As questões colocadas por este candidato à carreira não têm nada a ver com a preparação substantiva para o concurso de ingresso, e sim com preocupações ex-post, na medida em que ele ouviu falar, leu, sobre os constrangimentos causados pelos posicionamentos sectários de certos conselheiros presidenciais, interferindo na política externa.
A mensagem, enviada em formato de comentário a um dos posts deste blog, foi a seguinte:
Caríssimo Sr. Paulo Roberto Almeida
Busquei conhecer a carreira - com especial cuidado para não incorrer em falsos romantismos -, e acabei por identificar substanciais (e reais) afinidades, que me inclinaram à realização de compenetrados estudos para o CACD.
Não é nenhum segredo, porém, que diante da conhecida dificuldade do certame, a motivação e atitude para ingressar na casa devem ser mesmo "férreas", não havendo, ou ao menos não devendo haver, espaço para nada que possa diminuir a determinação.
No entanto, ainda que eu mantenha uma postura proativa e focada no objetivo, um único fator (mas que fator!) cisma em fazer "murchar" a expectativa vocacional, e, como indissociável consequência, o empenho na aprovação.
Trata-se da tal contaminação ideológica que o MRE vem sendo alvo nos últimos anos e que, segundo o Embaixador Roberto Abdenur, no artigo acima, já inclusive interfere na inserção externa.
Enfim, professor, a grande (e acredito, relevante) dúvida que me assola é seguinte:
Hoje, um diplomata que não é simpático à ideologias de esquerda, e que, noutra ponta, poderia até ganhar o subjetivo e impreciso rótulo de 'conservador', consegue progredir na carreira? Consegue manter o emprego? A sanidade física e mental?
Ou o repetido cânone "diplomatas servem ao estado e não a governos" foi definitivamente enterrado?
Na estimada opinião do professor, tais circunstâncias tem o condão de impedir a vocação?
Ou deve-se encarar esse triste momento como ponto fora da curva, que haverá, mais cedo ou mais tarde, de dobrar-se à tradicional continuidade da política externa brasileira?
Agradeço antecipadamente quaisquer ponderações e reflexões.
Com os melhores cumprimentos,
[Fulano de Tal]
Eliminei o nome do remetente, para não lhe causar constrangimentos, e passo a comentar também, com diversos constrangimentos, uma vez que sou diplomata e já assisti a essa "contaminação ideológica" -- foi a expressão usada por ele -- alguns aspectos desse comentário.
Eu diria ao candidato em causa que ele não deve temer pela sua carreira, pois essas coisas são passageiras, e podem passar, sem deixar traços, mas também podem continuar, o que é uma possibilidade, num Brasil cada vez mais partidarizado e dividido.
Mas mesmo nesse caso, ou seja, de uma deterioração ainda maior dos serviços diplomáticos por indevida "contaminação ideológica", minha única recomendação seria a de manter um perfil baixo.
Diplomata, em geral, salvo os muito afoitos, não tem ideologia. Todos eles se comportam profissionalmente e tratam os assuntos de forma perfeitamente técnica, sem ceder às paixões políticas do momento. Sempre tem aqueles que aderem de modo entusiasmado às novas tendências políticas, seja por crença sincera nas novas verdades partidárias, ou por simples oportunismo carreirista, e também tem aqueles que por liberalismo visceral, ou anarquismo literal, resistem aos novos tempos, se o ZeitGeist discrepa muito do que se espera de um serviço diplomático "normal". Difícil avaliar o que quer dizer tudo isso, pois as percepções e sensibilidade políticas são um pouco como preferências gastronômicas ou futebolísticas: cada um tem as suas.
Sobre essa divisão entre Estado e governo, pode, ou não, funcionar, pois sempre tem aqueles que o Estado é uma abstração e ele só existe de fato quando encarnado em algum governo.
Não acredito e já escrevi muito a respeito, inclusive as "Dez Novas Regras de Diplomacia", que estão em meu site.
Os muito oportunistas dirão que a população já aprovou a política externa do governo (e do partido) nas eleições, e que por isso os diplomatas precisam "vestir a camisa" do governo.
Pode ser, mas continuo não acreditando nisso.
Em todo caso, o Itamaraty é um grande lugar para se trabalhar.
Partidários e oportunistas são poucos, e acabam passando.
Paulo Roberto de Almeida