O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Apogeu e demolição da política externa: palestra na Semana de Relações Internacionais da FMU: 15/09/2021, 19hs

Subsídios preliminares à palestra a ser proferida na Semana de Relações Internacionais da FMI, em 15/09/2021, para a qual prepararei uma outra apresentação.

O texto abaixo visa apenas suscitar questões a serem eventualmente abordadas na palestra. 

Link para visualização no canal YouTube da FMU: 

https://www.youtube.com/watch?v=-5hG5YtS5pE&list=PLO1x3kNEq3Hk5G6buE2OKPrlxyvHVe-au

Apogeu e demolição da política externa: o que temos agora?

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com; pralmeida@me.com)

 

O título deste texto retoma o exato título de meu livro recém-publicado, cujo subtítulo é: itinerários da diplomacia brasileira. Não pretendo estender-me sobre o seu conteúdo, pois cada um pode recorrer a essa minha obra mais recente para constatar o que eu disse sobre os diversos temas nele abordados: a historiografia das relações internacionais do Brasil – ou seja, as grandes obras que figuram necessariamente na bibliografia dessa área –, um segundo capítulo sobre essas relações internacionais, ou seja, a matéria de fato, em perspectiva histórica, mais um capítulo sobre os processos decisórios em matéria de política externa, seguido de dois outros também de caráter histórico, sobre as diversas diplomacias presidenciais desde Vargas, e sobre alguns tropeços diplomáticos ao longo dos últimos 200 anos, consoante meu espírito cético ou contrarianista sobre as supostas excelências de nossa política externa; finalmente, eu termino com um exercício de planejamento diplomático para uma nova fase da governança no Brasil, uma que seja menos errática do que a atual.

Justamente: pouco mais de um ano atrás, mais exatamente em 26 de julho, eu escrevia um trabalho chamado “Posturas erráticas e irracionais do governo, grandes prejuízos para o Brasil”, que consistiam em notas sintéticas sobre os grandes desastres da política externa bolsonarista, mas eu apenas apontava os problemas, sem oferecer, naquela ocasião, algum remédio salvador para esses desastres; afinal de contas, ainda estávamos em pleno triunfalismo da diplomacia bolsolavista e de alguns outros aprendizes de feiticeiro na Esplanada dos ministérios, entre eles o certamente pior ministro da deseducação de toda a história do Brasil, cujo destino agora é obscuro em Washington, mais o antiministro do Meio Ambiente, que também foi entregue à obscuridade, depois de ter contribuído com ampla destruição do seu objeto de trabalho, sem mencionar o próprio responsável da área diplomática, aquele a quem eu chamei de “chanceler acidental” (mas ele não passava de um joguete nas mãos de amadores ignorantes em política internacional e em diplomacia). 

Esse meu trabalho sobre as “posturas erráticas e irracionais do governo” pode ser encontrado em meu blog Diplomatizzando (27/07/2020; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/07/posturas-erraticas-e-irracionais-do.html). Muito bem, como estamos agora há seis meses, aproximadamente, da troca desse “chanceler acidental” por um diplomata profissional, talvez seja útil retomar aquele trabalho para ver o que mudou, ou não mudou, para saber se ainda existem riscos de grandes prejuízos ao Brasil, em decorrência do caráter errático e irracional deste governo. Para isso vou fazer um exercício comparativo, entre o que eu escrevi um ano atrás, refletindo o estado da “arte” (se arte existia) da época, e o que temos hoje, depois de um ano de avanços e recuos, aos trancos e barrancos. Vejamos como a situação se apresenta agora.

 

Posturas erráticas e irracionais do governo, grandes prejuízos para o Brasil (26/07/2020)

O que temos agora? O que mudou, o que ficou, o que melhorou e o que piorou (15 de setembro de 2021)

Caracterização geral da situação em 2019-2020 e na atualidade

O governo atual foi eleito de maneira até entusiástica pelos eleitores, com base numa plataforma supostamente liberal, de luta inflexível contra a corrupção e de continuidade nos ajustes econômicos necessários para superar a mais grave crise econômica – recessão, déficits e desemprego em níveis elevados – de toda a história do país, construída pelo último governo petista e em fase de reversão no anterior governo Temer. Ele teve um início relativamente promissor, a despeito de sinais contraditórios emitidos desde a campanha eleitoral, em 2018...

Não tivemos nem liberalismo, nem luta contra a corrupção (ao contrário, foram desmantelados os mecanismos existentes para tal efeito, inclusive o juiz-ministro); os ajustes econômicos não foram feitos, e não foi apenas por causa da pandemia, e sim por incompetência mesmo do ministro Guedes ou veto do seu chefe; continuamos em recessão, déficits e desemprego elevados, e juros em alta e fuga de capitais. Ou seja, no plano econômico, o Brasil está muito pior do que estava ao final do governo Temer, e isso não se deve apenas à pandemia. O Grande Capital já desembarcou do governo.

Os primeiros sete grandes equívocos da diplomacia bolsolavista, e o que mudou

1)     aparente hostilidade à República Popular da China e preferência por Taiwan, por motivos claramente ideológicos e anticomunistas, sem consistência econômica;

Desde fevereiro de 2018, os Bolsonaros revelam hostilidade à “China comunista”; isso permaneceu, mas reprimidos pelo agronegócio, tiveram de reprimir seus próprios instintos; o atual chanceler se esforça por corrigir o cenário.

2)     aproximação ao governo Netanyahu em Israel, em diversos temas do cenário local, e promessa de mudar a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, por motivos também ideológicos, vinculados à base evangélica do candidato e adoção de postura anti-islâmica e antipalestina, mas ignara quanto a aspectos de caráter constitucional, diplomático e econômico envolvidos nessas questões;

O entusiasmo com a mudança da embaixada (no seguimento de ato similar por Trump) diminuiu também sob pressão do pessoal árabe no Brasil e dos exportadores de carne Hallal; mas instalaram um escritório da Apex na cidade e mantiveram boas relações com Netanyahou, que esteve na posse de Bolsonaro; expedição à cata de spray nasal foi um completo fracasso. A gestão atual desdramatizou a situação; primeiro-ministro Netanyahou saiu do governo. 

3)     adesão explícita, como diretriz diplomática, não exatamente aos Estados Unidos, mas ao governo Trump; o que rompeu com a postura de autonomia na política externa e na diplomacia, mantida, com altos e baixos, desde o Império;

O entusiasmo e provavelmente negócios com Trump perduraram durante toda a presidência dele, inclusive em detrimento dos interesses do Brasil e numa submissão que jamais ocorreu em toda a história do Brasil; Trump saiu, mas continua procurado pela família Bolsonaro.

4)     uma agenda negacionista nas discussões sobre aquecimento global e supostamente desenvolvimentista no que respeita recursos naturais e especificamente a Amazônia e as reservas indígenas, o que retrocederia políticas nacionais, com impacto internacional, longamente amadurecidas ao longo de décadas, em compasso com orientações da opinião pública mundial em temas de meio ambiente; anúncio de renúncia a acolher a 25ª Conferência das Partes sobre aquecimento global;

Antes mesmo de iniciar o governo já tinha ocorrido a recusa de sediar a 25ª COP e ameaça de sair do Acordo de Paris (tudo por sabujice ao governo Trump). A política antiambiental foi aos extremos e poder ser tida como responsável pela recusa dos europeus de ratificarem o Acordo Mercosul-EU, assim como por um potencial boicote às exportações brasileiras do agronegócio (o que é equivocado, pois não existe conexão). Sob a gestão atual, a política para fora recebeu nova roupagem, mas dentro do país continua a degradação ambiental.

5)     um nacionalismo de fachada ainda no terreno ambiental, com crítica não só a ONGs estrangeiras atuando nessa área no Brasil, ao funcionamento do Fundo Amazônia (que resultou na paralisia das contribuições de Noruega e Alemanha a programas de pesquisa), mas contra a própria agenda internacional relativa a mudanças climáticas, e anúncio da retirada do Brasil do Acordo de Paris;

O governo Bolsonaro se empenhou de forma totalmente irracional em sabotar as boas relações com importantes parceiros do Brasil nos programas de pesquisa na região amazônica em torno do conceito de sustentabilidade; outro fator foi obviamente o aumento da devastação florestal e as queimadas não só na Amazônia, mas também no Pantanal; no conjunto, o tema do meio ambiente foi um desastre gigante. Cabe à atual gestão tentar reparar os prejuízos.

6)     declarações altissonantes de luta contra a corrupção; quando sinais claros de comprometimento da família com negócios escusos já tinham sido revelados antes e durante a campanha, com repercussões negativas do ponto de vista da adesão do Brasil à OCDE, que tem um grupo de combate à lavagem de dinheiro no plano internacional, e da cooperação entre os países nesse terreno; a renúncia unilateral ao tratamento especial aos países em desenvolvimento foi gratuita e sem contrapartida;

A questão da luta contra a corrupção foi um dos fracassos mais monumentais do governo e o que motivou a saída do ministro Moro. Com isso também foi afetado o ingresso do Brasil na OCDE, tanto do lado ambiental, quando na questão do combate à corrupção e à lavagem de dinheiro: o COAF, parceiro do GAFI nesse setor, foi completamente manietado, tanto que motivou relatório oficial da OCDE registrando a não cooperação do Brasil com a entidade; outros retrocessos se manifestaram em diversos setores dos organismos multilaterais. Não há previsão de melhoria nessa frente.

7)     e um nacionalismo e estatismo entranhados no candidato – em total contradição com o espírito privatista e liberal do principal conselheiro econômico; com repercussão sobre a agenda externa de abertura econômica e liberalização comercial.

O alegado liberalismo, abertura econômica e rebaixas tarifárias nunca ocorreram, tanto por nacionalismo obtuso do presidente como oposição das associações empresariais setoriais, que dificultaram inclusive o acordo com a UE. Até aqui, mudou o discurso, não a prática.

As mudanças sutis no curso dos primeiros meses e primeiros dois anos

Todas essas contradições, potencialmente problemáticas no exercício da nova gestão e apontadas desde o início por observadores mais atentos, foram deixadas de lado no decorrer da campanha e na inauguração da administração, em janeiro de 2019. Os problemas daí decorrentes começaram desde o primeiro dia, quando uma sinalização do chanceler e do próprio presidente em favor da instalação de uma base americana no território brasileiro foi imediatamente rechaçada e descartada pelos ministros militares do governo. Desde o início se registrou o desligamento do Brasil do Pacto Global das Migrações, um instrumento positivo do ponto de vista da grande emigração brasileira em diversos continentes, o que foi devido a uma adesão inconsequente e ideológica à agenda imigratória do governo Trump.

O mesmo chanceler confirmou, desde os primeiros momentos, as piores previsões quanto a essa íntima associação com o governo Trump, engajado desde o seu começo em causas ideológicas que não tinham nada a ver com os interesses nacionais do Brasil na condução de suas relações exteriores e na boa promoção de seus intercâmbios econômicos:

Os retrocessos no plano internacional tiveram início ainda antes da posse, com o anúncio da retirada da assinatura do Brasil do Pacto Global das Migrações, um gesto totalmente sem sentido, contrário até ao espírito do Direito Internacional (convenção de Viena sobre Direito dos Tratados) e aos interesses nacionais do Brasil e de seus milhões de expatriados, muitos deles ilegais. Aqui, como em vários outros capítulos, havia uma adesão cega e estúpida a posturas do governo Trump em matéria migratória, com declarações absurdos do presidente e da família a esse respeito. Essa submissão abjeta aos interesses do governo Trump se revelaram na aceitação de uma base dos EUA no Brasil (prontamente rejeitada pelos militares do governo) e no seguimento fiel da postura em relação ao governo Maduro, na Venezuela, numa atitude que pode até ser considerada abertamente inconstitucional (artigo 4º.: interferência em outros Estados). A hostilização ao governo Maduro deixou o Brasil sem condições de atuar no plano diplomático para s ter uma solução ao problema, chegando ao ponto da retirada do pessoal diplomático e consular do país e a declaração de persona non grata ao pessoal venezuelano no Brasil.

8)     hostilização da China, o maior parceiro comercial, podendo se refletir nas grandes exportações de commodities, essenciais para preservar o grande superávit bilateral;

A hostilização à China, a empresas chinesas e ao embaixador, por parte do chanceler e de familiares do presidente, continuou sem cessar, mas, pelo menos se marcou leilão do 5G.

9)     minimização dos prejuízos incorridos com as salvaguardas abusivas (e ilegais) do governo Trump contra as exportações de aço e alumínio e adesão à agenda dos EUA no que respeita eventuais reformas na OMC, sobretudo no plano institucional, com destaque para a paralisia do órgão de solução de controvérsias, o que é grave;

O governo Bolsonaro não defendeu os interesses comerciais do Brasil na adoção de salvaguardas ilegais por parte dos EUA, no aço e no alumínio; ao contrário, colaborou com importações americanas em setores (etanol) nos quais o Brasil é competitivo; luta contra o multilateralismo, ajudou a paralisar a OMC, o que pode ter motivado a saída do DG brasileiro.

10)  aceitação do tratamento agressivo em direção da população brasileira imigrante nos Estados Unidos com status indefinido, e que se concretizou na expulsão massiva de vários desses residentes ilegais com cooperação indevida dos consulados brasileiros no fornecimento de papéis para a expatriação;

Os brasileiros residentes nos EUA votaram maciçamente em favor do Bolsonaro; como retribuição, ele aceitou tratamento ultrajante aos brasileiros ilegais, colaborando até com as expulsões expeditivas que passaram a se fazer com papeis dados pelos consulados. Cabe verificar se já ocorreu mudança no tratamento dos brasileiros expatriados.

11)  adesão ao projeto largamente eleitoreiro de Trump no sentido de derrubar o governo chavista, o que obrigou a “ala militar” do Planalto a se fazer presente em diferentes episódios dessa questão; a evolução do tema não foi positiva para essa agenda muito agressiva, mas culminou com a retirada de todo o pessoal diplomático e consular de todas as representações na Venezuela, sem ruptura de relações, algo absolutamente inédito na tradição do Brasil e mesmo nos anais da diplomacia mundial;

O tratamento do tema venezuelano pela chancelaria bolsonarista foi a mais flagrante submissão dos interesses do Brasil a Trump, pois que deixou o Brasil completamente isolado, junto com a Colômbia, na região. O próprio reconhecimento do governo dito legítimo de Guaidó contrariou nossa política tradicional de reconhecimento de Estados, segundo práticas consagradas no Direito Internacional (controle efetivo do território). Na gestão atual o Brasil tenta recompor as relações, mas a ausência de pessoal dificulta esse passo.

12)  desprezo pelas instituições multilaterais, em nome de um suposto (e em grande medida fantasmagórico) globalismo, o que levou o Brasil ao isolamento mundial.

A adesão alucinada às teorias conspiratórias dos antiglobalistas cessou completamente, o que não impede a família presidencial de continuar seus atos de submissão ao ex-presidente Trump.

Os desastres causados aos interesses do Brasil e o que temos atualmente: 

13)  ofensas gratuitas contra o candidato peronista à presidência argentina, o que rompe um princípio constitucional – o da não intervenção nos assuntos internos de outros Estados – mas também com a simples cortesia diplomática, o que já tinha ocorrido em ocasiões anteriores em relação a antigos ditadores no Chile e no Paraguai, e em outra tentativa de intervenção nas eleições presidenciais uruguaias;

Uma falta total de compostura por parte do presidente levaram à mais grave deterioração de uma das mais importantes relações bilaterais do Brasil, com a Argentina, a ponto de não se ter NENHUM diálogo entre os dois chefes de governo. De forma geral, Bolsonaro não mantém nenhuma relação próxima com qualquer parceiro regional; o atual chanceler tem se esforçado no restabelecimento dos laços, mas sem a colaboração de Bolsonaro.

14)  o próprio chanceler recrudesceu nas ofensas ao candidato peronista, assim como a outras personalidades políticas na região, em nome de um outro fantasmagórico inimigo, o Foro de São Paulo, com repercussões negativas do envolvimento direto do chanceler na política interna na Venezuela, da Bolívia e outros países;

O ex-chanceler se esmerou em também ofender o presidente argentino, o que obstou qualquer contato entre as duas chancelarias. O embaixador do Brasil foi retirado do posto. A despeito de se ter retomado os contatos entre as chancelarias, a ausência de contato entre os ministros da Economia impede qualquer conversa a respeito do Mercosul. 

15)  tanto o chanceler quanto o ministro da Economia mantiveram uma postura hostil e mesmo confrontacionista em relação às posições da Argentina em relação ao tema do Mercosul, o que inviabilizou qualquer projeto de reforma do bloco no futuro previsível, assim como negociações comerciais consensuais com novos parceiros;

O ministro da Economia demonstrou, desde o início, não ter o mínimo conhecimento do Mercosul, e desprezou o relacionamento com a Argentina, o que afetou severamente o tratamento de assuntos de interesse dos exportadores brasileiros; o Mercosul está praticamente paralisado durante todo esse tempo e não existem perspectivas de que se possa avançar nos temas mais delicados.  

16)  ofensas pessoais a líderes europeus, assim como a postura agressiva do presidente e do chanceler nas questões ambientais e da Amazônia inviabilizaram por completo a possibilidade de se colocar em vigor o acordo Mercosul-União Europeia, talvez o maior desastre de um dos grandes “sucessos” apresentados pelo governo;

O presidente e os ministros da Economia e das Relações Exteriores ofenderam os países europeus, inclusive no plano pessoal; o desprezo do ex-chanceler pela Europa fez com que os parceiros da UE congelassem completamente a ratificação do acordo. Mesmo com as mudanças na diplomacia brasileira, não existem chances de colocá-lo em vigor.

17)  frustração idêntica na questão do ingresso brasileiro na OCDE, não apenas em virtude da postura ambígua dos EUA, como também da sabotagem presidência no plano interno na questão do COAF, instrumento fundamental para a cooperação em matéria de combate à lavagem de dinheiro e da convenção anticorrupção da OCDE;

A despeito das tentativas feitas pelo atual chanceler de restabelecer o diálogo com a OCDE, não existe nenhuma chance de o Brasil de Bolsonaro ser aceito na entidade, não apenas pelas posturas do Brasil nas áreas já mencionadas (meio ambiente e lavagem de dinheiro), mas porque o nível do diálogo decaiu desde 2019, apesar de anúncios em contrário.

18)  postura agressiva da delegação brasileira em todos os temas relativos a direitos humanos e agenda de minorias, mas sobretudo direitos da mulher, o que rendeu críticas praticamente universais da comunidade diplomática internacional;

A agenda da diplomacia no âmbito da ONU, em especial no Conselho de Direitos Humanos, tem sido a mais penosa possível, com retrocessos em todas as frentes, em especial nos temas da mulher, das minorias, dos direitos indígenas e vários outros.

19)  deterioração completa das possibilidades de diálogo e concertação na região, com a eliminação de antigos esquemas de cooperação – inclusive na área militar –, o que deixa a América do Sul sem qualquer estrutura política de interação, num momento de especial preocupação com respeito à disseminação da pandemia na região.

Muito antes que a pandemia fechasse as fronteiras com os vizinhos, o presidente e o ex-chanceler acidental já tinham isolado completamente o Brasil da maior parte dos vizinhos; a tentativa de substituir a Unasul por uma nova entidade claramente gorou e já não existem mais estruturas de consulta e coordenação entre os países; o próprio Grupo de Lima foi desativado.

Meio ambiente e pandemia: dois temas ainda na balança de perdas e danos:

Existem muitos outros temas nos quais as políticas erráticas e contraditórias do governo provocam prejuízos concretos ao Brasil, em especial nas áreas ambiental, de relações exteriores e agora relativamente ao tratamento das medidas contra a pandemia, mas três deles são especialmente relevantes para os negócios e os investimentos no Brasil, com um potencial de prejuízos de enorme dimensão na balança comercial e nos investimentos:

O Brasil encontra-se numa situação inédita de total isolamento externo, nunca vista sequer durante o regime militar. Depois do término do governo Trump, não existe nenhum governo importante no mundo com o qual o Brasil mantenha um diálogo fluído. Mesmo a Índia de Modi, um outro nacionalista de direita, esfriou contato depois de problemas com a vacina. A nova retórica do Itamaraty deve melhorar marginalmente essa situação, mas será difícil.

20)  a contínua hostilização da China pela família e pelo próprio ex-chanceler, que inventou um “comunavirus” para prejudicar os países ocidentais e conquistar hegemonia mundial, o que é uma alucinação total; o mesmo se aplica ao caso do 5G, o que pode representar atraso no campo das TICs e retaliação da China em diversos campos dos intercâmbios bilaterais, não apenas no comércio; esse é muito possivelmente o de maior impacto negativo para Brasil;

Durante a gestão do ex-chanceler acidental, a relação com a China foi a pior possível, com possível ameaça de boicote no comércio bilateral; haveria certamente retaliações da parte chinesa se ocorresse, como pedia o governo Trump (mas Biden não é diferente), o veto à participação da Huawei no leilão do 5G, mas os prejuízos já existem, dado o atraso no processo, que já deveria ter sido feito. A China mantém postura profissional; a Comissão Mista se reúne com a chefia do vice-presidente.

21)  a postura ambiental desastrosa reiterada pelo presidente e pelo ministro da área pode prejudicar enormemente exportações do agronegócio brasileiro, em bilhões de US$;

A frente ambiental é possivelmente a de maior impacto na imagem internacional negativa do Brasil, e assim deve permanecer durante toda a gestão Bolsonaro. Vai demorar a recuperação.

22)  no caso da pandemia, o tratamento vergonhoso registrado nas posturas do presidente e das autoridades do setor levou à denúncia do presidente no âmbito do TPI; mesmo sem abertura de processo formal nesse foro, trata-se de fato negativo para a imagem do Brasil no mundo, com potencial para cessação completa dos investimentos estrangeiros, o que já era o caso no tocante ao tratamento igualmente desastroso das queimadas na Amazônia e das políticas relativas às populações indígenas, item igualmente inscrito nas denúncias apresentadas ao TPI.

À diferença de outros líderes de direita, Bolsonaro foi o único que se manteve negacionista de maneira irredutível durante toda a pandemia, inclusive com denúncias apresentadas no TPI (mas com poucas chances de prosperarem). A despeito de possuir menos de 3% da população mundial, o Brasil exibe números anormalmente elevados de contaminados e mortos, por falta de uma coordenação nacional e de fato sabotagem no enfrentamento da pandemia. A questão indígena pode ainda ser objeto de exame especial por parte do TPI, o que vai impactar ainda mais a imagem internacional do Brasil. 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3724, 26 de julho de 2020;

Postado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/07/posturas-erraticas-e-irracionais-do.html);

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3968, 5 de setembro de 2020;

blog Diplomatizzando (09/09/2021; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/09/apogeu-e-demolicao-da-politica-externa.html)

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 5 setembro 2021, 7 p.

 

As MENTIRAS da Declaração presidencial - Jair Bolsonaro (ARGH!) e Paulo Roberto de Almeida

 Meus comentários a esse estrupício de Declaração. Não posso acreditar que o homem das mesóclises tenha sido o redator dessa carta. Não é possível: se foi ele, piorou muito.

Paulo Roberto de Almeida

 

Declaração à Nação

 

No instante em que o país se encontra dividido entre instituições é meu dever, como Presidente da República, vir a público para dizer:

1. Nunca tive nenhuma intenção de agredir quaisquer dos Poderes. A harmonia entre eles não é vontade minha, mas determinação constitucional que todos, sem exceção, devem respeitar. 

MENTIRA!

2. Sei que boa parte dessas divergências decorrem de conflitos de entendimento acerca das decisões adotadas pelo Ministro Alexandre de Moraes no âmbito do inquérito das fake news. 

O Ministro Moraes não tem nenhum problema de entendimento.

3. Mas na vida pública as pessoas que exercem o poder, não têm o direito de “esticar a corda”, a ponto de prejudicar a vida dos brasileiros e sua economia. 

QUEM ESTICOU A CORDA É QUEM ASSINA ESTA NOTA.

4. Por isso quero declarar que minhas palavras, por vezes contundentes, decorreram do calor do momento e dos embates que sempre visaram o bem comum. 

MENTIRA! NUNCA VISARAM O BEM COMUM, só o interesse do próprio.

5. Em que pesem suas qualidades como jurista e professor, existem naturais divergências em algumas decisões do Ministro Alexandre de Moraes. 

Não adianta elogiar agora; pode dizer quais são as “naturais divergências”.

6. Sendo assim, essas questões devem ser resolvidas por medidas judiciais que serão tomadas de forma a assegurar a observância dos direitos e garantias fundamentais previstos no Art. 5º da Constituição Federal. 

É o que faz o Ministro Moraes.

7. Reitero meu respeito pelas instituições da República, forças motoras que ajudam a governar o país. 

MENTIRA! Não tem respeito nenhum.

8. Democracia é isso: Executivo, Legislativo e Judiciário trabalhando juntos em favor do povo e todos respeitando a Constituição. Até agora o autor da Nota não o fez.

9. Sempre estive disposto a manter diálogo permanente com os demais Poderes pela manutenção da harmonia e independência entre eles. 

MENTIRA!

10. Finalmente, quero registrar e agradecer o extraordinário apoio do povo brasileiro, com quem alinho meus princípios e valores, e conduzo os destinos do nosso Brasil

Essa mensagem se destina à sua tropa!

DEUS, PÁTRIA, FAMÍLIA

Jair Bolsonaro

Presidente da República federativa do Brasil

 

 

quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Oliveira Lima: lançamento do livro O Descobrimento do Brasil e outros Ensaios, organizado por André Heráclio do Rêgo

 No dia 13 de setembro de 2021, às 15h, a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM-USP) apresentará em seu canal no Youtube o evento de lançamento do livro:

O Descobrimento do Brasil e outros Ensaios

organizado por André Heráclio do Rêgo.

O livro é composto por sete textos quase inéditos do historiador e diplomata Manuel de Oliveira Lima. Os seus ensaios são valiosas fontes para aqueles que pretendem conhecer mais sobre a historiografia da formação do Brasil.

André Heráclito do Rêgo adiciona ao final de cada texto selecionado notas explicativas que fornecem ao leitor informações que contextualizam acontecimentos, datas e personagens abordados pelo historiador em seus textos originais.

A obra compõe a Coleção 3x22, um projeto da BBM que pretende difundir parte da produção acadêmica contemporânea, ao explorar novas temáticas e narrativas que trazem outros olhares a versões canônicas da História do país.

A mediação do lançamento será feita por Alexandre Moreli, vice-diretor da BBM e professor do Instituto de Relações Internacionais da USP. O evento pode ser acompanhado a partir do seguinte link: https://youtu.be/96tkN9hPGeY



 

Alocução no IHG-DF por ocasião da recepção de dois novos membros - Paulo Roberto de Almeida

 Alocução no IHG-DF por ocasião da recepção de dois novos membros: Rogerio Farias e Gustavo Bezerra 

 

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor; diretor de publicações do IHG-DF 

 

Caros colegas, confrades, amigos e familiares,

Estamos reunidos novamente, alguns de nós pela via virtual, para mais uma edição de um ritual que repetimos a algumas décadas, no nosso caso desde 1964, ou seja, há 57 anos. No caso da nossa instituição-mãe, o IHGB, ela está ativa desde 1838, há 183 anos portanto, sendo que sua revista é publicada desde 1839. Ambas as instituições se fundam nos mesmos princípios e valores e cada uma, ademais de congêneres nos estados, se empenham em uma nobre missão: efetuar a síntese histórica e geográfica sobre os mais importantes eventos, processos e fatos objetivos que, direta ou indiretamente, exerceram impacto sobre a vida da nação e sobre os itinerários de seus entes constitutivos. 

Desde que aqui ingressei, em meados de 2019, tendo como patrono o grande intelectual das letras jurídicas Tobias Barreto, tenho procurado convidar novos valores para o nosso convívio. Tenho feito isso de forma consciente e certo de que devemos buscar sempre insuflar nosso trabalho com a ajuda das novas gerações, que ou trazem novas pesquisas sobre assuntos ainda não, ou insuficientemente trabalhados, ou trazem novos olhares sobre velhos assuntos, que são os já conhecidos da história do Brasil ou da história e da geografia de Brasília, que já se tornou uma senhora sexagenária, mas ainda na sua adolescência como cidade. Este é o caso dos dois novos colegas que assumem hoje suas cadeiras: Rogério de Souza Farias e Gustavo Henrique Marques Bezerra.

Rogério eu conheço desde os bancos escolares, se ouso dizer, na verdade seu mestrado em História das Relações Internacionais, em 2007, sobre as negociações e os negociadores do Brasil no âmbito do Gatt, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, de 1947. Ao mestrado, seguiu-se um doutoramento ainda mais ambicioso, na mesma área, em 2012, ampliando seu olhar sobre como o Brasil se inseriu no sistema multilateral de comércio, o que lhe permitiu traçar uma cobertura completa sobre “A Palavra do Brasil” nesse sistema, que foi justamente o título da grande obra de referência documental que ele produziu e que foi acolhida na coleção de livros da Fundação Alexandre de Gusmão, e como tal disponibilizado em sua biblioteca online. Ele continuou pesquisando e produzindo inúmeros artigos e livros de forma incessante, como a biografia do grande negociador brasileiro no campo do comércio internacional, Edmundo Barbosa da Silva, no âmbito dos “secos e molhados”, que é como o Itamaraty de antigamente se referia à diplomacia econômica. Tivemos a oportunidade de trabalhar juntos nos escritos de relações internacionais e de política externa do grande chanceler Oswaldo Aranha, e mais recentemente ele editou as memórias de outro grande diplomata, Maurício Nabuco, filho do primeiro embaixador do Brasil durante a gestão Rio Branco à frente do Itamaraty. Ele agora está partindo para Lisboa, para acompanhar sua esposa, diplomata, assim como já havia feito anteriormente em Chicago, quando aproveitou para fazer um pós-doutorado na Universidade de Chicago. Tenho certeza de que em Portugal ele vai não só continuar seu trabalho de pesquisa em fontes primárias, assim como vai aprofundar relações institucionais e pessoais junto a colegas de estudos na área da historiografia.

Quanto a Gustavo Bezerra, antes de conhecê-lo pessoalmente, eu já tinha tomado conhecimento de dois trabalhos que ele produziu como resultado de sua passagem pelo Mestrado em Diplomacia do Instituto Rio Branco, publicados pela Funag: “Brasil-Cuba: relações político-diplomáticas no contexto da Guerra Fria (1959-1986)”, de 2010, e “Da revolução ao reatamento: a política externa brasileira e a questão cubana (1959-1986)”, de 2012. Mais recentemente ele conduziu uma pesquisa que deu origem a uma obra que pode ser considerada ciclópica, “O Livro Negro do Comunismo no Brasil: mitos e falácias sobre a história da esquerda brasileira”, publicado em 2019, e que já tivemos a oportunidade de apresentar aqui, numa das últimas sessões presenciais mantidas antes da pandemia, na companhia de nosso colega Hugo Studart, que também fez pesquisas sobre o comunismo brasileiro no período do regime militar, tendo produzido duas obras de referência nesse terreno, a última resultado de sua tese de doutoramento em História na UnB. Eu disse ciclópica em relação ao livro mais recente de Gustavo, pois que essa obra, retirando inspiração de obra quase homônima publicada na França, mais de duas décadas atrás, mas cobrindo quase todo o mundo (menos o Brasil), tinha sido composta por uma equipe inteira de pesquisadores e historiadores experientes. No caso do Gustavo, ele pesquisou e trabalhou solitariamente, conduzindo uma obra realmente magnifica de exploração de terrenos pouco devassados até aqui, a despeito de já existir muitos livros publicados sobre a trajetória do movimento comunista no Brasil. 

Estou absolutamente seguro de que ambos continuarão a produzir obras de referência nos próximos anos, engrandecendo o prestígio do IHG-DF, assim como a própria distinção pessoal de cada um deles no terreno que é geneticamente o nosso. Sobre seus patronos, não me estenderei sobre eles, pois que cabe a cada um buscar o que melhor caracteriza as figuras cujos nomes enfeitam suas respectivas cadeiras. Afonso Arinos de Melo Franco, grande prócer da política mineira, batalhador das lutas democráticas desde o Estado Novo, autor da primeira lei antirracista no Brasil, chanceler do Brasil na fase parlamentar, coordenador, como o pai em 1934, de uma comissão de estudos constitucionais que antecedeu nossa atual Carta Magna, em 1987, e apoiador da adoção do regime parlamentarista no país. Já Câmara Cascudo, do mesmo estado no nosso potiguar Gustavo Bezerra, nascido na mesma capital dos potiguares 76 anos antes, foi simplesmente o maior folclorista do Brasil, mas não apenas isso, pois foi historiador, como é o Gustavo, e, além disso, sociólogo, como eu sou, e, também, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, poeta, cronista, professor, advogado e jornalista. Um homem, portanto, de dez instrumentos, cujas obras são incontornáveis, sobretudo no campo das tradições populares brasileiras.

Meus cumprimentos aos nossos dois novos membros, e meus votos de continuado trabalho em suas áreas de especialização respectivas, que correspondem às suas vantagens comparativas ricardianas, que também vão se incorporar ao rico patrimônio do IHG-DF.

Muito obrigado.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 8 setembro 2021, 3 p.


terça-feira, 7 de setembro de 2021

China, uma síntese histórica- Carmen Licia Palazzo

 Dei essa palestra online para um grande número de estudantes. Coloco aqui o texto, deixando claro que o escrevi como apoio para uma apresentação oral seguida de debate, mas talvez interesse a alguns amigos. Já tratei do tema em outros textos que postei anteriormente, mas sempre acrescento algo mais. Foto minha de Suzhou, a cidade das sedas e dos jardins.


Uma breve síntese histórica para entender a China contemporânea

Carmen Lícia Palazzo

Apresentarei o que em geral apresento para meus alunos de História como uma aula introdutória sobre a China. Provavelmente quem leu meus artigos já está a par de muito do que eu vou falar aqui, mas acho que pode servir de base para depois desenvolver um diálogo a partir das perguntas de vocês.

Eu morei na China durante aproximadamente sete meses. Já havia estudado História da China anteriormente, com foco mais voltado para a Rota da Seda e o encontro de culturas. Atualmente trabalho em uma pesquisa sobre a arte na Rota da Seda, especialmente dos séculos VI ao XV, mas no caso da China eu me estendi mais no estudo da sua história. 


Durante vários anos fui professora no Curso de História do UniCeub aqui em Brasília e justamente depois de já ter tido um certo conhecimento teórico sobre aquela civilização, pois muitos consideram (e eu concordo com eles) a China mais uma civilização do que um país, é que eu tive a oportunidade de passar sete meses lá, com sede em Shanghai, mas viajando intensamente por grande parte do território, de norte a sul, desde o porto de Macau até não apenas Beijing mas também o corredor do Gansu  e o oásis de Dunhuang, na entrada dos desertos de Taklamakan e de Gobi.


Deixo claro que o meu enfoque é o de historiadora.

E eu considero que, para entender a China contemporânea é importante observar o que nós, historiadores, denominamos de mentalidades na longa duração. A modernidade na China não deve ser vista como uma ruptura porque ela traz consigo uma tradição de muitos milênios que é preciso ter em conta para o entendimento da sociedade chinesa e de como os chineses se veem.


A primeira consideração importante é a de que a China é a única civilização cuja escrita atual tem suas raízes em caracteres que datam de pelo menos 3.500 anos. O início para o qual existe testemunho material da escrita chinesa é aproximadamente o do ano 1.500 a.C. Os caracteres que receberam esta datação foram escritos em ossos de animais, em carapaças de tartarugas e no interior de objetos de bronze usados em diversos rituais e descobertos em escavações arqueológicas relativamente recentes, várias delas datando do século XIX. Tais objetos estão disponíveis em diversos museus chineses. Aliás a museologia é altamente desenvolvida na China e coleções magníficas podem ser encontradas em diversas cidades, em muitas regiões do país. Os chineses prezam contar sua História.


Diferente dos hieróglifos do Egito, os caracteres chineses atravessaram milênios, transformaram-se, mas vários deles mantiveram sua estrutura ou alguma referência com os de um distante passado. Os testemunhos das origens milenares da escrita estão justamente presentes em diversos museus e são motivo de orgulho também para as novas gerações. As crianças chinesas sabem que estão aprendendo uma caligrafia que tem origem nos seus mais remotos ancestrais e, apesar de toda a modernidade presente nas escolas,  escrever é uma arte que continua tendo considerável prestígio no país. 

Outro motivo de orgulho para os chineses diz respeito ao fato de que, embora o longevo império tenha enfrentado muitas invasões e, em duas oportunidades, tenha sido governado por etnias estrangeiras – os mongóis da dinastia Yuan (1271 até 1368) e os manchus, da dinastia Qing (1636 até 1911) – sempre prevaleceu a cultura e a escrita chinesas bem como a estrutura da administração largamente influenciada pelo Confucionismo. Dada a grande extensão territorial do império, a formação da burocracia, para o funcionamento do núcleo central da Corte e até as mais remotas províncias era uma preocupação constante. 

Desde muito cedo foram organizados concursos que selecionavam os candidatos mais capacitados para exercer diversas atividades como funcionários imperiais. Os primeiros concursos dos quais se têm registro datam do ano de 650. No entanto, sua implementação de maneira regular passou a ser realizada pela dinastia Song (960-1279), mais precisamente a partir do século X, mantendo-se de forma ininterrupta até sua extinção em 1905, no período final do império Qing, tendo durado portanto por quase dez séculos.


Com pequenas variações pontuais, o conteúdo dos concursos imperiais exigia o conhecimento aprofundado e a capacidade de interpretação de dois conjuntos de obras essenciais da cultura chinesa: os Quatro Livros e os Cinco Clássicos. Resumidamente pode-se dizer que os textos considerados como os mais importantes destas obras eram os Diálogos de Confúcio com seus estudantes (os Analectos), os escritos de Mêncio, um discípulo de Confúcio mas que desenvolvera algumas ideias próprias, os Anais com descrições históricas e o I Ching, ou Livro da Sabedoria. 

Considerando-se que os concursos só foram abolidos no início do século XX, pode-se constatar a importância do Confucionismo e da cultura clássica e sua permanência no universo mental da sociedade chinesa na longa duração. E como a aprovação nos diversos níveis dos concursos imperiais eram um significativo instrumento de ascensão social,  o estudo, os ensinamentos de Confúcio e os professores eram também muito valorizados, valorização esta que se tornou uma das características mais fortes da cultura da China. 


Na cidade de Jiading, próxima a Shanghai, há um interessante museu dos Concursos, nos quais há alguns modelos de provas e informações sobre os conteúdos. E, o que é uma curiosidade bem interessante: um colete com cola escrita nele e que foi apreendido de um candidato que tentava assim levar escrito uma parte dos conteúdos que deveriam ser decorados.

Um aspecto importante da civilização chinesa é a defesa da sua integridade territorial. Em épocas nas quais a Europa estava fragmentada em feudos a China já era uma monarquia absolutista preocupada com a defesa de suas fronteiras e com a manutenção de uma corte centralizada e imperial. Em alguns períodos houve reinos que combateram entre si, dentro do território de cultura chinesa, no entanto sempre emergiu dos períodos de lutas uma dinastia aglutinadora e forte. 


A construção da Grande Muralha, que foi realizada no decorrer de séculos, é emblemática da preocupação com a defesa territorial e, embora ela não tenha sido efetiva para deter todas as invasões, era afirmativa de um poder imperial que reinava sobre uma civilização unificada por diversas características culturais e entre elas por uma mesma escrita, ainda que existissem e ainda existam inúmeros dialetos. Nem sempre a dinastia governante era de origem chinesa, portanto “han”. A mais conhecida dinastia estrangeira que conquistou a China, ainda que adotando largamente a cultura chinesa, foi a dos mongóis. Kublai Khan, neto de Gengis Khan, chefe mongol que unificara diversas tribos do norte, fundou a dinastia Yuan, após conquistar a China. É a corte de Kublai Khan que  está relatada no famoso livro de Marco Polo. 

Crises no abastecimento agrícola e um grande descontentamento entre o mandarinato chinês, que era preterido em altos cargos pelos mongóis e até mesmo por outras nacionalidades, foram responsáveis, entre outros fatores, pela queda dos Yuan após quase um século no poder.  A ascensão de uma dinastia novamente de etnia chinesa que se autodenominou Ming, ocorreu em 1368 e foi um dos mais brilhantes períodos da arte da porcelana e da pintura na China.  Mas, em 1644, as constantes invasões de novas tribos do norte, que sempre cobiçavam o rico Império do Meio, levaram à desestabilização dos Ming, enfraquecidos, por sua vez, por novas crises econômicas e altos impostos. Os invasores manchus destronaram o imperador Ming em 1644 e assumiram o que viria a ser a derradeira dinastia, a dos Qing, antes da República. Foi um período de muitas realizações principalmente no reino de dois brilhantes imperadores, Kangxi e Qianlong.


Em seus relacionamentos com o exterior, a China teve fases muito distintas e isto influenciou bastante o seu desenvolvimento. Na Antiguidade e no início do que no Ocidente nós chamamos de Idade Média, o comércio de produtos chineses foi de longo alcance através de uma intensa movimentação de mercadores que, posteriormente, ficou conhecida como Rota da Seda. Através de estradas, caminhos e até mesmo oásis nos desertos, principalmente o de Taklamakan e o de Gobi, circularam caravanas nas quais estavam presentes também alguns peregrinos e aventureiros, mas formadas sobretudo por comerciantes que levavam até os portos do Mediterrâneo oriental e ocidental as manufaturas chinesas muito prezadas nas cortes europeias, entre elas as sedas e as lacas. Às mercadorias chinesas, somava-se também ao longo da Rota todo um comércio oriundo de outras partes da Ásia, como tapetes, perfumes e temperos.


Na movimentação da Rota da Seda, chegaram à China os primeiros muçulmanos. Recentemente têm ocupado o noticiário internacional os problemas que ocorrem entre o governo chinês e os muçulmanos uigures do Xinjiang. E aqui eu gostaria de explicar para vocês que não se trata, porém, do único grupo de praticantes do Islã na China, já que os de um grupo denominado Hui têm como ancestrais os mercadores persas e árabes que, desde provavelmente o século VIII não apenas circularam em território chinês nos caminhos da Rota da Seda, mas muitos ali se estabeleceram, casaram-se com mulheres chinesas e, com o passar dos séculos, adquiriram feições, hábitos e o idioma chinês. 

MAPA DOS UIGURES

Os Hui são considerados um grupo à parte dos chamados chineses Han pelo fato de serem muçulmanos, no entanto em suas feições e na maior parte de seus hábitos (excetuando-se o consumo de porco) pouco diferem dos chineses e são, algumas vezes,  denominados “chineses Hui”. Este grupo raramente se envolve nas questões que tornam tão complicada a convivência dos muçulmanos uigures com os chineses.

Os muçulmanos uigures, porém, são de etnia túrquica ou turcomena. Eles não tem feições chinesas, seu idioma é de origem turcomena. Os uigures não têm nenhuma relação étnico-linguística com os muçulmanos Hui e vivem na chamada Região Autônoma do Xinjiang Uigur, que já foi chamado não oficialmente de Turquestão Chinês. Trata-se de uma região que beira muitos conflitos, pois faz fronteira com a Mongólia, o Cazaquistão, o Quirguistão, o Tajiquistão, o Afeganistão e a Cachemira, disputada entre a Índia e o Paquistão. E, em uma pequena parte, a região faz fronteira também com a Rússia.

A Região Autônoma do Xinjiang Uigur abriga todo um leque de etnias: uigures, chineses, casaques, tajiques, russos e outros. No passado, esteve ligada a uma Confederação de Povos Nômades, porém durante muito tempo foi parte do império chinês até que, no século XIX, no rastro das reivindicações nacionalistas que eclodiam pelo mundo, viu surgir, no seu interior, as primeiras manifestações separatistas. Mais adiante, já no século XX, ocorreram atentados terroristas graves, matando chineses. Por outro lado, em 1980, os chineses apoiaram a luta dos talibãs contra os russos, permitindo, inclusive, que muçulmanos uigures fossem participar da guerra. Mais adiante, os talibãs retribuíram o apoio mas, na Região Autônoma do Xinjiang, apoiando os uigures em suas ações terroristas contra o governo chinês. 


Trata-se, portanto, de uma complicada questão de ordem política, mais do que religiosa, mas que ocasiona graves problemas regionais. Governos do Oriente Médio, mesmo muçulmanos, também não interferem na repressão chinesa aos uigures, pois não consideram que se trate de perseguição de caráter religioso, mas de uma questão política interna da China. O desinteresse dos sauditas pelos muçulmanos uigures levou a críticas bastante contundentes, no entanto não alterou em nada as relações da Arábia Saudita com a China. 

Durante grande parte do período imperial, os chineses sempre acolheram a diversidade religiosa, ainda que às vezes privilegiando mais os budistas ou mais os taoístas, mas tendo sempre Confúcio como o seu fundamento, já que era o confucionismo a  literatura clássica vinculada ao funcionamento da burocracia. No entanto, desde os tempos da Rota da Seda, foi frequente a presença não apenas de muçulmanos mas também de cristãos, principalmente nestorianos e de judeus, na China, com maior frequência nos grandes centros comerciais, como Suzhou, Hangzhou, Kaifeng, Xi’an, entre outros. 


Sobre a convivência dos chineses com o cristianismo, é interessante destacar a presença dos jesuítas nos tempos do Império. Esse é um capítulo muito rico e de encontros culturais importantes entre os europeus e o Oriente. Os missionários jesuítas, muito estimulados pela história de Francisco Xavier no Japão, dedicaram-se também às atividades de catequese no Império do Meio, porém ali tiveram uma experiência bastante distinta da japonesa, desenvolvendo um rico relacionamento com os letrados da Corte e algumas vezes diretamente com os próprios imperadores, entre os séculos XVI e XVIII. 


A entrada de ocidentais no interior da China era difícil, pois dependia de autorização do imperador. Entre os primeiros missionários jesuítas, destacaram-se os italianos Michele Ruggieri e Matteo Ricci. Ambos teceram excelentes relações com altos funcionários da Corte e, com habilidade, conseguiram permissão para deixar Macau, que era o enclave comercial português e porta de entrada no império para penetrar no interior do continente, onde estabeleceram missões em mais de uma cidade. 

No entanto, o mais importante foram os relacionamentos que Riccci desenvolveu com o mandarinato, aprendendo o idioma, ensinando muito do que tinha aprendido no Colégio Romano (atual universidade Gregoriana) para os chineses e, afinal, sendo reconhecido como um legítimo mandarim. Mais adiante, já no período da dinastia Qing, outros jesuítas cientistas chegaram a ocupar altos postos na Corte, dois deles, Ferdinand Verbiest e Adam Schall von Bell,  como diretores do Observatório Astronômico Imperial. Os jesuítas encantaram-se com o confucionismo, com a estrutura dos exames imperiais e escreveram relatos nos quais reconheciam a China como uma civilização com a qual era gratificante dialogar. 


A China, que havia estado na vanguarda de grandes avanços, como a invenção da bússola, do papel, dos juncos que navegavam com muita agilidade, no século XVIII começava a se fechar aos contatos com o exterior, restando apenas os jesuítas para fazer uma ponte entre a ciência ocidental, que já tinha progredido muito, e os letrados chineses, em geral muito conservadores e literários. Crescia entre o mandarinato a ideia de que o Império do Meio poderia ser autossuficiente e pouco dependeria do exterior. Os progressos na catequese não foram grandes e os padres jesuítas foram bastante criticados por outras ordens porque  acabaram atuando mais como cientistas do que como missionários. 

Os jesuítas europeus permaneceram na China até a extinção da Ordem, em 1773, muitas vezes contando com o apadrinhamento de grandes imperadores, como Kangxi e Qianlong, e seus relatos e as cartas que enviavam para a Europa foram responsáveis pela construção de uma imagem positiva do Império chinês no Ocidente e pela difusão da chamada moda das “chinoiseries”. O século XVIII foi importante também na introdução do chá chinês na Inglaterra (antes do chá que depois passou a ser cultivado na Índia) e na larga demanda pela porcelana e pelas lacas chinesas, principais produtos importados pelos europeus.

No entanto, a sensação de grande poder e de invulnerabilidade que, durante muitos séculos, foi uma característica do Império do Meio, independente de qual a dinastia que estivesse reinando, e mesmo de qual a etnia, foi se esvaindo no decorrer de todo o século XIX, ainda que a corte Qing não abrisse mão de grande luxo e de uma mão de ferro para governar as províncias. As mudanças que ocorriam no rastro da Revolução Industrial envolviam principalmente os processos de modernização da Europa, dos EUA e do Japão.


Os europeus entraram em uma fase de modernização acelerada, pois justamente a Revolução Industrial havia permitido importantes avanços na construção de navios, tanto da marinha de guerra quanto da mercante. A Companhia das Índias Orientais, uma companhia charter britânica, fazia a rota comercial da Índia e da China. Por outro lado, os chineses, que no século XVIII tinham se interessado pelo conhecimento científico dos jesuítas, foram deixando de lado os avanços navais por considerar que o império dificilmente seria atacado ou entraria em alguma guerra importante. Abrir mão da modernização da frota  chinesa foi um descuido que posteriormente custou muito caro para a dinastia Qing, então reinante.

No século XIX, havia um descompasso entre a modernização acelerada da Europa, que alavancava o imperialismo, e a China, cujo império enfrentava inúmeras dificuldades além da pressão das potências ocidentais para ceder na abertura de seus portos aos navios estrangeiros.  

Os problemas internos enfrentados pela dinastia manchu eram inúmeros, entre eles uma prolongada e grave crise alimentar, resultado de problemas climáticos com grandes enchentes e diques mal conservados, impostos cada vez mais altos cobrados dos agricultores e, entre os altos funcionários da Corte, um embate persistente entre os defensores da modernização do império e os conservadores, avessos a ideias vindas de fora que contrariassem as tradições chinesas.


A partir de 1850 houve um recrudescimento da crise econômica e os grandes imperadores como Kangxi e Qianlong, que apesar de serem de dinastia manchu, eram admirados pela população em geral, estavam no passado. Com imperadores menos carismáticos e também menos capacitados na gestão do Estado, os chineses elegeram a dinastia como culpada por todos os problemas e surgiram reações populares de caráter nacionalista pedindo a derrubada dos Qing.

Uma  das guerras internas mais trágicas de toda a história da China imperial e que causou milhões de mortos (há uma estimativa de 20 milhões de vítimas diretas ou indiretas da guerra) foi a chamada Revolta Taiping, que teve início no ano de 1851 e só terminou em 1864. O líder que deu início ao levante, Hong Xiu Quan, dizia-se cristão, mas fazia, em seus discursos, um amálgama do esoterismo taoísta e algumas referências ao cristianismo, que provavelmente havia aprendido de missionários estrangeiros, e se anunciava como filho de Deus e irmão mais jovem de Jesus. Apesar do desvairio de suas afirmações, conseguiu muitos adeptos porque pregava um mundo mais justo e melhores condições de vida para os camponeses que viviam em situação muito precária. 

A difícil derrota dos Taiping, após 14 anos de uma luta devastadora só ocorreu com a ajuda das potências ocidentais que, apesar de seu caráter imperialista, desejavam obter concessões da China, mas não a deposição da dinastia reinante. Um oficial americano, Frederick Ward , e um britânico, Charles Gordon, comandaram os soldados chineses na luta contra os revoltosos Taiping. 


O mandarinato, independente de ser do grupo conservador ou modernizante, também se posicionou contra a Revolta, que conseguiu apoio da parte mais pobre da população.

Neste clima de descontentamento e de violência ocorreram também duas guerras oriundas de agressões externas para extrair vantagens sobretudo comerciais do Império, as chamadas Guerras do Ópio, que podem também ser consideradas como dois episódios de uma mesma guerra. O vício dos chineses em ópio era antigo. Inicialmente usado pela medicina tradicional como medicamento para diversos males, seu consumo foi se tornando um hábito de sociedade, inclusive entre o mandarinato, transformando-se em um vício em larga escala, principalmente a partir do século XVIII. A produção interna atendia bem a demanda até o século XVII, mas com o aumento do consumo os comerciantes chineses passaram a importa-lo dos ingleses, que abasteciam seus navios na sua possessão indiana de Bengala, onde havia grandes plantações de papoula. 


A Companhia das Índias Orientais tinha o monopólio deste comércio e, da China, levava de volta em seus navios o muito apreciado chá chinês, altamente consumido na Grã Bretanha principalmente a partir do século XVIII. As transações entre os britânicos e chineses ocorriam no único porto então aberto para tal, que era o de Cantão (Guangzhou) e assim mesmo sob diversas restrições e intermediações de funcionários imperiais.

Como os chineses tinham pouco interesse em produtos europeus e consideravam que o Império produzia quase tudo o que eles necessitavam, a Balança Comercial entre ambos os países era deficitária para os britânicos e apenas a exportação ópio indiano poderia melhorar a situação.. No entanto, alguns imperadores tentaram frear o seu consumo não medicinal, considerando que o vício, alastrado inclusive entre altos funcionários da Corte, estava prejudicando o país. 

A partir de 1831 começaram a ser feitas tentativas firmes para reprimir o seu uso e, em 1839 teve início uma repressão muito dura e bem organizada em todo o Império. Um funcionário de confiança da Corte e que administrava o porto de Cantão ordenou, no mesmo ano de 1839, a apreensão de 20.000 caixas de ópio de Bengala ali desembarcadas e fez uma queima pública de todas elas. Tal apreensão e destruição de um produto desembarcado pela Companhia das Índias Orientais foi considerada uma afronta aos britânicos tendo início, então, aquela que ficou conhecida como Primeira Guerra do Ópio. A Grã-Bretanha enviou seus navios de guerra para fazer o bloqueio de diversos portos chineses. 


Como a China encontrava-se em grande desvantagem tecnológica em relação aos europeus e sobretudo a sua marinha nunca tinha se modernizado, já que os mandarins mais conservadores não acreditavam em algum possível ataque por mar, em 1842 os chineses foram derrotados e tiveram que assinar o Tratado de Nanjing, que seria o primeiro do que depois foi denominados “Tratados Desiguais”.  

Pelo Tratado de Nanjing ficava estabelecido que a China pagaria uma elevada indenização aos britânicos, cederia a eles Hong Kong e abriria mais quatro portos (Ningbo, Xangai, Xiamen e Fuzhou) além de Cantão, que antes da guerra era o único que recebia navios estrangeiros. Na verdade, essa abertura dos portos era o principal objetivo das potências ocidentais, demanda que se coadunava com as características do imperialismo do século XIX. E, abertos à Grã Bretanha, ficavam então os referidos portos abertos também às demais potências europeias e ao Japão.

Não havia, da parte dos europeus, nenhum interesse em derrubar a dinastia Qing, com a qual, em diversos aspectos, eles mantinham um relacionamento bastante amigável e lucrativo. O que existia era o desejo de abrir a China ao comércio internacional e aos investimentos estrangeiros, já que nenhum europeu esperava conquista-la ou integra-la às suas possessões, reconhecendo a especificidade chinesa, a força de um império milenar ainda que extremamente atingido por crises de vários tipos. 


Entre 1856 e 1860 ocorreu a que ficou conhecida como Segunda Guerra do Ópio, com características muito semelhantes à anterior, desencadeada em resposta a um episódio de vistoria chinesa ao navio Arrow e às atividades de sua tripulação. Na mesma ocasião, houve o assassinato de um missionário francês, o que fez com que a França decidisse entrar também na guerra, apoiando os britânicos. Nova derrota para a China, novo tratado desigual, desta vez o de Tientsin, com mais portos sendo abertos aos navios mercantes europeus e japoneses.

Entre as vantagens conseguidas pelos europeus no rastro das derrotas chinesas, estava, desde o final da primeira Guerra do Ópio, o estabelecimento de “concessões”, além da abertura dos portos. Nelas, os estrangeiros poderiam residir sem que ficassem sujeitos às leis chinesas, mantendo seus hábitos, suas escolas e toda uma estrutura administrativa como se fosse território internacional.  Entre os exemplos que ficaram mais conhecidos e que foram mais bem sucedidos estavam a concessão britânica de Xangai, que se manteve de 1845 até 1943, e a francesa na mesma cidade, entre 1849 e 1943. 

Ainda que as concessões tenham sido uma exigência dos vencedores da guerra,  muitos chineses consideraram-se beneficiários delas pois, em diversos casos, e em especial na de Xangai, ocorreu a criação de  novos empregos e, durante a Revolta Taiping, serviu de refúgio para muitos mandarins e outros chineses que temiam a barbárie dos revoltosos. O grande desenvolvimento cosmopolita de Xangai é atribuído, mesmo pelos chineses, à presença de ocidentais em diversas atividades na cidade.


O século XIX, todo ele, vai ser de muitos conflitos também internos e em geral envolvendo sempre dois grupos opostos da elite letrada, que se constituía no corpo de funcionários mais qualificado de toda a administração imperial. Tais grupos eram o dos conservadores e o dos adeptos de uma rápida modernização tanto da Economia quanto do sistema escolar, muito engessado em função do programa dos concursos imperiais, todo ele focado nos Clássicos chineses. Deste embate entre tradição estrita e modernização vai surgir uma nova revolta, que ficará conhecida como a Guerra dos Boxers ou dos Punhos Justiceiros.

Para entender a Guerra dos Boxers é importante conhecer o contexto no qual ela ocorreu. A província de Shandong, onde se iniciaram os confrontos, era um importante centro do Taoísmo, abrigando também muitos centros budistas e a cidade natal de Confúcio, Qufu. Era – e ainda é – uma  região de muitas memórias da civilização chinesa e na qual seus habitantes, principalmente aqueles ligados a atividades camponesas, tinham   algumas práticas esotéricas de raízes ancestrais. Nessa mesma região, como resultado dos Tratados Desiguais, o Império havia arrendado aos alemães a baía onde ficava a cidade de Qingdao, na qual também se instalaram alguns outros europeus, principalmente britânicos. Eram indivíduos ligados ao comércio ou missionários, que fundaram escolas na região. 

Os missionários eram bem vistos por parte da população, pois ensinavam novas técnicas em suas escolas e eram contrários à deformação dos pés das meninas, estendo as possibilidades de estudo também a elas.  Para os conservadores, no entanto, este ambiente de modernidade era considerado ofensivo às práticas ancestrais chinesas, especialmente arraigadas na província de Shandong.


Neste quadro, ao qual somava-se a crescente crise econômica e o empobrecimento dos camponeses, uma sociedade esotérica de cunho altamente nacionalista e messiânico que se denominava Punhos Justiceiros (conhecidos no Ocidente como Boxers) insuflou a população com discursos contra os estrangeiros, acusados de  perturbar os ancestrais com seus investimentos modernos, como a construção de estradas de ferro e do telégrafo. Aos missionários, acusavam de bruxaria e de assassinato de crianças para extrair seus órgãos para rituais religiosos. O nome Punhos Justiceiros devia-se a um tipo de luta que o grupo praticava e que era considerada “mágica”, impedindo que, em uma guerra, as balas dos opositores os atingissem.

A Corte manchu ficou em dúvida se os apoiava apenas para não arriscar novos levantes da população contra ela ou se ficava neutra em relação à revolta. Afinal, venceram os mandarins próximos ao imperador que o aconselharam a dar apoio aos Boxers, o que desencadeou nova guerra contra os europeus e os japoneses, já que as Legações em Beijing foram atacadas, violando-se assim o território dos diplomatas estrangeiros. A reação foi rápida, os europeus, os norte-americanos e os japoneses enviaram tropas, atacaram os Boxers e os derrotaram, numa guerra relativamente curta que durou entre 1899 e 1900. 

O imperador Guangxu e sua tia Cixi, conhecida como a Imperatriz Viúva e que era a verdadeira eminência parda do Império, tinham se refugiado em Xi’an durante o conflito, procurando não se envolver diretamente nele, mantendo uma atitude bastante dúbia já que principalmente ela tinha um relacionamento amigável com os diplomatas estrangeiros em Beijing. Os estrangeiros, por sua vez, embora sendo alvo dos ataques nacionalistas dos Boxers, também não pretendiam derrubar a dinastia Qing e então, com os Boxers derrotados em 1901, foi assinado um Protocolo através do qual eram extraídas, do governo chinês, altas indenizações. 

A China, a cada derrota, a cada guerra perdida, como havia sido  o caso nas duas Guerras do Ópio e na dos Boxers, via suas finanças severamente comprometidas com as indenizações, passava pela situação humilhante de se mostrar tecnologicamente fragilizada, com precárias condições de combate, tendo ainda que enfrentar o imperialismo japonês, que lhe havia subtraído a Coréia como Estado Tributário (no conflito de 1894-95). A tudo, somava-se o avanço dos russos, que cobiçavam parte do território chinês ao norte.


Nesse contexto terrivelmente conturbado da segunda metade do século XIX e até o início do século XX destacou-se, às vezes nos bastidores, mas também muitas vezes na linha de frente, a Imperatriz Viúva Cixi. Concubina do imperador Xianfeng, com a sua morte ainda muito jovem, em 1861, ela chegou ao poder por ser a mãe do único filho homem do imperador, alçado ao trono ainda criança. Cixi, junto com a esposa oficial de Xianfeng, Cian, assumiu a regência que depois passou a exercer sozinha tanto por suas manobras bem sucedidas quanto por um certo desinteresse de Cian. Desde que tomou as primeiras decisões políticas, Cixi nunca mais deixou o controle político do império. Com a morte do seu próprio filho colocou um sobrinho no trono, também criança e voltou a ser regente.

Há claras evidências de que foi com muita dificuldade que Cixi manteve o equilíbrio entre a valorização da milenar cultura chinesa que ela, mesmo sendo manchu, admirava, e a inevitável modernização, que entrava no império através dos europeus, dos norte-americanos e dos japoneses. Foi também Cixi que, antes de morrer, indicou aquele que seria o último imperador, Puyi.


De toda a movimentada história da China podem ser destacadas algumas considerações importantes: 

1. O confucionismo sempre permeou e continua permeando as mentalidades chinesas mesmo após a abolição dos concursos imperiais, pois ele continua sendo considerado um clássico da literatura e sobretudo da cultura chinesa.


2. A humilhação da derrota em diversos conflitos, com as potências impondo a abertura dos portos e sobretudo as pesadas indenizações, foi provavelmente o aspecto mais visível da decadência imperial; 


3. A manutenção da integridade territorial, apesar de todos os conflitos, o que permitiu que a China, mais adiante, pudesse se recuperar e recuperar seu orgulho. Sempre houve o entendimento, da parte do Ocidente, de que o Império do Meio não seria conquistado e nem mesmo se constituiria em algum tipo de protetorado, ainda que tenha ocorrido um considerável avanço de caráter imperialista em mais de uma oportunidade.

A integridade civilizacional da China nunca esteve sob ameaça e, pelo contrário, os estrangeiros sempre demonstraram certo fascínio pelo que lá encontravam em matéria de arte e de filosofia. Por outro lado, os embates internos entre mandarins conservadores e modernizantes foram uma parte importante dos problemas enfrentados pelos imperadores e pela imperatriz Cixi. Os letrados confucionistas custaram muito a entender que o programa dos exames imperiais, calcado em estudos puramente literários, não preparava os candidatos e futuros funcionários para a realidade do mundo nos séculos XIX e XX, mas em 1905, antes mesmo da vitória dos republicanos, os exames foram extintos. 

Os missionários protestantes tiveram um papel relevante na modernização de certos setores da China ainda durante o tempo do império, principalmente na introdução de novas tecnologias e da medicina ocidental. Houve um intercâmbio importante entre as técnicas da medicina tradicional chinesa e a medicina praticada nos EUA, por exemplo. 


Voltando ao tema da passagem do império para a república, sem uma personalidade forte para comandar o Império com a morte de Cixi, em 1908, e sem que o alto mandarinato tivesse conseguido se articular em torno de um projeto de monarquia constitucional que já tinha começado a ser esboçado, mas que nunca, efetivamente, foi levado adiante, os defensores da República conseguiram ganhar muitos adeptos. 

A vitória da Revolução Republicana, sob a liderança de Sun Yat-Sen foi reconhecida sem maiores traumas já em 1911 e, em fevereiro de 1912, Puyi, o último imperador, ainda uma criança de seis anos de idade, abdicou do trono. Os republicanos venceram fazendo apelo ao fato de que o império era governado por uma dinastia estrangeira, de origem manchu, mostrando a corrupção que era endêmica na estrutura do mandarinato, mas também pelos altos impostos cobrados principalmente dos camponeses. O discurso nacionalista apontando igualmente para a influência das grandes potências estrangeiras fortaleceu a criação do Guomintang, partido centralizador, pouco democrático, mas extremamente nacionalista, que apelava para a restauração do orgulho chinês. 


Tanto Sun Yat-Sen quanto Chiang Kai-Shek eram populistas e nacionalistas e casados cada um deles com uma das filhas de uma família da elite na China, a família Soong, cujo apoio foi importante na escolha de quadros republicanos. Depois que Chiang ordenou o massacre de milhares de comunistas que ele desejava expurgar do Kuomintang/Guuomindang, porém, a então viúva de Sun, Ching Ling (Soong) rompeu com a família que se posicionou ao lado de Chiang. O rompimento foi permanente e essa é uma história que por si só vale outra palestra...


 Até a emergência de Mao e a implementação do socialismo na China, as grandes famílias tradicionais estiveram no controle da República. Já a ideia de hierarquia, de centralização das decisões políticas permaneceu na passagem do Império para a República, da mesma maneira que permanecerá também durante e depois de Mao. E, na verdade, até hoje.


Concluindo esta breve apresentação sobre a história da China, eu gostaria de destacar alguns pontos que considero importantes para entender o presente. O primeiro deles é justamente o de que a força da hierarquia, que tinha raízes milenares com as lições de Confúcio, se mantém como regra até os dias atuais. Houve um hiato de banimento da literatura Clássica e do Confucionismo em particular e este hiato foi durante o curto espaço de tempo da Revolução Cultural (1966-1976). Pois bem, não por acaso, os mentores da Revolução Cultural recrutaram para a temível Guarda Vermelha, jovens de 12 a 18 anos de idade, mas a maior parte deles entre 12 e 16 anos, a idade da rebeldia. 


A ideia era erradicar por completo as ideias confucionistas e mesmo a influência dos pais, convencendo os jovens de que os novos tempos pediam novas lideranças que não fossem intelectualizadas. Foram fechadas escolas e universidades e os livros Clássicos jogados no lixo. Adolescentes entre 12 e 16 anos encarregaram-se desse tipo de faxina para erradicar a cultura Clássica. No entanto, em uma cultura como a chinesa, tal disparate não poderia durar muito e a Revolução Cultural foi um hiato na longa duração da história da China.

A valorização do estudo e dos mestres atravessou os anos mais conturbados de guerras e de revoltas e, excluindo-se o período da Revolução Cultural, manteve-se firme em toda a China. Atualmente, mesmo com a espantosa modernização do país é muito claro o incentivo dado a pesquisas arqueológicas que trazem à tona uma história muito antiga. Quem visita o país encanta-se com a qualidade dos seus museus, repletos de objetos de muitas épocas passadas e para os quais há informações de muito boa qualidade.


Xi Jinping na minha opinião não deve ser entendido como um ditador nos moldes ocidentais. Embora trate-se de um líder autoritário, configura-se mais como um autocrata com características imperiais, quem sabe um déspota esclarecido, do que um ditador moderno como nós já tivemos a experiência na Europa e na América Latina. Trata-se de um homem culto, oriundo de uma família admiradora de Confúcio e cujo pai sofreu nas mãos da Guarda Vermelha. A China nunca foi uma monarquia constitucional. De um Império fortemente centralizador, claramente absolutista, ela passou para uma República com líderes pouco democráticos, com Sun Yat-Sen, Yuan Shikai, Chiang-Kai Shek e depois Mao. 

A prática religiosa não é proibida na China desde que os líderes de cada grupo não façam intervenção na política e nem se manifestem, em seus púlpitos, em assuntos não religiosos. Não há nenhuma restrição para falar de Buda, de Lao Tse, de Jesus  ou de Maomé dentro de cada grupo no entanto todos devem se ater a questões teológicas e não de comportamento ou estrutura da sociedade. Os chineses são muito supersticiosos, eles mantém seus cultos aos ancestrais, seus talismãs e diversas formas de espiritualidade, na China, convivem com o pensamento marxista, que aliás atualmente é bastante diluído e diz respeito apenas à importância de um partido único e da liderança de uma personalidade forte para desenvolver o país. Budistas tibetanos lamaístas e muçulmanos uigures são reprimidos por questões territoriais e não teológicas.


A reaproximação da China com os EUA vai se dar em 1971, quando Henry Kissinger se encontra com Zhou en Lai, Kissinger que vai ser Secretário de Estado de Nixon e depois de Ford, de 1973 a 1977. O encontro oficial de Mao com Nixon, preparado habilmente por Kissinger vai se dar em fevereiro de 1972. E o fim do envolvimento dos EUA com a Guerra do Vietnã, que era um problema no relacionamento com a China, vai se dar entre 1973 e 1975. Dali para a frente justamente a relação entre as duas potências, China e EUA vai ter várias fases e aí se pode acompanhar os acontecimentos em relatos de História Contemporânea.

Eu vejo como pequena a possibilidade de democratização da China em moldes ocidentais, porque são pelo menos cinco mil anos de uma história de centralização do poder, mas também porque atualmente a modernização do país tem sido favorável  às pessoas comuns, ao povo em geral. Os governos de Hu Jintao e agora de Xi Jinping não são excludentes, eles apostaram e apostam na inclusão dos chineses, com grande ênfase na inclusão pela educação, pela modernidade. 

É esse esforço de inclusão que faz toda a diferença para que, apesar de todo o seu autoritarismo, o governo tenha um considerável apoio popular. Não estou defendendo a autocracia contra a democracia, apenas tentando entender o contexto político do país sem enxergá-lo com as lentes de quem está de fora. E sem considerar que as mesmas soluções e modelos políticos possam ser aplicados a todas as sociedades de maneira indiscriminada.


No entanto, é importante considerar que o atual governo do Xi Jinping é muito mais centralizador e mesmo controlador do que foi o do seu antecessor Hu Jintao.  Segundo alguns observadores na própria China, ele estaria sendo muito bem sucedido na melhoria das condições de vida da população e, para tal,  deixaria as colocações de abertura política para bem mais adiante, depois que tivesse havido um avanço econômico interno maior. Claro que isso pode dar errado, mas não há consenso sobre se haverá ou não algum levante da população  como ocorreu em 1989. O fato de que as condições de habitação melhoraram muito e houve também avanço na renda dos chineses faz com que a maioria se desinteresse por política. Outro dado interessante é que os chineses podem viajar para o exterior praticamente sem restrições. O governo chinês não fechou suas fronteiras, a China não é uma Cuba e muito menos o que foi a União Soviética. Tudo isso torna as nossas previsões muito frágeis. Eu não me aventura a dizer o que vai ocorrer nos próximos anos." Carmen Lícia Palazzo.