidade Europeia avançou nos esforços de coordenação, estabelecendo primeiro a “serpente dentro do túnel”, depois o Sistema Monetário Europeu (1979), funcionando segundo um mecanismo de banda cambial ajustável entre as moedas participantes (tendo o deutsche mark como âncora), mas com paridades estreitamente correlacionadas entre si.

O euro confirma, em segundo lugar, uma das tendências mais evidentes do processo de globalização, em curso acelerado desde a derrocada final do socialismo no começo dos anos 90, movimento tendente a unificar mercados, concentrar força e poder nas mãos de alguns global players e vincular estreitamente circuitos produtivos e financeiros. Ele também reforça as tendências à estabilidade do processo de integração europeia no que se refere aos mecanismos de coordenação intergovernamental de políticas macroeconômicas – o que parece ser válido para experiências similares de integração, como seria supostamente o caso do Mercosul ‑, ainda que a adesão permanente das autoridades financeiras nacionais, em relação a eventuais “desvios” orçamentários, por exemplo, tenha tido de ser reforçada por um “Pacto de Estabilidade e Crescimento”, concluído em meados de 1997. Esse acordo representou, como se sabe, um difícil compromisso entre aqueles que defendem, antes de mais nada, a manutenção do poder de compra da nova moeda – como é o caso do Bundesbank e outros aderentes da ortodoxia monetária – e os que privilegiam seu papel “social” e que gostariam de ver o Banco Central Europeu promover políticas de estímulo à criação de empregos. Cabe recordar a esse propósito que, de acordo com disposições do próprio Tratado de Maastricht, as autoridades monetárias nacionais são proibidas de financiar déficits orçamentários, prevendo ainda o Pacto penalidades pecuniárias para aqueles Estados que incorrerem em desvios significativos em relação aos critérios de Maastricht nesse particular (máximo de 3% do PIB de déficit orçamentário e compromisso político de manutenção do equilíbrio fiscal).

Do ponto de vista da atual “geopolítica” do sistema financeiro internacional, o euro será, inevitavelmente, um formidável concorrente em face do dólar, este até agora marginalmente complementado pelo deutsche mark e pelo iene japonês enquanto moedas de intercâmbio e expressão de ativos econômicos. A nova moeda terá efeitos diversos, de grande amplitude, nas áreas do comércio de bens e serviços, de fluxos de investimentos (de risco e de portfólio), dos mercados financeiros (isto é, empréstimos e créditos), das reservas em divisas dos países extra-europeus e, também, no âmbito do sistema monetário internacional, o que está evidentemente vinculado ao poder econômico da União Europeia.

A importância da União Europeia na economia mundial pode ser comparada à dos Estados Unidos: com uma população de 300 milhões de pessoas, o PIB de 8 trilhões de dólares — similar ao do gigante norte-americano — cai ligeiramente quando computado apenas o peso da “Euroland”, mas deve aumentar para volumes equivalentes quando os países hoje ausentes da união monetária (Reino Unido, Suécia e Dinamarca, que optaram por ficar fora por enquanto, e a Grécia, que não se qualificou segundo os critérios de Maastricht) a ela aderirem numa fase seguinte. A Europa mobiliza parte significativa do comércio mundial, assim como ela constitui, igualmente, fonte importante de capitais internacionais de empréstimo e de investimento direto nos mercados emergentes. É previsível, por exemplo, que com base na política conservadora que deverá ser praticada pelo Banco Central Europeu, o euro constitua fonte de estabilização nos mercados financeiros globais, ao lado do comportamento algo mais errático do dólar e da importância ainda reduzida do iene nas transações comerciais e financeiras internacionais.

Do ponto de vista do intercâmbio comercial, o euro vai significar uma redução substancial dos custos em transações correntes realizadas no continente europeu, uma vez que a unificação efetiva do mercado representará maior fluidez das correntes existentes e potenciais de comércio, facilitando o rápido transbordo de mercadorias em todos os países aderentes ao euro e nos que o utilizarem como moeda de referência (toda a mittelEuropa, as zonas bálticas e mediterrâneas e mesmo escandinavas e britânicas). O comércio será apenas e simplesmente comércio, e não mais custosas operações de câmbio e perdas significativas em comissões para exchange-dealers.

No que se refere aos fluxos de investimento direto, os efeitos serão ainda mais impressionantes, pois que não apenas as empresas e os bancos europeus se fortalecerão nos mercados globais, como disporão de maior volume de recursos — considere-se, por exemplo, a aritmética da soma das poupanças nacionais e das pequenas sobras marginais, antes atomizadas em mercados segmentados — para aplicações de risco nas economias da própria região e nas extra-europeias. A Europa liberará enormes somas de dinheiro, numa única denominação, retomando a posição privilegiada que ela tinha no século XIX como principal exportador líquido de capitais para os países emergentes. 

Do ponto de vista dos mercados financeiros, os mesmos efeitos acima descritos potencializarão o papel histórico que ela tinha no século XIX como world’s banker, pois que uma fonte uniforme de créditos produzirá muito maior volume de recursos do que a soma dos mercados financeiros nacionais. Os custos de captação serão sensivelmente reduzidos, bem como, no caso dos empréstimos syndicated, os encargos adicionais derivados da mobilização de diferentes denominações, que simplesmente desaparecerão. Para os tomadores, será como se abastecer num grande shopping center, em lugar de percorrer sucessivas quitandas ou empórios “financeiros” nacionais. A concorrência da oferta atuará também para reduzir taxas de juros e eventualmente até os prêmios de risco. 

Os países de fora da zona também encontrarão algumas vantagens financeiras ou de simples contabilidade em converter, desde o início, uma parte de suas reservas em euro, uma moeda mais estável que o dólar e supostamente menos suscetível de sofrer ataques especulativos, pois que sustentada por um banco central autônomo, comprometido unicamente com sua estabilidade e seu poder de compra, independente das autoridades monetárias nacionais, mais sensíveis às questões sociais ou dotadas de maior permissividade orçamentária. Essa estabilidade — interna e externa — do poder de compra do euro será presumivelmente preservada, mesmo ao custo da manutenção de uma maior taxa de desemprego na Europa, cujos índices já são, aliás, anormalmente altos em relação ao padrão observado durante o regime de paridades fixas de Bretton Woods, mas isso tem mais a ver com a rigidez dos mercados laborais e com a relativa imobilidade de fatores do que com a orientação da política monetária em si.

A substituição de parte das reservas nacionais de países extra-europeus em euro não será exatamente representativa, no começo, do volume de intercâmbio realizado com a Europa — no caso do Brasil algo como 30% do total —, uma vez que a maior parte das commodities e as próprias empresas exportadoras continuarão a ter suas operações faturadas em dólar (hoje dominando 50% do comércio internacional). O peso do euro nas reservas nacionais também deverá levar em conta, pelo menos no início, sua menor liquidez internacional, comparativamente ao dólar, este mais bem aceito em mercados afastados como os da Ásia e da América Latina. Mas, essa fração tenderá a crescer progressivamente, em função do peso da Europa e do próprio euro nos diferentes tipos de transações econômicas internacionais.

Do ponto de vista dos mercados financeiros, por outro lado, deve-se reconhecer que os portfólios dos investidores privados e oficiais, mesmo na Europa, são altamente dolarizados, tendência que será revertida apenas gradualmente, em função, entre outros fatores, da rentabilidade relativa das moedas, de seu grau de estabilidade e de sua liquidez (elementos geralmente contraditórios entre si, como ensinam os manuais de economia). Não há, por exemplo, nenhum acordo entre as autoridades monetárias dos Estados Unidos, da “Euroland” e do Japão para a manutenção de paridades correlacionadas entre suas respectivas moedas, o que indica obviamente que o sistema monetário e financeiro internacional continuará a ser tão turbulento e instável como ele tem sido desde a derrocada do padrão-ouro ao final da belle époque.

O fato inédito é que assistimos ao começo do final — um cenário ainda longínquo, reconheça-se — da hegemonia absoluta do dólar no sistema financeiro conhecido no último meio século. Esse declínio da predominância do dólar será tanto mais lento quanto forem incertos os elementos propriamente econômicos e tecnológicos que poderão sustentar uma ascensão da Europa a sua antiga posição de world’s banker. Em favor do dólar deve-se lembrar que os padrões dominantes tendem a ganhar por inércia, fenômeno já conhecido nos mercados de software e de videocassetes, por exemplo. Em favor do euro pode-se adiantar sua menor volatilidade intrínseca e seu papel político positivo em outras experiências de integração regional, a começar pelo Mercosul. De fato, um mercado comum pleno requer, quase que naturalmente, uma moeda comum e o fato da existência do euro deverá atuar como catalisador político e econômico no processo de ampliação ulterior da União Europeia.

Finalmente, persistem ainda dúvidas sobre a importância financeira do euro nas operações das instituições monetárias internacionais e regionais, o que tem a ver, também, com a redefinição política do poder intrínseco associado aos Estados Unidos e aos países da “Euroland” no diretório das mais importantes dentre elas, a começar pelas “sisters in the woods”, em especial no FMI. A assunção, pelo Banco Central Europeu, de um mandato amplo de representação europeia nessas instituições pode suscitar um movimento de reforma do sistema financeiro internacional — que se requer desde o desmantelamento dos esquemas de Bretton Woods em 1971-73 —, o que não deixa de ser positivo para países como o Brasil, cujo poder econômico intrínseco vem crescendo na economia internacional. O euro dá início, com toda certeza, a um admirável mundo novo no sistema financeiro e monetário internacional.

Que ensinamentos ou que consequências poderiam ser extraídos a partir da experiência europeia para um esquema de integração conduzindo tendencialmente a um mercado comum como o Mercosul? Se é verdade que este não pretende permanecer indefinidamente como uma simples zona de livre comércio ou uma união aduaneira imperfeita, como hoje, a questão da moeda única deve ser desde já colocada como objetivo final, ainda que longínquo, do processo de integração. Um mercado comum pleno, repita-se, pede naturalmente uma moeda única. Atualmente, contudo, parece evidente que o problema não se coloca ainda em termos de moeda, mas simplesmente como uma obrigação de coordenação de políticas econômicas. Este é um requisito essencial para que choques assimétricos (sempre à espreita) não introduzam dificuldades adicionais e uma séria distorção nos efeitos potencialmente benéficos do processo integrativo. As autoridades financeiras dos países-membros devem reconhecer, antes de mais nada, que as políticas cambiais são uma matéria de interesse comum e que a interação constante entre formuladores de políticas e o permanente intercâmbio de informações entre seus operadores constituem passos indispensáveis para a coordenação de políticas nas áreas monetária e cambial. Essa coordenação deve ser institucionalizada progressivamente, até atingir-se o “ponto de não-retorno”, quando a própria renúncia de soberania monetária passa a ser considerada como uma garantia adicional de boa gestão macroeconômica e um passaporte para a estabilidade.

 

 [Brasília, 655: 27.01.99] 


Mercosul: da união alfandegária à união monetária (1998) - Paulo Roberto de Almeida

Mais um texto da fase otimista quanto ao avanço do Mercosul para etapas mais avançadas da integração econômica e comercial. Só me pronunciei sobre integração monetária porque estava na pauta dos organizadores, mas mesmo nessa época, ainda de expansão do Mercosul, eu não acreditava que fosse possível essa evolução.

Paulo Roberto de Almeida 

 

V Fórum Brasil - Europa

“Novos desafios para a União Européia e o Mercosul no marco das privatizações e da união monetária”

26 e 27 de novembro de 1998, BNDES, Rio de Janeiro

Realização: Fundação Konrad Adenauer, São Paulo

Instituto de Relações Europeu-Latinoamericanas, Madrid

Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, Rio de Janeiro

Instituto Brasil-Europa, Rio de Janeiro

Apoio: Comissão Européia, Bruxelas

Centro de Estudos Estratégicos / Secretaria de Assuntos Estratégicos- PR, Brasília

Fundação Alexandre de Gusmão, Brasília

 

Mercosul: da união alfandegária à união monetária

Moderador: Wolf Grabendorff - IRELA, Madrid

 

 

Preparando a união monetária: as agendas política e econômica

 

Paulo Roberto de Almeida 

Diplomata. Chefe da Divisão de Política Financeira

e de Desenvolvimento Ministério das Relações Exteriores.

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas. Editor Adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional. Autor de Mercosul: fundamentos e perspectivas (São Paulo: LTr, 1998). E-mail: pralmeida@mre.gov.br. As opiniões e argumentos aqui desenvolvidos em caráter pessoal não expressam posições ou políticas do Ministério das Relações Exteriores ou do Governo brasileiro. 

 

Sumário:

Introdução: Idealpolitik e Realpolitk no processo de integração

O Mercosul virtual e o Mercosul real: copo meio cheio ou meio vazio?

O Manifesto de Maastricht: gostosuras e travessuras do modelo europeu

A agenda do Mercosul: back to the future ou a Europa dos “golden sixties”

Um Mercosul minimalista ou maximalista? O papel da moeda e do câmbio

Uma agenda de Realpolitik para objetivos de Idealpolitik: o Mercosul em ação

O futuro do Mercosul. A work in progress

 

Preparando a união monetária: as agendas política e econômica

 

Paulo Roberto de Almeida

 

Introdução: Idealpolitik e Realpolitk no processo de integração

Abordar a questão de uma agenda política e econômica para preparar uma união monetária no Mercosul implica a suposição de que o processo de integração sub-regional se encontraria na iminência (ou pelo menos no caminho) da adoção de uma moeda comum aos quatro países-membros. Ora, tal parece não ser o caso, nem agora nem num futuro imediato, por razões que a muitos pareceriam óbvias.

Deve-se, portanto, indagar antes se uma tal questão sobre a agenda política e econômica da união monetária no Mercosul — e mais concretamente se a própria preparação de que se cogita — é legítima e pertinente do ponto de vista do estado atual e próximo futuro dessa união aduaneira ainda incipiente. A questão poderia merecer dois tipos de resposta, dependendo do ponto de vista do “espectador engajado”: de um lado, uma resposta positiva, confirmando que, sim, deve-se iniciar, hic et nunc, a preparação da agenda da futura unificação financeira; de outro, uma reação inquestionavelmente negativa, recusando uma tal agenda por seu caráter prematuro, inadequado ou até impertinente, uma vez que não estariam dadas, ainda, as condições para sequer se iniciar um debate sobre a unificação monetária.

Para comodidade desta discussão, chamemos a cada uma das duas posições, respectivamente, de idealista e de realista. A suposição, aqui, é a de que os idealistas seriam os que propugnam a preparação, desde já, da futura agenda da unificação monetária, e os realistas aqueles que recusam essa iniciativa como déplacée ou mesmo sua possibilidade como simplesmente inconsequente. Em outros termos, propor a agenda da moeda única seria praticar uma espécie de Idealpolitk, ao passo que ater-se à singela realidade das assimetrias estruturais do Mercosul atual significaria seguir o itinerário concreto da Realpolitik.

Mas, poder-se-ia, também, adotar a suposição inversa, com base no seguinte argumento: se a consequência natural de um mercado comum é a unificação de todo o espaço econômico correspondente ao território dos países-membros, se isso implica, por sua vez, a liberdade de circulação de todos os fatores produtivos e de todos os meios de sustentação da atividade econômica respectiva, inclusive e principalmente a do meio circulante próprio a cada uma das economias nacionais e se, finalmente, o Mercosul pretende, de verdade, converter-se num mercado comum pleno, então, nesse caso, a moeda única nada mais é do que a consequência natural e necessária desse mercado comum. Preparar-se para essa fase futura, ainda que mais ou menos distante no tempo, nada mais representa do que um simples ato de realismo, ao passo que recusar in limine esse tipo de discussão, com base em seu suposto caráter prematuro, aí sim, seria uma decepcionante demonstração de idealismo.

Não obstante, por facilidade de identificação ou por excesso de tradicionalismo em relação às rupturas de paradigma — a decisão de se caminhar para uma moeda única representa, certamente, uma espécie de salto paradigmático — adotaremos a classificação inicialmente proposta e chamaremos aos partidários de uma moeda única no Mercosul de idealistas e, por raciocínio inverso, seus opositores de realistas. Não há aqui um julgamento de valor apriorístico, mas uma espécie de convenção dicotômica quanto aos termos do problema, cuja discussão parece requerer uma certa dose de maniqueísmo, como ocorre em quase todas as tipologias formais da teoria social.

Os idealistas são, portanto, aqueles que pretenderiam o avanço do Mercosul com base em decisões de natureza política, cujo significado representaria nada menos do que o equivalente monetário de “queimar os navios”, ao passo que os realistas recomendam que se deixe uma tal discussão para um futuro indeterminado, sob escusa de prosaicos critérios de ordem econômica. Vejamos agora o diagnóstico do terreno, antes de discutir a agenda Idealpolitik da unificação monetária no Mercosul, pois é disso finalmente que se trata numa discussão deste tipo. 

 

O Mercosul virtual e o Mercosul real: copo meio cheio ou meio vazio? 

A despeito das atuais escaramuças “verbais” e de várias disputas comerciais, o Mercosul não parece estar ameaçado por alguma catástrofe política irreversível, nem por algum conflito econômico de grandes proporções. No que se refere às primeiras, elas parecem derivar do confronto entre uma retórica ideologicamente livre-cambista para consumo externo e algumas práticas internas, abertas ou veladas, de protecionismo explícito ou implícito, exercitado episodicamente para contentar ou apaziguar setores específicos da economia “doméstica” ameaçados de deslocamento pelo ritmo da integração. A necessidade de proteção dos empregos nacionais nos setores sob risco é, evidentemente, uma mola propulsora dessas contradições entre o programa doutrinário da integração — ao qual todos aderem sem restrições — e o pragmatismo mais discreto da proteção (justificada a título de “exceções”).

Quanto às disputas comerciais por acesso recíproco aos mercados dos países membros e as acusações mútuas de “comércio desleal” entre parceiros — a começar pela própria magnitude da TEC ou pela “legitimidade” de algumas barreiras não-tarifárias, remanescentes ou “construídas” durante ou após o período de transição —, elas são inevitáveis, na medida em que correspondem a uma situação de abertura progressiva num contexto de indefinição de normas estritas de competição e de ausência parcial ou total da “harmonização das políticas macroeconômicas”, objeto, como se sabe, do Artigo 1º do Tratado de Assunção. Ao não ter sido realizada essa harmonização, torna-se evidente o potencial de desentendimentos entre os membros nos mais diversos campos: níveis da TEC, exceções aceitáveis, ritmo da convergência, barreiras ao intercâmbio, normas industriais e fitossanitárias, regulamentos técnicos, padrões e formas de proteção à propriedade intelectual, medidas de defesa comercial, regras aplicadas aos setores ditos “sensíveis”, créditos e financiamentos ao intercâmbio, enfim, questões próprias a toda e qualquer união aduaneira em formação. O contexto fin-de-siècle de crise financeira internacional ou as preocupações no Brasil e na Argentina com o desequilíbrio das transações correntes não ajudam, por certo, no desmantelamento de alguns dos obstáculos nacionais erigidos no caminho da consolidação dessa união aduaneira.

Ainda adotando-se uma visão maniqueísta sobre o desenvolvimento futuro do processo de integração regional, quais seriam, hipoteticamente, as perspectivas extremas e as alternativas dicotômicas colocadas como promessa ou como ameaça no futuro do Mercosul? Eles parecem conformar duas perspectivas bem definidas, ainda que aparentemente pouco factíveis, de desenvolvimento político-institucional. Por um lado, na vertente “otimista”, a realização plena do projeto integracionista original, ou seja, um mercado comum caracterizado pela “livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos”, consoante os objetivos do Artigo 1° do Tratado de Assunção, ainda não realizados, diga-se de passagem. Por outro lado, no extremo “pessimista”, a diluição do Mercosul numa vasta zona de livre-comércio hemisférica, do tipo da ALCA, de conformidade com o programa traçado em Miami em dezembro de 1994 e confirmado em Santiago em abril de 1998. Por uma questão de timing político, o horizonte inicial de uma suposta realização prática dessas hipóteses de desenvolvimento seria o mesmo, ou seja, em torno de 2005-2006.

O bom senso econômico nos recomendaria considerar como pouco factível o acabamento prático do mercado comum em 2005, assim como uma boa dose de realismo político também nos levaria a afastar a hipótese de uma “autoimolação” do Mercosul no altar do projeto livre-cambista hemisférico, tal como proposto pelos Estados Unidos. No primeiro caso, isto é, o da conformação efetiva do mercado comum, estariam dadas as condições para a consideração séria da agenda da unificação monetária, segundo a visão dos idealistas. No segundo, ou seja, o do começo da implantação de uma zona de livre-comércio hemisférica, seriam confirmados os piores prognósticos dos pessimistas quanto à incapacidade do Mercosul de avançar segundo o menu básico do Tratado de Assunção, como poderiam alertar os realistas.

Nossa própria hipótese de trabalho considera que o Mercosul nem pode estimar-se confortado pela ideia de que o projeto de um mercado comum estará efetivamente ao alcance da mão no horizonte 2005, nem se ver “condenado” ao purgatório livre-cambista como resultado de sua incapacidade em avançar o suficiente para escapar da ação dissolvente de uma ALCA em construção a partir dessa data. Ele estará possivelmente a meio caminho de ambas as situações, confirmando a tradicional dificuldade em se conseguir distinguir um copo meio cheio de outro meio vazio. Em outros termos, o Mercosul virtual de 2006 será o resultado de um necessário compromisso entre o Mercosul ideal do projeto original de 1991 e o Mercosul possível da agenda concreta de trabalho dos “mercocratas” atualmente engajados no cumprimento das promessas do Artigo 1º do Tratado de Assunção.

Dito isto, permito-me tocar agora num dos principais perigos que rondam o Mercosul, além e ao lado dos supostos conflitos comerciais internos e da ameaça sempre presente de uma ALCA dissolvente: o perigo de se estabelecer uma agenda “monetária” para o Mercosul com base num mimetismo de intenções e de modalidade de ações calcado na experiência europeia de unificação econômica e monetária.

 

O Manifesto de Maastricht: gostosuras e travessuras do modelo europeu

Um espectro ronda o Mercosul: o espectro da Europa de Maastricht e seus miríficos critérios de unificação monetária. Todos os poderes do mundo acadêmico e os do universo sindical que se batem pelo avanço concreto do Mercosul segundo as linhas integracionistas do modelo europeu parecem ter se lançado numa santa aliança para impulsionar o cenário idealista implícito a esse modelo. O que pedem essas forças do progresso e da democracia? Mais instituições, se possível supranacionais, consagradoras de um regime comum verdadeiramente engajado na realização dos princípios de coesão econômica e social tal como afirmados no Ato Único Europeu; mais direitos sociais ao estilo da Carta Social Europeia, supostamente capazes de introduzir o quantum de bem-estar e de justiça social, hoje inviabilizado pelos “capitalistas selvagens” do Cone Sul latino-americano. 

Qual mercocrata de plantão não foi descrito como “insensível” por esses idealistas do projeto integracionista? Onde os economistas responsáveis não deixaram de alertar para essa simplificação da realidade da integração no Mercosul em face da complexidade das tarefas ainda remanescentes para cumprir o simples enunciado do Artigo 1º do Tratado de Assunção? Duas consequências derivam desse fato:

1) As questões da supranacionalidade e da unificação monetária já fazem parte, por bem ou por mal, da agenda implícita ou explícita do Mercosul;

2) Já é tempo que os responsáveis políticos e econômicos do Mercosul eliminem algumas das confusões mentais remanescentes nas cabeças dos partidários de um “Mercosul europeu” e expliquem em face de todo o mundo que o cenário realista traçado pelos “mercocratas” permitiria exorcizar de maneira mais eficaz os perigos que rondam a aplicação de um critério uniformemente integrador a uma realidade pré-união aduaneira que é, de fato, a situação atual do Mercosul.

 

De fato, o processo de integração no Mercosul tem sido habitualmente avaliado ¾ e julgado, o que me parece ainda pior ¾ à luz do precedente histórico europeu e segundo critérios analíticos derivados da experiência institucional europeia. Sem pretender refazer a história ou reinventar a roda ¾ como se diz em relação a progressos tecnológicos dirigidos a resolver problemas práticos ¾, quer-me parecer que as possibilidades organizacionais de se instituir um mercado comum com forte embasamento nas realidades econômicas locais dos países do Mercosul não se esgotam no modelo europeu consagrado a partir de 1951 (CECA) e de 1957 (MCE). Uma tal atitude de adesismo institucional pode na verdade demonstrar uma certa preguiça conceitual dos analistas acadêmicos ou ainda uma derivação da velha constatação keynesiana de que somos, de uma forma ou de outra, prisioneiros de algum economista morto, neste caso, condenados a repetir a genial arquitetura concebida e implementada pelos founding fathers da integração europeia.

Nunca é demais insistir sobre as particularidades desse processo de integração, seu alto sentido geopolítico ¾ no contexto dos terríveis conflitos que ensanguentaram a Europa durante a segunda “guerra de trinta anos” entre 1914 e 1945 ¾, seu aspecto funcional no quadro da Guerra Fria e da sustentação americana à união e integração europeia, assim como as especificidades econômicas e políticas que presidiram à construção progressiva do belo edifício “gótico” ¾ pela sua complexidade, mais do que pela sua arquitetura ¾ que hoje constitui a União Europeia. Em alguns momentos desse processo, pode-se até dizer que os meios passaram a justificar os fins, tal o crescimento da “razão burocrática” no âmbito da Comissão e órgãos associados e as aventuras e tribulações da “loucura agrícola comum”, para ficar apenas nos dois exemplos mais conhecidos do gigantismo europeu.

Frente a esse quadro de “overload” institucional deveria o Mercosul tomar a atual EU como modelo e pretender que, segundo a frase latina bem conhecida, de te fabula narratur? Pessoalmente acredito que assim como, no passado, os juristas e estadistas latino-americanos já deram mais de uma prova de sua inventividade conceitual e institucional ¾ como evidenciado, entre outros exemplos, pelas doutrinas Calvo e Drago, pelos diversos instrumentos e instituições políticas pan-americanas ¾, poder-se-ía igualmente conceber alguma construção relativamente inédita nos anais das experiências integracionistas conhecidas.

Aliás, o Mercosul é certamente híbrido do ponto de vista institucional e não há por que pensar que o modelo comunitário europeu constitui o nec plus ultra dos padrões aceitáveis de construção de um mercado comum. A lógica do Mercosul, à diferença provavelmente da experiência europeia, é a do menor custo possível, político ou social, para não dizer econômico, daí a própria economia feita pelos países membros em número de “mercocratas” e outros gêneros de tecnocratas. A própria rationale para a existência de uma entidade integracionista no Cone Sul latino-americano é, deve-se reconhecer, de menor apelo político e de menor justificativa econômica, comparativamente, por exemplo, à justificativa de segurança nacional e de détente militar embutida no Memorandum Monet sobre a integração ¾ de fato fusão ¾ dos complexos carvão e aço de França e Alemanha.

No que se refere à possibilidade de formação de uma ordem jurídica comunitária no Mercosul, não se deve tomar como óbvio o conceito oriundo do direito comunitário europeu, isto é, de uma ordem autônoma e hierarquizada, implicando uma cessão de soberania por parte dos Estados-Membros. Visto de uma perspectiva propriamente latino-americana, o edifício europeu comporta virtudes e deformações, não porque seu modelo institucional seja politicamente inexequível, de maneira absoluta, ao sul do Equador, mas porque ele pode ser, tão simplesmente, na atual conjuntura econômica e geopolítica do cenário mercosuliano, historicamente desnecessário. Assim como não se pode exportar democracias ¾ pois elas dependem mais de uma cultura política e de um ethos social e mesmo “societal, do que de simples instituições políticas ¾, tampouco se poderia conceber uma exportação de modelos integracionistas. Os juristas podem até recusar esse tipo de argumento, passando a responder que uma ordem legal garantidora de normas e de procedimentos ritualizados é absolutamente indispensável ao bom funcionamento de todo e qualquer empreendimento integracionista. Talvez eles até tenham razão, mas então o Mercosul se faz pelo método do ensaio e erro, da empiria consagrada em norma, o que pode não ser uma má ideia em vista de sua ainda baixa densidade intrínseca em termos de conteúdo econômico integracionista.

 

A agenda do Mercosul: back to the future ou a Europa dos “golden sixties”

Qual seria, portanto, uma agenda realista para o Mercosul na presente fase do processo de integração? Comecemos agora por examinar a “hipótese” em função da qual foi elaborado o próprio projeto do Mercosul, ou seja, a realização do mercado comum sub-regional. A terem sido cumpridos os objetivos fixados no Artigo 1º do Tratado de Assunção, o mercado comum previsto deveria ter entrado em funcionamento no dia 1º de janeiro de 1995, o que obviamente não foi o caso. Segundo uma leitura otimista desse instrumento diplomático e do próprio processo de integração, esses objetivos serão cumpridos nesta etapa complementar, que poderíamos denominar de “segunda transição”, observados os prazos fixados no regime de convergência estabelecido para os diferentes setores definidos como “sensíveis” e cumpridos os requisitos mínimos desse mercado comum. Isto significaria, entre outros efeitos, a implementação efetiva da Tarifa Externa Comum e a conformação eventual, se necessário, de exceções verdadeiramente “comuns” a essa pauta aduaneira, e não listas nacionais de exceções como hoje se contempla. Idealmente, todas as barreiras não-tarifárias e medidas de efeito equivalente deveriam ter sido suprimidas. A coordenação de políticas macroeconômicas, nessa perspectiva, supõe igualmente que os países membros deveriam ter delimitado todas as áreas cruciais de cooperação em vista da necessária abertura recíproca de seus mercados a todos os bens e serviços dos países membros, inclusive no que se refere à oferta transfronteiriça de serviços e ao mútuo reconhecimento de normas e regulamentos técnicos específicos. 

Na ausência de progressos mais evidentes nessas áreas, se esperava que os países pudessem ter definido, pelo menos, um sistema de paridades cambiais com faixas mínimas de variação, se alguma, entre as moedas respectivas, bem como a harmonização dos aspectos mais relevantes de suas legislações nacionais relativas a acesso a mercados. Estes são os requisitos mínimos para a conformação de um amplo espaço econômico conjunto no território comum aos países do Mercosul, a partir do qual se poderia caminhar para a consolidação progressiva e o aprofundamento do processo de integração, em direção de fases mais avançadas do relacionamento recíproco nos campos econômico, político e social. 

Ainda que esse cenário razoável não se concretize, como parece previsível, nos primeiros anos do próximo século, seu desdobramento faz parte da lógica interna do Mercosul. Em todo caso, ele resultaria num Mercosul muito próximo do padrão de integração apresentado pelo mercado comum europeu em finais dos anos 60. Operando um “retorno ao passado” da integração europeia, o Mercosul se encontraria na situação do velho Mercado Comum Europeu, dos “golden sixties” e começo dos “seventies”, isto é, após terem os signatários originais do Tratado de Roma completado sua união aduaneira e definido uma espécie de “coexistência pacífica” entre uma pretendida vocação comunitária — encarnada na Comissão, mas freada pelos representantes dos países-membros nos conselhos ministeriais — e um monitoramento de tipo intergovernamental, consubstanciado no papel político atribuído ao COREPER, o Comitê de Representantes Permanentes, não previsto no primeiro esquema institucional. Em outros termos, mesmo a mais “comunitária” das experiências integracionistas, sempre foi temperada por um necessário controle intergovernamental ou, melhor dizendo, nacional.

No caso específico do Mercosul, as dúvidas ou obstáculos levantados em relação ao aprofundamento do processo de integração não parecem derivar de reações epidermicamente “soberanistas” ou mesquinhamente nacionalistas — ou até mesmo “chauvinistas”, como parecem acreditar alguns — mas de determinadas forças políticas ou de correntes de pensamento, para não falar de interesses setoriais “ameaçados”, que logram “congelar” o inevitável avanço para a liberalização comercial ampliada entre os membros. Tais tendências não são necessariamente nacionalmente definidas, mas existem ao interior de cada um dos países envolvidos no processo.

Não se poderia, por exemplo, excluir a hipótese de também o Mercosul  vir a instituir, em Montevidéu, uma espécie de COREPER, mas parece evidente que esse eventual “órgão” informal teria mais a função de assessorar o trâmite de matérias administrativas junto à Secretaria Administrativa ou de facilitar o contato “diário” entre os quatro países do que, como no exemplo original europeu, os objetivos de “controlar” um órgão legitimamente comunitário — a Comissão —, estabelecer-lhe limites no processamento das atividades de “rotina” (definidas em função dos “interesses nacionais”) e, também, de acelerar o trâmite de matérias julgadas relevantes pelas capitais. Sua institucionalização requereria uma mera “emenda”, por via de decisão ministerial, ao Protocolo de Ouro Preto, mas também parece evidente que seu significado político transcenderia o simples aspecto de um “acabamento” na incipiente estrutura organizacional da união aduaneira.

Quais seriam, em consequência, as opções razoáveis, ou as mais prováveis, que se apresentam para compor uma agenda em torno do desenvolvimento futuro do Mercosul? Elas se situam, claramente, no campo de seu aprofundamento interno, em primeiro lugar nos terrenos econômico e comercial, no âmbito de sua extensão regional, no reforço das ligações extra-regionais (em primeiro lugar com a União Europeia) e, finalmente, mas não menos importante, no apoio que o Mercosul pode e deve buscar no multilateralismo comercial como condição de seu sucesso regional e internacional enquanto exercício de diplomacia geoeconômica. 

Parece evidente que, a despeito de dificuldades pontuais e de obstáculos setoriais, a marcha da integração econômica não poderá ser detida pelas lideranças políticas que, nos próximos cinco ou dez anos, se sucederão ou se alternarão nos quatro países membros e nos demais associados. Tendo resultado de uma decisão essencialmente política, de “diplomacia presidencial” como já se afirmou, o Mercosul econômico não poderá ser freado senão por uma decisão igualmente política. Ora, afigura-se patente que o processo de integração possui um valor simbólico ao qual nenhuma força política nacional tem a pretensão de opor-se. Daí se conclui que os impasses comerciais, mesmo os mais difíceis, tenderão a ser equacionados ou contornados politicamente e levados a uma “solução” de mútua e recíproca conveniência num espaço de tempo algo mais delongado do que poderiam supor os adeptos de rígidos cronogramas econômicos. Nesse sentido, o Mercosul não é obra de doutrinários ortodoxos, mas de líderes pragmáticos.

Assim, sem entrar na questão do cumprimento estrito do programa de convergência ou no problema da compatibilização de medidas setoriais nacionais, tudo leva a crer que a futura arquitetura do Mercosul econômico não seguirá processos rigorosamente definidos de “aprofundamento” inter e intra-setoriais, dotados de uma racionalidade econômica supostamente superior, mas tenderá a seguir esquemas “adaptativos” e instrumentos ad hoc essencialmente criativos, seguindo linhas de menor resistência já identificadas pragmaticamente. Se o edifício parecer singularmente “heteróclito” aos olhos dos cultores dos esquemas integracionistas pode-se argumentar, em linha de princípio, que o itinerário do Mercosul econômico não precisa seguir, aprioristicamente, nenhum padrão de “beleza estética” ou de “pureza teórica” no campo da integração. Em qualquer hipótese, o Mercosul não está sendo construído para conformar-se a padrões organizacionais previamente definidos em manuais universitários de direito comunitário, mas para atender a requisitos econômicos e políticos de natureza objetiva, que escapam — e assim deve ser — a qualquer definição teórica ou pretensa coerência metodológica.

No que se refere à questão do aprofundamento interno, político e institucional do Mercosul , eventualmente inclusive no terreno militar, não se pode deixar de sublinhar, uma vez mais, as dificuldades inerentes — e as demandas inevitáveis, pelos protagonistas já identificados — vinculadas ao problema da supranacionalidade, constantemente agitado, como uma espécie de “espantalho acadêmico”, sobre a mesa de trabalho de “mercocratas insensíveis”. Não se poderia excluir, a esse respeito, a evolução progressiva do atual principal opositor a qualquer “renúncia de soberania” no âmbito do Mercosul , o Brasil, em direção de uma posição mais próxima, intelectualmente falando, dos demais países-membros — seja os declaradamente “supranacionais”, como Uruguai e Paraguai, seja a Argentina moderada, isto é, em favor de uma combinação de instituições intergovernamentais e comunitárias —, muito embora tal questão esteja em conexão direta com a definição de um outro tipo, ponderado, de sistema decisório interno à união aduaneira. 

 

Um Mercosul minimalista ou maximalista? O papel da moeda e do câmbio

Muitos dos cenários otimistas ou “razoáveis” que se traçam para o futuro do Mercosul têm, como no caso da ALCA por exemplo, a data fatídica de 2005 como fator político de mutação estratégica. Na verdade, os cenários aqui visualizados se situam mais no terreno da continuidade do que no da ruptura, ainda que alguns “choques” internos tenham de ocorrer para tornar verdadeiramente possíveis, ou prováveis, alguns dos desenvolvimentos aqui considerados. É bem verdade que, no caso dos prazos finais de convergência intra-Mercosul , o ano de 2005 — e, antes dele, o ano 2000 para a liberalização completa da maior parte das exceções tarifárias — aparece como uma espécie de “ponto-de-não-retorno” no cenário da integração sub-regional, mas ele também pode ser visto como um “ponto de fuga”, após o qual os países membros, ainda a braços com processos delongados de estabilização macroeconômica e confrontados a difíceis escolhas no terreno de suas políticas econômicas nacionais, continuariam afastando diante de si ou — para usar um verbo dotado de conotação positiva — buscando ativamente a “implementação” da união aduaneira projetada.

Aceitando-se que tanto a ALCA como uma hipotética “Rodada do Milênio” na OMC, ambos sob o signo de um “GATT-plus”, poderão servir de aguilhões para a implementação efetiva dessa união aduaneira, tem-se que antes ou a partir de 2005 os países-membros estarão avançando desta vez no caminho do mercado comum. As dificuldades derivadas da abertura comercial brasileira efetuada em princípios dos anos 90 e das turbulências financeiras num fin-de-siècle pouco glorioso para a maioria das economias planetárias já terão sido provavelmente absorvidas e restaria apenas consolidar as bases de um novo modelo de crescimento econômico e de integração à economia mundial.

Nessa fase, com toda probabilidade, estaremos assistindo à consolidação de novas configurações industriais na sub-região e no Brasil em particular, com um crescimento extraordinário do comércio intra-industrial e intra-firmas. Tem-se como certa, igualmente, a continuidade do processo de internacionalização da economia brasileira, em ambos os sentidos, ou seja, não apenas a recepção de um volume cada vez maior de capitais estrangeiros nos diversos setores da economia, com destaque para o terciário, mas igualmente a exportação ampliada de capitais brasileiros para dentro e fora da região. Com efeito, o Brasil é também, crescentemente, um país “exportador” de capitais, mesmo se os estados federados ainda lutam desesperadamente, inclusive por mecanismos espúrios de incentivos e de “guerra fiscal”, para atrair investimentos diretos estrangeiros. Nesse sentido, o Mercosul se consolidará como “plataforma” industrial de uma vasta região geoeconômica, mas se converterá igualmente em grande exportador mundial de commodities e sobretudo de bens industriais, o que ele hoje faz em escala muito modesta.

Seria ainda prematuro, nesse contexto, debater a questão da “moeda comum”, mas não se poderia excluir tampouco essa hipótese, via adoção prévia de um sistema qualquer de paridades correlacionadas entre suas principais moedas. Este cenário pareceria estar vinculado ao abandono, pela Argentina, do sistema de paridade fixa, assim como à aceitação, pelo Brasil de um mecanismo compartilhado de gestão cambial, mas afigura-se ainda precoce especular sobre os caminhos certamente originais que podem, também neste caso, conduzir a um padrão monetário unificado — que pode até mesmo significar preservação das moedas nacionais — no futuro mercado comum. A própria adoção efetiva da moeda única europeia, entre 1999 e 2002, que poderá “sugerir” o afastamento da referência exclusiva ao dólar, ainda hoje básico, nas operações de comércio exterior e de finanças internacionais dos países-membros, contribuirá certamente para alimentar o debate interno em torno da questão. Não se vislumbra, entretanto, além de exercícios acadêmicos obviamente inevitáveis e alguns debates preliminares de certa forma bem-vindos, qualquer definição de calendário e de compromissos nesta área antes de uma “terceira fase de transição”, a partir de 2006. 

Alguns economistas argumentam que mesmo um Mercosul minimalista não poderia eludir o problema da coordenação cambial como condição essencial de avanços ulteriores nos demais terrenos da construção do mercado comum. Provavelmente eles estão certos, mas não há contradição de princípio entre um processo de integração regional e regimes flutuantes de câmbio. Tal se deu, na prática, em diversas etapas do processo de integração europeia, inclusive numa fase ainda bem recente, quando da última crise, em 1992, do Sistema Monetário Europeu, quando o aumento da taxa de variação entre as moedas significou uma flutuação de fato para a maioria dentre elas. O NAFTA, por outro lado, funciona de forma razoavelmente bem na ausência total de qualquer coordenação cambial, e os recentes déboires do peso mexicano e mesmo do dólar canadense, para não falar do comportamento algo errático do dólar, não parecem afetar o intercâmbio intra-zona. Ou, alternativamente, se há um impacto sobre o comércio, as empresas incorporam tal variável como se se tratasse de um fluxo de comércio com qualquer país extra-zona, isto é, a grande maioria da comunidade internacional e a maior fração do comércio.

O critério básico nesse particular seria o seguinte: se o Mercosul pretende consolidar, numa primeira etapa, sua união aduaneira em formato simplificado, ele não tem por que avançar na direção da unificação monetária. Se, ao contrário, a intenção é aprofundar a integração e caminhar decisivamente no sentido do mercado comum pleno, então a questão da moeda e das taxas cambiais deve figurar necessariamente no menu de seus negociadores. Observe-se que se está falando de moeda e de paridade, não necessariamente de moeda única, pois um mercado comum pode muito bem ostentar um regime cambial unificado sem necessariamente dispor de moeda comum ou única. A primeira formulação de uma união monetária na Europa previa justamente, se não há engano, um regime de paridades fixas, mas com a preservação, numa primeira etapa, das moedas nacionais.

 

Uma agenda de Realpolitik para objetivos de Idealpolitik: o Mercosul em ação

Quaisquer que sejam as dificuldades eventuais, o Mercosul terá de avançar no terreno econômico-comercial como condição prévia à preservação de sua identidade política, regional e internacional, em face dos desafios hemisférico e multilateral que se apresentarão nos primeiros anos do século XXI. As demandas não são apenas externas, na medida em que se conhece o apetite — e mesmo a necessidade — argentina pela coordenação de políticas macroeconômicas, bem como a reiterada insistência do Uruguai, e com menor ênfase do Paraguai, por instituições supranacionais. Este aspecto é, porém, mais retórico do que efetivo, sendo bem mais importantes, no caso argentino, o problema da descoordenação cambial — de fato a ameaça de desvalorização por parte do Brasil — e, para todos os demais países, a questão do acesso continuado e desimpedido ao mercado interno da principal economia sul-americana.

Um dos grandes problemas da evolução política futura do Mercosul é, precisamente, o “salto” para a adoção integral de instituições comunitárias de tipo supranacional, transição que ocorrerá mais cedo ou mais tarde nos países-membros, considerando-se que o Mercosul constitui, efetivamente, o embrião de etapas superiores de integração. Este setor é, obviamente, o de maiores dificuldades intrínsecas, uma vez que combina, como seria de se esperar, preocupações relativas à soberania estatal e ao assim chamado “interesse nacional”. A questão principal neste campo refere-se à possibilidade de formação de uma ordem jurídica comunitária no Mercosul , que muitos autores consideram automaticamente a partir do conceito similar oriundo do direito comunitário construído a partir da experiência europeia de integração econômica e política. 

Em outros termos, o Mercosul deveria ou precisaria aproximar-se do modelo europeu para receber uma espécie de rótulo comunitário, uma certificação de boa qualidade de origem supranacional? Contra essa perspectiva “europeia” são levantados, e não apenas pelos “mercocratas”, vários óbices estruturais e sobretudo políticos nos países membros. A despeito de uma aceitação de princípio por parte das elites desses países dos pressupostos da construção comunitária — ou seja, a cessão de soberania, a delegação ou transferência de poderes, a limitação da vontade soberana do Estado — a internacionalização efetiva de suas economias respectivas ou uma ativa e assumida interdependência entre os países membros do Mercosul parece ainda distante. O problema aqui parece ser mais de ordem prática do que teórica: os economistas, que são os que de fato comandam o processo de integração, pelo menos em seus aspectos práticos, não têm o mesmo culto à noção de soberania — seja contra ou a favor — em que parecem deleitar-se os juristas e os acadêmicos em geral. 

Ainda que todos possam concordar em que a soberania nacional pode e deve recuar à medida em que se avança num projeto de mercado comum, não se trata de uma questão em relação à qual os atores relevantes possam ou devam se posicionar simplesmente contra ou a favor, ou, ainda, de uma noção que deva ser encaminhada ou resolvida por um tratado jurídico de qualquer tipo. A soberania, qualquer que seja o seu significado jurídico, não costuma integrar os cálculos de PIB ou as estimativas de (des)equilíbrios de balança comercial. Da mesma forma, ela não se sujeita facilmente à coordenação de políticas macroeconômicas, daí sua irrelevância prática para a condução efetiva do processo integracionista. Ela é, sim, exercida diariamente, na fixação da taxa de câmbio — que pode até ser declarada estável — ou na determinação do nível de proteção efetiva em situações de baixa intensidade integracionista, que é justamente aquela na qual vivem os países do Mercosul (ou, pelo menos, o maior deles, que é também o menos livre-cambista dos quatro). Em outros termos, a “soberania” não é um conceito operacional, a mesmo título que a harmonização de leis ou a padronização de normas técnicas, mas tão simplesmente um “estado de espírito”, uma percepção dos resultados prováveis de ações políticas adotadas — conscientemente ou não — pelos protagonistas de um processo de integração: é algo que se constata ex post, mais do que o resultado de uma planificação ideal do futuro.

Diversos juristas e estudiosos do Mercosul têm avançado a ideia de que caberia impulsionar, através da “vontade política”, a implementação gradual de um modelo supranacional, indicando o Brasil como o grande responsável pela preservação do caráter intergovernamental da estrutura orgânica mercosuliana pós-Ouro Preto. É verdade, mas neste caso se tratou de obra meritória, na medida em que tal atitude salvou o próprio Mercosul de um provável desastre político e de possíveis dificuldades econômicas e sociais. A Realpolitik é sempre a linha de maior racionalidade nas situações de forte incerteza quanto aos resultados de qualquer empreendimento inovador, seja uma batalha militar, seja um salto para a frente nesse modesto Zollverein do Cone Sul.

Dito isto, este articulista pretende deixar claro que não defende uma posição “soberanista” estrita no processo de construção, necessariamente progressivo e gradual, do Mercosul. A soberania, como no velho mote sobre o patriotismo, costuma ser o apanágio dos que se atêm à forma em detrimento do conteúdo, à letra em lugar do espírito da lei. Sua afirmação, em caráter peremptório ou irredentista, é geralmente conservadora, podendo mesmo sua defesa exclusivista e principista ser francamente reacionária no confronto com as necessidades inadiáveis de promoção do desenvolvimento econômico e social e do bem-estar dos povos da região. O que, sim, deve ser considerado na aferição qualitativa de um empreendimento tendencialmente supranacional como é o caso do Mercosul é em que medida uma renúncia parcial e crescente à soberania por parte dos Estados Partes acrescentaria “valor” ao edifício integracionista e, por via dele, ao bem-estar dos povos integrantes do processo, isto é, como e sob quais condições especificamente uma cessão consentida de soberania contribuiria substantivamente para lograr índices mais elevados de desenvolvimento econômico e social. 

O assim chamado interesse nacional — tão difícil de ser definido como de ser defendido na prática — passa antes pela promoção de ativas políticas desenvolvimentistas do que pela defesa arraigada de uma noção abstrata de soberania. Deve-se colocar o jurisdicismo a serviço da realidade econômica — e não o contrário — e ter presente que cabe ao Estado colocar-se na dependência dos interesses maiores da comunidade de cidadãos e não servir objetivos imediatos e corporatistas de grupos setoriais ou fechar-se no casulo aparentemente imutável de disposições constitucionais soberanistas. Em certas circunstâncias, pode-se admitir que uma defesa bem orientada do interesse nacional — que é a defesa dos interesses gerais dos cidadãos brasileiros e não os particulares do Estado, a defesa dos interesses da Nação, não os do governo — passe por um processo de crescente internacionalização, ou de “mercosulização”, da economia brasileira. Quando se ouve impunemente dizer que a “defesa do interesse nacional” significa a proteção do “produtor” ou do “produto nacional” poder-se-ía solicitar ao mercocrata de plantão que saque, não o seu revólver, mas a planilha de custos sociais da proteção efetiva à produção nacional (o que envolve também, é claro, os cálculos dos efeitos renda e emprego gerados no País).

A opção continuada dos países membros do Mercosul por estruturas de tipo intergovernamental, submetidas a regras de unanimidade, pode portanto ser considerada como a mais adequada na etapa atual do processo integracionista em escala sub-regional, na qual nem a abolição dos entraves à livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, nem a instituição efetiva da tarifa externa comum, nem a integração progressiva das economias nacionais parecem ainda requerer mecanismos e procedimentos supranacionais suscetíveis de engajar a soberania dos Estados. Esses objetivos podem, nesta fase, ser alcançados através da coordenação de medidas administrativas nacionais e da harmonização das legislações individuais. Ainda que os objetivos do Mercosul sejam similares aos do Mercado Comum Europeu e, eventualmente, em última instância, aos da União Europeia, não há necessidade, para o atingimento dos objetivos que são os seus atualmente, de que o seu sistema jurídico copie, neste momento, o modelo instituído no Tratado de Roma e, numa fase ulterior, o Tratado de Maastricht. Basta atribuir-lhe personalidade de direito internacional e implantar um marco de disciplina coletiva no exercício das respectivas soberanias nacionais.

Um outro campo de avanços “virtuais” seria o da cooperação política entre os países membros. É teoricamente possível pensar, no Mercosul, em etapas mais caracterizadas de integração política, a exemplo da Europa de Maastricht. Não há contudo, neste momento, a exemplo dos conhecidos mecanismos europeus, uma instância formal de cooperação política e de coordenação entre as chancelarias respectivas para uma atuação conjunta nos foros internacionais, assim como não há uma instância específica do Mercosul para assuntos militares e estratégicos (a despeito mesmo da realização, tanto a nível bilateral Brasil-Argentina, como a nível quadrilateral, de diversas reuniões — de caráter meramente informativo e com características quase acadêmicas — entre representantes militares dos quatro países membros). A prática diplomática, contudo, tem levado a consultas políticas constantes entre os quatro países, sobretudo Brasil e Argentina, tanto a nível presidencial como por meio das chancelarias respectivas. Esses contatos passaram, cada vez mais, a envolver os setores militares respectivos dos países membros. Já, previsivelmente, os Estados Maiores conjuntos das forças armadas nacionais, no Brasil e na Argentina, reduziram ao mínimo, ou pelo menos a proporções insignificantes, os riscos de uma instabilidade político-militar nas relações recíprocas. Isto significa, tão simplesmente que a hipótese de guerra, sempre traçada nas planilhas de planejamento estratégico dos militares, é cada vez mais remota, senão impossível. 

No terreno mais concreto dos conflitos comerciais, parece por outro lado evidente que, assim como na experiência europeia a existência e o ativismo jurídico da Corte de Luxemburgo permitiu desmantelar de fato muitas barreiras não-tarifárias erigidas depois da consecução da união aduaneira, a eventual introdução de uma corte arbitral permanente no Mercosul poderia desarmar a maior parte dos impedimentos colocados pelos lobbies setoriais nacionais à abertura efetiva dos mercados internos à competição dos agentes econômicos dos demais parceiros. Talvez este seja o “primeiro grão” de supranacionalidade e de direito comunitário que caberia, por simples questão de racionalidade econômica, impulsionar no processo de integração.

 

O futuro do Mercosul : a work in progress

As fases mais avançadas do processo integracionista no Cone Sul poderão, a exemplo da experiência europeia, permitir o estabelecimento de uma cooperação e coordenação política propriamente institucionalizada e poderão até mesmo desembocar, a longo prazo, num processo ao estilo da Europa-92 e envolver as diversas dimensões discutidas e aprovadas por Maastricht, ou seja, união econômica ampliada (moeda e banco central), coordenação da segurança comum e ampliação do capítulo social em matéria de direitos individuais e coletivos. Nesse particular, as centrais sindicais do Mercosul vêm demandando, com uma certa insistência, a adoção de uma “Carta Social”, com direitos sociais e trabalhistas mínimos a serem respeitados pelos “capitalistas selvagens” do Cone Sul. Ainda que se possa conceber novos avanços no capítulo social do Mercosul , é previsível que a orientação econômica predominante neste terreno — isto é, tanto empresarial como governamental — continuará privilegiando mais a “flexibilidade” dos mercados laborais, ao estilo anglo-saxão, do que uma estrita regulação dos direitos segundo padrões europeus.

No que se refere, finalmente, ao relacionamento externo do Mercosul, caberia enfatizar primeiramente o aprofundamento das relações com outros esquemas de integração, a começar obviamente pela União Europeia. O Mercosul se constituiu no bojo de uma revitalização dos esquemas de regionalização, sobretudo os de base sub-regional. Sua primeira fase de transição coincidiu com a constituição de uma área de livre comércio na América do Norte (NAFTA), entre o México, os EUA e o Canadá, logo seguida pelo próprio desenvolvimento da ideia da “Iniciativa para as Américas” sob a forma de uma zona de livre-comércio hemisférica, a ALCA. Ao mesmo tempo, outros esquemas eram lançados ou se desenvolviam em outros quadrantes do planeta: todos eles obedecem, em princípio, à mesma rationaleeconômica e comercial, qual seja, o da constituição de blocos comerciais relativamente abertos e interdependentes, integrados aos esquemas multilaterais em vigor.

A União Europeia, que levou mais longe esse tipo de experiência, talvez seja o bloco menos aberto de todos, mas é também aquele que apresenta o maior coeficiente de abertura externa e de participação no comércio internacional de todos os demais, sendo ademais o principal parceiro externo do Mercosul. A atribuição pelo Conselho Europeu de um mandato negociador à Comissão de Bruxelas, no sentido de ser implementado o programa definido no acordo interregional assinado em dezembro de 1995 em Madri, parece ainda carente de maior definição quanto a seu conteúdo efetivo, em primeiro lugar no que se refere ao problema da liberalização do comércio recíproco de produtos agrícolas, uma das bases inquestionáveis do protecionismo europeu, francês sobretudo.

O Mercosul deve relacionar-se amplamente com os diversos esquemas sub-regionais, mas, ao mesmo tempo, preservar seu capital de conquistas no Cone Sul. Em outros termos, a associação, via acordos de livre-comércio, de parceiros individuais (foi o caso do Chile e da Bolívia, a partir de 1996) ou de grupos de países (os da Comunidade Andina, por exemplo), deve obedecer única e exclusivamente aos interesses dos próprios países membros do Mercosul , para que os efeitos benéficos do processo de integração sub-regional não sejam diluídos num movimento livre-cambista que apenas desviaria comércio para fora da região. Tal seria o caso, por exemplo, de uma negociação precipitada em prol da ALCA, sem que antes fossem garantidas condições mínimas de consolidação da complementaridade intra-industrial entre Brasil e Argentina e de expansão do comércio em geral no próprio Mercosul e no espaço econômico sul-americano em construção. 

Um acordo precipitado no âmbito da ALCA introduziria certamente uma demanda excessiva por salvaguardas durante a fase de transição e, sabemos pela experiência do próprio Mercosul, que elas devem limitar-se aos ajustes temporários requeridos pelos processos de reconversão ligados à repartição intersetorial dos fluxos comerciais e, em nenhum caso, dificultar ou impedir a marcha da especialização e da interdependência intra-industrial. As regras de origem, por outro lado, que conformam um dos capítulos mais intrincados de qualquer processo de liberalização, poderiam ser indevidamente utilizadas para impedir fluxos de comércio com outras regiões ou investimentos de terceiros países, geralmente europeus ou mesmo asiáticos, reconhecidamente mais dinâmicos em determinados setores de exportação.

A “ameaça” da ALCA incitou presumivelmente os europeus a se decidir por avançar na implementação do acordo de cooperação interregional firmado em Madri. Como registrado nesse instrumento, a liberalização comercial “deverá levar em conta a sensibilidade de certos produtos”, o que constitui uma óbvia referência à Política Agrícola Comum, uma das áreas de maior resistência à abertura no ulterior processo de negociação. Não obstante, é de se esperar que por volta de 2005, e coincidindo com avanços similares nos planos hemisférico e multilateral, o Mercosul e a União Europeia tenham delineado de maneira mais efetiva as bases de um vasto esforço de cooperação e de liberalização recíproca. Uma etapa decisiva no esforço negociador bilateral deverá ser realizada por ocasião da Cimeira Europa-América Latina, a realizar-se no Rio de Janeiro no primeiro semestre de 1999, quando também deverão reunir-se representantes de cúpula do Mercosul e da União Europeia com vistas, possivelmente, ao anúncio do início das negociações tendentes a conformar, se não um novo esquema de integração, pelo menos um processo progressivo de liberalização do comércio recíproco dos dois espaços de integração regional. Também aqui, como no caso da ALCA, a possibilidade de resultados exitosos do ponto de vista do Mercosul depende em grande medida do grau de coesão interna do grupo, tanto no terreno econômico como político.

Mais importante do que qualquer esquema “privilegiado” de âmbito regional é, contudo, o reforço contínuo das instituições multilaterais de comércio, condição essencial para que o Mercosul não seja discriminado indevidamente em qualquer área de seu interesse específico, seja como ofertante competitivo de produtos diversos, seja como recipiendário de capitais e tecnologias necessárias. A OMC representa, nesse sentido, um foro primordial de negociações econômicas e, como tal, um terreno comum de entendimento com os diversos esquemas regionais de integração. Essa instituição não constitui, entretanto, um guarda-chuvas tranquilo e muito menos uma panaceia multilateralista suscetível de preservar os países-membros dos desafios da globalização já em curso: pelo contrário, ela tende a ser, cada vez mais, o próprio foro da globalização, ao lado de suas “irmãs” mais velhas de Bretton Woods, o FMI e o Banco Mundial. Atuando de forma coordenada na OMC, bem como em outros foros relevantes do multilateralismo econômico internacional — como a OCDE, a UNCTAD e as instituições de Bretton Woods —, os países-membros do Mercosul logram aumentar seu poder de barganha e ali exercer um talento negociador que os preparará para a fase da “pós-globalização” que já se anuncia.

Em síntese, tendo em vista que o processo de construção do Mercosul não obedece tão simplesmente a opções de política comercial ou de modernização econômica — ainda que tais objetivos sejam, por si sós, extremamente relevantes do ponto de vista econômico e social de seus países membros — ou a meras definições externas e internacionais de caráter “defensivo”, mas encontra-se no próprio âmago da estratégia político-diplomática dos respectivos Governos e de certa forma entranhado a suas políticas públicas de construção de um novo Estado-nação na presente conjuntura histórica sub-regional, parece cada vez mais claro que o Mercosul está aparentemente “condenado” a reforçar-se continuamente e a afirmar-se cada vez mais nos planos regional e internacional. Nesse sentido, ele deixa de ser um “simples” processo de integração econômica, ainda que dotado de razoável capacidade transformadora do ponto de vista estrutural e sistêmico — algo limitado, reconheça-se, para o Brasil enquanto “território ainda em formação”, por mais significativo que ele possa ser no quadro dos sistemas econômicos nacionais respectivos dos demais países membros —, para apresentar-se como uma das etapas historicamente paradigmáticas no itinerário já multissecular das nações platinas e sul-americanas, como uma das opções fundamentais que elas fizeram do ponto de vista de sua inserção econômica internacional e de sua afirmação política mundial na era da globalização. O Mercosul é, mais do que nunca, um work in progress.

Para retomar a tipologia inicial, pode-se argumentar que a unificação monetária pertence, ainda, ao terreno da Idealpolitik, e que sua preparação efetiva não pode prescindir de grandes doses de Realpolitik na condução cotidiana da união aduaneira em construção. Mas, assim como o processo de integração, em sua fase inicial, foi propriamente obra de visionários, atuando mais sob o impulso de ideais políticos do que por necessidades econômicas, a unificação monetária do Mercosul também pertence a esse gênero de iniciativas pioneiras que prometem inserir decisivamente o atual quadro integracionista numa projeção utópica do futuro. Essa projeção será tanto mais realista quanto sustentada por valores que visam aproximar o Mercosul real do Mercosul ideal.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 648: 25/11/1998