O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida.

quarta-feira, 6 de março de 2024

O perigoso excesso de poupança da China - Martin Wolf (Valor Econômico)

Desde os anos 2000, jornalistas e economistas previram muitas crises, bolhas e fracassos da economia chinesa, que nunca ocorreram. Será mais um anúncio exagerado? (PRA)

O perigoso excesso de poupança da China 

Pequim deve ousar escolher remédios radicais

Martin Wolf*


Valor Econômico, quarta-feira, 6 de março de 2024


China é a superpotência global da poupança. No passado, em uma economia em rápido crescimento com oportunidades de investimento excelentes, suas altas poupanças foram um grande ativo. Mas também podem causar grandes dores de cabeça.

Hoje, com o fim do boom imobiliário, gerenciá-las se tornou um desafio. O governo chinês deve ousar escolher remédios relativamente radicais.

De acordo com o FMI, a China gerou 28% da poupança global total em 2023. Apenas um pouco menos do que a participação de 33% dos EUA e da UE combinados. Isso é bastante extraordinário.

Também tem várias implicações. Uma delas é que se a China fosse uma economia de mercado aberto, seus mercados de capitais seriam os maiores do mundo. Outra é que a forma como essa poupança é gerenciada provavelmente será o determinante mais importante das taxas de juros globais e do balanço de pagamentos globais.

Analisei esses desafios subjacentes em uma coluna em setembro. Uma visita recente à China confirmou tanto a importância desse problema quanto a aparente falta de vontade do governo em fazer mudanças decisivas na estrutura de renda e gastos. Portanto, é muito provável que a China continue a ter uma propensão extremamente alta para poupar.

Mas isso não se deve principalmente à frugalidade das famílias chinesas, como muitos pressupõem. Ainda mais importante é a baixa participação das famílias na renda nacional.

Em outras palavras, como Michael Pettis da Guanghua School of Management da Universidade de Pequim frequentemente argumentou, as poupanças da China são em grande parte uma questão de distribuição. Isso pode ser o motivo pelo qual é difícil que reduzam e, portanto, a taxa de poupança permaneça acima de 40% do PIB.

Se a demanda deve corresponder à oferta potencial em tal economia, a soma do investimento doméstico com o superávit em conta corrente deve corresponder às poupanças desejadas.

Se não corresponderem, o ajuste funcionará por meio de atividade econômica fraca —ou seja, uma recessão ou até mesmo uma depressão. Isso é "estagnação secular".

Com poupanças tão altas quanto as da China, é difícil evitar isso. Fazer isso exigiu um enorme superávit em conta corrente antes da crise financeira global de 2008 e, posteriormente, o boom imobiliário alimentado pela dívida do país.

Este último aparentemente acabou. Então, o que vem a seguir? Um curso natural seria a taxa de investimento cair significativamente.

É altamente improvável que a taxa de investimento economicamente lucrativa possa permanecer acima de 40% do PIB em uma economia cuja taxa de crescimento potencial diminuiu pela metade nos últimos 15 anos, no mínimo. Isso não faz sentido. O boom imobiliário mascarou essa realidade. Agora ela está aqui.

Se a taxa de poupança permanecer onde está e a taxa de investimento cair, a "solução" será então um aumento no superávit em conta corrente à medida que as poupanças fluem para o exterior. Os dados oficiais ainda não mostram isso. Mas há dúvidas sobre isso.

Brad Setser do Council on Foreign Relations argumenta que o superávit pode ser o dobro do que os dados oficiais mostram, em 4% do PIB.

Uma razão para seu ajuste para cima são as lacunas não explicadas entre o superávit comercial nos dados aduaneiros e no balanço de pagamentos. Outra é que o aumento das taxas de juros mundiais não está aparecendo no rendimento líquido de ativos estrangeiros.

Um superávit em conta corrente de 4% do PIB não parece grande pelos padrões passados da China. Mas, desde 2007, quando o superávit em conta corrente da China atingiu o pico de 10% do PIB, sua participação na economia mundial (a preços de mercado, que é o que importa aqui) saltou de 6 para 17%.

Portanto, do ponto de vista do resto do mundo, um superávit chinês de 4% do PIB é muito maior do que um de 10% em 2007.

Quem vai administrar os déficits compensatórios? Quem, em particular, os administrará quando o aumento concomitante das exportações for impulsionado pelo investimento em manufaturas competitivas, como veículos elétricos?

A resposta não são países ricos e boa classificação de crédito: eles verão isso como políticas de "cada um por si". O mesmo certamente será verdade para grandes economias emergentes, como a Índia.

Se a China quiser a solução mercantilista para o excesso de poupança, terá que financiar países emergentes e em desenvolvimento menores. Pode fingir que são empréstimos.

Mas grande parte do dinheiro será doações, após o fato. Se acabar financiando energia renovável fora, isso pode ser bom para o mundo. Mas, do ponto de vista da China, seria um presente caro.

Do ponto de vista econômico, uma solução mercantilista simplesmente não funcionará. A China é grande demais para tentar algo assim. Portanto, novamente, se a taxa de poupança permanecer tão alta, a China precisa compensar a queda inevitável na taxa de investimento em propriedades com algo mais.

O que poderia ser isso e como poderia acontecer? Uma solução óbvia e desejável, que de fato já está acontecendo, é uma enorme expansão nos investimentos em energia renovável. Os benefícios para a transição energética global seriam enormes.

A questão é quão grande esse investimento poderia ser e por quanto tempo duraria. Outra possibilidade é um investimento ainda maior na indústria. Mas isso esbarrará nos limites já discutidos nos mercados no exterior.

Como Sherlock Holmes disse: "Uma vez eliminado o impossível, o que resta, por mais improvável que pareça, deve ser a verdade."

Dada a dimensão da China, seu estágio de desenvolvimento e poupança excessiva, uma parte essencial de qualquer estratégia para estabilidade macroeconômica deve ser um salto no consumo privado e público como parte do PIB.

Além disso, dadas as dificuldades financeiras dos governos locais, isso também significará um papel maior para os gastos do governo central.

A China precisa de uma nova estratégia macroeconômica. Não se trata de outro "estímulo". Trata-se de mudar a distribuição de renda e gastos. A liderança não quer fazer isso. Mas os eventos forçarão sua mão no fim das contas.

*Comentarista-chefe de economia no Financial Times, doutor em economia pela London School of Economics


Taxação dos super ricos? Podem até fazer, mas não vai servir para quase nada - Entrevista com o economista francês Gabriel Zucman

Comentário preliminar de Maurício David, economista, ex-funcionário do BNDES: 

 Citação do dia sobre a proposta (demagógica e utilizada oportunisticamente pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad como cortina de fumaça pelas críticas dentro do próprio PT e até pelo ex-candidato presidencial e Vice-presidente do PDT Ciro Gomes sobre a política econômica do governo Lula) :

“Não tem a mais remota possibilidade de prosperar”.

O ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel foi taxativo com relação à proposta  apresentada pelo economista francês Gabriel Zucman e endossada pelo ministro da Fazenda Fernando Haddad usando de certa demagogia como forma de atenuar as críticas que êle Haddad vem recebendo de setores da esquerda do próprio PT : “Não tem a mais remota possibilidade de prosperar”.

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-


segunda-feira, 4 de março de 2024

Entrevista | Gabriel Zucman: Taxar ricos pode funcionar mesmo sem consenso 


Por Marcelo Osakabe / Valor Econômico

Cobrança de 2% sobre fortunas pode render R$ 250 bilhões, estima economista francês

Um imposto global sobre os bilionários pode ser efetivo mesmo que não exista consenso global sobre o tema. Essa é a aposta do economista francês Gabriel Zucman, diretor do Observatório Fiscal da União Europeia, para quem mesmo a ausência dos Estados Unidos, país que abriga perto de um terço dos cerca de 2,7 mil bilionários do mundo, não impede que o novo tributo seja eficiente.

Convidado pelo governo brasileiro para apresentar sua proposta de taxar as grandes fortunas globais em 2% aos ministros de finanças e presidentes de bancos centrais do G20, na semana passada, Zucman estima que a medida pode render US$ 250 bilhões por ano, metade do que se estima que as nações desenvolvidas precisarão para enfrentar mudanças climáticas.

A proposta chega ao G20 em um momento em que os “dois pilares” propostos pela OCDE para combater a evasão tributária global, que envolvem o imposto corporativo mínimo sobre multinacionais de 15% e o imposto sobre serviços e produtos digitais, sofrem revezes e questionamentos. O economista não vê perigo em sobrepor as agendas e argumenta não ser necessário que a grande maioria adote o imposto para que ele seja efetivo. “Basta que um número suficiente de países implemente a regra, e acredito que já chegamos a ele”, diz, em entrevista ao Valor.

Aos 37 anos, o francês se firmou como uma das vozes que advogam contra a crescente concentração de riqueza global — em sua avaliação, um dos fatores por trás não apenas de crises econômicas, mas também do enfraquecimento dos regimes democráticos. Protegido de Thomas Piketty, com quem colaborou em alguns trabalhos, inclusive o famoso “O Capital no Século XXI”, ele também ganhou fama por usar uma vasta gama de dados, incluindo vazamentos como os “Panama Papers”, para elucidar os caminhos pelos quais grandes corporações transnacionais e bilionários se esquivam dos fiscos.

Com dados, ele mostra, por exemplo, que a adoção de mecanismos de compartilhamento automático de informações bancárias entre países reduziu a evasão tributária de grandes em empresas a um terço do que era dez anos atrás. Apesar disso, a perda de receita tributária devido a essas práticas apenas deixou de crescer, estagnando em cerca de 10% do total declarado em imposto corporativo no mundo todo.

Sobre os 2.756 bilionários encontrados em sua pesquisa — dos quais 105 habitam a América Latina —, Zucman mostrou que o planejamento tributário permite que a imposto efetivo pago por essa elite caia a uma faixa entre zero e 0,5%. É sobre esse grupo que o imposto global pretende cair, ao menos num primeiro momento, diz.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

Como foi a abordagem do governo brasileiro para que participasse do G20?

Gabriel Zucman: Ao assumir a presidência do G20, o Brasil queria tornar a desigualdade e a progressividade fiscal prioridades na agenda. Nos contactaram para saber se estaríamos interessados em trabalhar em conjunto para avançar com ideias ambiciosas, olhando o futuro da cooperação tributária internacional e a luta comum contra a desigualdade.

Depois dessa apresentação, continuarão a trabalhar juntos?

Zucman: Sim. A presidência do G20 nos encarregou de elaborar um relatório sobre aspectos práticos de imposto mínimo coordenado sobre super-ricos, bem como resumir estudos existentes e simular diferentes planos possíveis para esse tributo. Vamos começar a trabalhar nesse relatório imediatamente e a ideia é entregar o resultado nos próximos meses, durante a chefia do Brasil no G20.

Como foi a aceitação da proposta no encontro?

Zucman: Duas coisas me chamaram a atenção. Uma é o número de países — alguns muito importantes — que disseram apoiar fortemente a proposta, como Brasil e França. A [secretária do Tesouro dos EUA, Janet] Yellen afirmou que existe algo parecido, embora não tenha sido aprovado. A segunda é que muitos outros países expressaram apoio à proposta de criar novos acordos internacionais focados na questão da progressividade fiscal, tributação dos ricos e combate à desigualdade. O Brasil foi especialmente elogiado por colocar essas questões na agenda do G20. É preciso deixar claro também que as discussões estão em um estágio muito inicial, começaram, literalmente, esta semana [passada]. Há necessidade de uma discussão internacional inclusiva, para aprofundar detalhes.

Por que 2%?

Zucman: Decidimos por propor 2% apenas para ter um ponto de partida para o debate. Ele pode ser considerado baixo, já que muitos países cobram mais de seus ricos. Ao mesmo tempo, o fato é que o planejamento tributário faz com que a carga efetiva seja menor em muitos casos. Por isso, uma taxa de 2% já faria diferença se levarmos em consideração a regressividade efetiva dos nossos sistemas tributários atuais. Com 2%, você pode compensar muito ou, em alguns países, toda essa regressividade. Claro, não é suficiente para tornar o sistema tributário global progressivo. Mas isto também é algo a debater. Existem bons argumentos para adotar taxas mais altas.

Que outros aspectos importantes precisam ser definidos?

Zucman: O destino das receitas é algo em aberto. É preciso uma necessidade discussão internacional e inclusiva. Basicamente, há duas maneiras de abordar isso. Uma é pensar que uma determinada pessoa que construiu uma enorme fortuna vivendo em um país por 60, 70 anos, se beneficiou dos e serviços públicos desse país. Por isso, seria legítimo que ao menos parte dessa arrecadação fique nesse mesmo país. Outra linha argumenta que bilionários acumulam riqueza na forma de participações em empresas que tem negócios em todo o mundo, emitem carbono e contribuem para a mudança climática. Sob essa perspectiva, você pode favorecer uma distribuição muito mais ampla das receitas entre os países. Mesmo a barra sobre os cerca de 3 mil bilionários pode ser baixada. Em um primeiro estágio, é conveniente focar nesse grupo porque ele é pequeno e sua riqueza é relativamente fácil de mensurar.

Os dois pilares do tributo mínimo global estão sob forte desconfiança. Não existe risco de perder o foco e acabar prejudicando outras medidas em implementação?

Zucman: Houve um progresso importante nos últimos anos. O Pilar 2 está sendo implementado em cerca de 35 países neste ano e poderá alcançar muitos dos 140 países que assinaram o acordo da OCDE adiante. Talvez alguns deles não ratifiquem o acordo, como é o caso dos EUA no momento. Mas isto não é problema. Você não precisa, necessariamente, de implementação global para o imposto mínimo. O texto do imposto contém um princípio muito importante, o de que países participantes terão direito de tributar multinacionais localizadas em nações que não ratificaram o acordo, para assegurar que a tributação alcance esses 15%. Basta que um número suficiente de países implemente a regra, e acredito que já chegamos a ele. A mesma lógica pode ser aplicada aos super-ricos.

Os mecanismos em implementação têm tido problemas também, como o fato de que empresas continuam migrando seus lucros para pagarem menos impostos e também de que estão sendo criados novas brechas, às vezes dentro da própria sistema tributário doméstico. Como combater essa tendência?

Zucman: O que acredito que está faltando é, na essência, uma debate mais aberto sobre essas políticas. São detalhes que vêm sendo discutidos em fóruns altamente técnicos, pouco inclusivos, e isso abriu as portas para brechas e isenções aparecerem. Mas é possível corrigir isso e vejo alguns caminhos. A alíquota de 15%, é claramente muito baixa. A maioria dos países tem alíquotas bastante baixas, mas é difícil argumentar por que empresas multinacionais deveriam ser autorizadas a pagar muito menos que firmas pequenas ou médias. Existe um problema com isenções concedidas, que muitas vezes fazem com que a taxa efetiva acabe menor que 15%. Outro problema diz respeito ao tratamento dos créditos tributários para a pesquisa e desenvolvimento. Algumas vezes isto não é entendido como redução da carga tributária, mesmo que economicamente seja algo equivalente.

Me parece que está advogando por uma espécie de governança global sobre o tema.

Zucman: Eu acredito, de fato, que é precisamos de novos acordos tributários em âmbito multilateral. A forma como a globalização foi regulada na década de 1980 simplesmente não funcionou. Muito se falou sobre mobilidade de capitais e de comércio, mas houve silêncio em relação ao tratamento ou a necessidade de progressividade tributária. E digo que não funcionou porque ajudou a fomentar a desigualdade global.

O retrocesso da globalização, uma fragmentação maior do mundo, não torna a implementação destas propostas mais difícil?

Zucman: Não acredito que este ambiente seja mais desafiador que no passado. O que realmente importa é ter vontade política de alguns países, uma “coalizão de dispostos”. A razão pela qual acredito que isto é possível é que existe uma demanda popular avassaladora por tais políticas praticamente em quase todos os países. No Brasil, nos Estados Unidos ou na França, se você perguntar se as pessoas acreditam que seus ricos pagam impostos o suficiente, a grande maioria dirá que não. Vejo apoio maciço nesta direção, e o fato de que não é preciso unanimidade joga nessa direção. Nem EUA nem China ratificaram o imposto mínimo sobre multinacionais, mas ainda assim ele está caminhando. Claro que a política pode interferir. O governo de Joe Biden é mais simpático à proposta. Se Trump ganhar, claramente isso mudará. Mas, novamente, a ausência dos EUA não é motivo para inação.

.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-.-

terça-feira, 5 de março de 2024

O drama da Ucrânia e a arma econômica das sanções - Paulo Roberto de Almeida (Portal da revista Interesse Nacional)

Segunda parte de um grande artigo sobre as sanções econômicas, com referência à guerra da Ucrânia e à posição do Brasil nesse conflito. 

O drama da Ucrânia parte 2 – A arma econômica como arma de guerra

Paulo Roberto de Almeida

Portal da revista Interesse Nacional (5/03/2024); segunda parte do artigo: 

A primeira parte foi publicada na semana passada (27/02/2024), neste link: 

Na próxima semana será publicada a terceira e última parte.


A arma econômica como arma de guerra: as sanções nas frentes de combate

A Alemanha esteve no centro de sangrentos conflitos no coração da Europa, desde a guerra franco-prussiana de 1870 até a “segunda Guerra de Trinta Anos”, entre 1914 e 1945, que retirou a Europa do centro do mundo – que ela comandou praticamente desde a era dos descobrimentos, e mais exatamente desde a primeira revolução industrial – e que criou uma nova geopolítica mundial, uma bipolaridade entre os Estados Unidos e a Rússia, antecipada no século XIX por ninguém menos do que Tocqueville (Almeida, 2009). A Rússia, bem antes dos EUA, já intervinha nos assuntos asiáticos, nas franjas do Império Otomano ao sul, nos Balcãs e também no coração da Europa, do Elba até o Danúbio e nas partes geladas do Norte. A potência americana só aparece, de fato, bem depois da guerra civil, com a industrialização maciça ao norte e a rápida mecanização da agricultura nas planícies centrais. Seu début nos assuntos mundiais se dá na guerra hispano-americana de 1898 – quando Puerto Rico, Cuba e Filipinas passam ao seu controle –, quando uma nova praça financeira, Nova York, passa a oferecer capitais que anteriormente partiam majoritariamente da City londrina, e, mais concretamente, em 1917, quando os boys chegaram aos campos de batalha da França, e foram determinantes, com os ingleses e os próprios franceses, obviamente, na derrota do Império alemão, que se estiolou na frente ocidental, sem nunca ter perdido na frente do leste. 

Na verdade, o Reich pode ter sido levado ao armistício, em novembro de 1918, não tanto pela sorte dos soldados nas trincheiras da França, mas bem mais pelo peso das sanções econômicas que foram decisivas no seu enfraquecimento, dada a falta de combustíveis e insumos em geral, e sobretudo pela fome do povo alemão, isolado do resto do mundo pelo cerco das canhoneiras inglesas. O presidente Woodrow Wilson, que fez campanha em 1916 para sua reeleição, prometendo aos americanos que manteria os Estados Unidos fora da guerra europeia, teve de entrar no conflito devido ao afundamento de barcos comerciais e de passageiros americanos pela campanha submarina do Império Alemão, e a partir daí passou a propor formas de se estabelecer um armistício ou a cessação de hostilidades. Uma das “armas” de que dispunha para essa finalidade era a “arma econômica” das sanções, por ele descritas, no documento que apoiou seu projeto de paz mediante uma organização dedicada à sua defesa, no contexto das negociações de paz de Paris, em 1919. Um historiador descreveu a mobilização dessa arma da seguinte forma: 

That instrument was sanctions, described in 1919 by U.S. president Woodrow Wilson as ‘something more tremendous than war’: the threat was ‘an absolute isolation… that brings a nation to its senses just as suffocation removes from a individual all inclinations to fight… Apply this economic, peaceful, silent, deadly remedy and there will be no need for force. It is a terrible remedy. It does not cost a life outside the nation boycotted, but it brings a pressure upon that nation which, in my judgment, no modern nation could resist’. (Mulder, 2022; “Introduction: Something More Tremendous Than War”; Kindle edition)[1]

 

De fato, como informa Mulder, o bloqueio dos Impérios centrais e do Império Otomano na Grande Guerra, pelas forças navais da Grã-Bretanha e da França, levou centenas de milhares de pessoas à morte por fome e enfermidades. Como explica ainda o mesmo historiador, “As sanções mudaram a fronteira entre a guerra e a paz, produziram novos meios de mapear e manipular o tecido da economia mundial, mudaram a concepção do liberalismo sobre a coerção e alteraram o itinerário do Direito Internacional” (idem). Na verdade, o uso de sanções econômicas e mesmo o bloqueio naval completo não era novo na história dos conflitos internacionais. Um dos primeiros exemplos históricos de sanções econômicas está relatado na história da guerra do Peloponeso, por Tucídides: ele se refere ao banimento de mercadores da cidade-porto de Megara de comerciar com Atenas, em 432 AC, o que foi um dos vários exemplos de iniciativas infelizes da cidade-Estado democrática que lhe acarretou reveses diplomáticos que contribuíram para a vitória final de Esparta naquela longa guerra.

Na era moderna e contemporânea, entre outras oportunidades, sanções econômicas foram aplicadas, por exemplo, nas guerras napoleônicas. Depois da paz de Amiens, em 1802, uma pequena trégua nas lutas entre Napoleão e as monarquias europeias, a luta retomou em diversas frentes, inclusive na esfera naval: para derrotar a Grã-Bretanha, Napoleão tinha de vencer as forças coligadas anglo-espanholas, o que resultou na grande vitória do Almirante Nelson, em Trafalgar, nas costas espanholas do Mediterrâneo, em 1805. Mas, Napoleão conseguiu infligir pesadas derrotas contra a Áustria e a Prússia no continente, em 1806. Com essas vitórias, Napoleão decretou o bloqueio continental contra a Grã-Bretanha, invadindo, em 1807, os dois reinos ibéricos que ainda não tinham se submetido às suas pretensões, Espanha e Portugal. A Espanha deu início a uma guerra de guerrilhas contra o ocupante, mas a corte dos Braganças preferiu desertar o país e fugiu para o Brasil, sob a proteção britânica. O poderio naval britânico, no entanto, inverteu o sentido do bloqueio, e foi a França que se viu privada dos mares devido à vigilância da Royal Navy.

As sanções previstas na convenção da Liga da Nações, nos artigos 16 e 17, em caso de ameaça de guerra ou de guerra efetiva, compreendiam a cessação de todas as relações comerciais ou financeiras, assim como a proibição de todo e qualquer intercâmbio entre os nacionais dos Estados membros e os nacionais da parte agressora, assim como com nacionais de quaisquer outras partes, mesmo não membros da Liga. Elas pareciam efetivamente fortes o suficiente para impedir ou limitar o recurso à guerra entre os Estados membros, assim como com outros Estados não membros. A despeito da convenção da Liga, Estados membros e não membros recorreram à guerra nos anos 1930, começando pela invasão da Manchúria pelo Império do Japão em 1931, pelo ataque à Abissínia (Etiópia) pela Itália fascista em 1936), pela intervenção armada na Guerra Civil Espanhola em 1936-39 pela Alemanha hitlerista e pela mesma Itália fascista, a despeito da neutralidade da maior parte dos demais Estados, assim como por toda a violência armada e ameaças de uso da força pela Alemanha hitlerista na anexação da Áustria e de parte do território da Tchecoslováquia, em 1938-39 (esta última seguida da anexação do resto do território em 1930-40), assim como, a invasão e esquartejamento da Polônia pela Alemanha nazista e pela União Soviética em 1939, sem esquecer a guerra da URSS contra a Finlândia em 1940 e a anexação dos Estados livres da Estônia, Lituânia e Letônia igualmente em 1940. A Liga ainda recomendou e ameaçou sanções contra os Estados agressores, mas elas foram totalmente inoperantes ou não implementadas pela maior parte dos Estados membros.

Sanções econômicas, no mundo contemporâneo da ONU, previstas nos artigos 41 e 42 da Carta, foram amplamente utilizadas contra certos Estados membros, muitas vezes de maneira unilateral – e, portanto, em princípio de forma ilegal –, como por exemplo dos EUA contra Cuba, contra o Irã e outros países menores, mas também de forma legal, ou pelo menos sancionadas por alguma resolução do CSNU, como contra a África do Sul dos tempos do Apartheid, ou contra o Iraque de Saddam Hussein, antes e depois de sua invasão do Kuwait. Mas, o que diz a Carta das Nações Unidos sobre as sanções? Os dispositivos principais estão contidos nesses dois artigos, mas sua aplicação depende, obviamente da aprovação do seu Conselho de Segurança, algo que é extremamente difícil de ser obtido quando os interesses nacionais de um dos membros permanentes do CSNU estão em jogo. A razão é muito simples, uma vez que as sanções econômicas são ofensivas por sua própria natureza, impondo restrições aos intercâmbios com a parte agressora, uma espécie de exercício de força, ainda que feita à distância. Eis o teor dos dois artigos da Carta tratando diretamente da questão:

Artigo 41

O Conselho de Segurança decidirá sobre as medidas que, sem envolver o emprego de forças armadas, deverão ser tomadas para tornar efetivas as suas decisões e poderá instar os membros das Nações Unidas a aplicarem tais medidas. Estas poderão incluir a interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos, postais, telegráficos, radiofônicos, ou de qualquer espécie, e o rompimento de relações diplomáticas.

 

Artigo 42

No caso de o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas no Artigo 41 seriam inadequadas ou demonstrarem que são inadequadas, poderá levar a efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar necessário para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos Membros das Nações Unidas. (Legislação de Direito Internacional, 2008, p. 1097)

 

Em outros termos, de forma similar, mas não semelhante, à Liga das Nações, a Carta da ONU prevê medidas muito constrangedoras do ponto de vista econômico, incluindo a interrupção das relações diplomáticas, a cessação dos intercâmbios econômicos e até o bloqueio do país agressor, por diversos meios, por forças das Nações Unidas, mas tudo isso depende de uma decisão do CSNU, o que é virtualmente impossível caso o direito de veto atribuído a cada um dos seus cinco membros permanentes seja exercido. Mas, registre-se também, que o artigo 24 da Carta afirma que os membros da ONU “conferem ao Conselho de Segurança a principal (main) responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais” (idem, p. 1094), ou seja, essa responsabilidade não pode ser exclusiva do CSNU, pois que, como dito no inciso 5 do artigo 2º.: 

Todos os membros darão às Nações toda assistência em qualquer ação a que elas recorrerem de acordo com a presente Carta e se absterão de dar auxílio a qualquer Estado contra o qual as Nações Unidas agirem de modo preventivo ou coercitivo. (idem, p. 1091)

 

A questão do cumprimento dos princípios e objetivos da Carta da ONU apresenta um paradoxo impossível de ser solucionado, sem uma reforma da própria Carta, o que também se afigura uma quadratura do círculo, como implícito ao seu artigo 6º:

O Membro das Nações Unidas que houver violado persistentemente os Princípios contidos na presente Carta [o que inclui, objetivamente, todas as ações perpetradas pela Rússia em sua guerra de agressão à Ucrânia], poderá ser expulso da Organização pela Assembleia Geral [mas, e este é um enorme, gigantesco, mas, apenas] mediante recomendação do Conselho de Segurança. (p. 1091)

 

A menção, feita acima, a “forças das Nações Unidas”, refere-se à existência, prevista no artigo 47, de uma Comissão de Estado Maior, 

destinada a orientar e assistir o Conselho de Segurança, em todas as questões relativas às exigências militares do mesmo Conselho, para a manutenção da paz e da segurança internacionais, utilização e comando das forças colocadas à sua disposição... [e que]

...será responsável... pela direção estratégica de todas as forças armadas postas à disposição do dito Conselho. (op. cit., p. 1098)

 

Esse mesmo inciso (3) do artigo 47, termina pateticamente por afirmar que “As questões relativas ao comando dessas forças serão resolvidas ulteriormente.” Dispensável dizer que elas nunca foram resolvidas, pois que cada força de intervenção da ONU (de imposição ou de manutenção da paz) apresentou um histórico peculiar quanto ao comando: supõe-se, por exemplo, que as forças americanas presentes na Coreia, em 1950-53, ou na Arábia Saudita e no Kuwait, em 1991, tenham respondido mais aos generais do Pentágono, e ao próprio presidente americano, do que a qualquer Comissão militar do CSNU. 

Antes de qualquer ação de imposição da paz em algum conflito levado a debate na ONU, é presumível que os membros das Nações Unidos, assim como seu Conselho de Segurança, tenham aplicado as sanções previstas nos artigos já referidos. Um debate talvez especioso – sobretudo no caso do Brasil – instalou-se a respeito de serem essas sanções legítimas ou ilegítimas, no caso sancionadas multilateralmente (e só o são pelo CSNU, que dita a Lei, mas nem sempre o Direito), ou aplicadas unilateralmente, o que, alegadamente, as tornariam não passíveis de cumprimento pelos países membros. Cabe, todavia, ressaltar que as sanções unilaterais impostas por alguns membros da ONU contra a Rússia, desde o início de sua guerra de agressão contra a Ucrânia, ainda que não autorizadas expressamente pelo CSNU, situam-se, inteiramente, dentro do espírito e da letra dos artigos da Liga das Nações e dos da Carta da ONU que tratam da possibilidade de sua aplicação contra violadores de suas respectivas convenções constitutivas. Diversas sanções foram aplicadas, por exemplo, contra a África do Sul do Apartheid por vários membros da ONU, unilateralmente, portanto, antes que várias delas se convertessem em multilaterais, quando a pressão da opinião pública internacional – vale dizer, dos países ocidentais – obrigou o Conselho a finalmente tomar uma posição, convertendo-as em obrigatórias para todos (ainda que muitos elidissem o espírito e a letra das determinações do CSNU). 



[1] Tradução livre: Esse instrumento eram as sanções, descritas em 1919 pelo presidente americano Woodrow Wilson como ‘uma coisa mais tremenda do que a guerra’: a ameaça era de um ‘absoluto isolamento… que leva a nação aos seus sentidos, assim como a sufocação remove de um indivíduo qualquer disposição a lutar… Aplique esse remédio econômico, pacífico, silencioso, mortal, e não haverá mais necessidade do uso da força. É um remédio terrível. Não custa nenhuma vida fora da nação boicotada, mas ele cria uma pressão sobre aquela nação, a que, em meu entendimento, nenhuma nação moderna pode resistir’.


* Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional. 

Os desafios do crescimento econômico da China - Otaviano Canuto (Policy Center for the New South)

Os desafios do crescimento econômico da China

Otaviano Canuto

Policy Center for the New South, 2/03/2024

Xi Jinping deveria retomar proposta de seu antecessor de “rebalancear” empresas públicas e privadas para contornar desafios, escreve Otaviano Canuto.

A nota do FMI para o G-20 divulgada segunda-feira trouxe uma projeção de crescimento econômico da China de 4,6% e 4,1% para, respectivamente, este ano e o próximo. Em 2023, após a reabertura econômica com o fim da política de “Covid zero”, a taxa foi de 5,2%.

Pode-se apontar seis desafios a serem enfrentados pelo crescimento econômico chinês nos próximos anos. Primeiro, a exaustão do setor imobiliário como fator de crescimento, depois de ter chegado até a um quarto do PIB do país. Como abordamos aqui em 2021, as restrições estabelecidas pelo governo chinês para o acesso de incorporadoras ao crédito barato, por conta de preocupações quanto às proporções atingidas pela bolha imobiliária, não apenas cortaram o boom, como desnudaram a fragilidade patrimonial de incorporadoras, como se viu de cara no caso da Evergrande. Desde então, houve uma queda acentuada nas vendas de casas, nas novas construções e no investimento no setor.

Além do grau de endividamento de empresas imobiliárias frágeis, a dívida de governos locais é outro problema. Até porque suas receitas provenientes da venda de terrenos a promotores imobiliários encolheram. O grau de exposição de bancos chineses a ambos, com possíveis consequências em termos de perdas com empréstimos, poderá afetar negativamente a oferta de crédito na economia.

Um problema de demanda doméstica pelas famílias perfaz um terceiro desafio para o crescimento. Famílias chinesas assumiram dívidas pesadas para a aquisição imobiliária, durante o boom, e um corte de gastos acompanhou a turbulência imobiliária. Mesmo tendo se elevado após o fim do “Covid zero” no ano passado, o consumo permanece em trajetória abaixo daquela de antes da pandemia. Medidas de confiança do consumidor apontam isso. Investimentos privados para o mercado doméstico, assim como contratações, acompanharam tal retraimento de consumidores domésticos.

E quanto ao setor externo como forma de compensação? Um quarto desafio ao crescimento está na resistência externa a tal reforço de exportações como alternativa, dado que estas enfrentam agora a resistência que se seguiu ao acirramento da rivalidade geopolítica no exterior, especialmente nos EUA e em outras economias avançadas.

A dianteira chinesa na tecnologia de energia limpa tem, de fato, se feito acompanhar por forte expansão, por exemplo, de vendas no exterior de carros elétricos. As exportações chinesas de automóveis de passageiros ultrapassaram as japonesas, ao mesmo tempo em que empresas da China buscam reforço de posições no exterior – como a BYD no Brasil, na Hungria e em outros lugares. Mas os riscos de enfrentamento com restrições de acesso a mercados estão elevados.

Um quinto desafio diz respeito à mudança radical de humor de investidores estrangeiros. Desde o terceiro trimestre do ano passado, o balanço de pagamentos da China já registrou uma saída líquida de quase 12 bilhões de dólares em investimento direto, por conta de vendas de ativos ou não-reinvestimento de lucros.  Investimentos em carteira, ou seja, ações e títulos de dívida, também trocaram de sinal.

A insuficiência de demanda agregada na China vem se manifestando sob a forma de deflação na economia doméstica. Os preços ao consumidor estão estáveis ou em queda há meses e as empresas vêm reduzindo preços há mais de um ano. O recurso a estímulos fiscais e monetários é limitado pelos receios de suas consequências financeiras.

A demografia constitui um sexto desafio. O aumento da oferta de trabalhadores acompanhando a rápida urbanização atingiu seus limites. A queda no número de bebês há bastante tempo e o declínio da população já em curso, com parcela crescente da população fora do mercado de trabalho, significa – como em muitas outras partes do mundo – o fim do dividendo demográfico. A taxa de desemprego de jovens, atualmente elevada, constitui fonte de trabalho a ser empregado, mas isto não muda a direção na questão da proporção de chineses em idade não-produtiva.

Para entender como os quatro primeiros desafios acima se entrelaçam, vale voltar ao início da década passada. Em dezembro de 2011, quando quem vos fala era um dos vice-presidentes do Banco Mundial, estive em uma cerimônia em Pequim na qual o então presidente Hu Jintao fez uma das primeiras manifestações sobre a necessidade de um “rebalanceamento” inevitável da economia chinesa. Teria de ocorrer um gradual redirecionamento para um novo padrão de crescimento, não mais associado a taxas de investimento perto de 50% do PIB e com o consumo doméstico aumentando em relação aos investimentos e exportações.

Também, disse Hu Jintao, caberia um esforço para consolidar a inserção local nos degraus mais altos da escada do valor adicionado em cadeias de valor globais, algo que efetivamente foi buscado. Os serviços também deveriam aumentar seu peso no PIB em relação à manufatura. Não mais haveria as taxas de crescimento do PIB de dois dígitos das décadas anteriores, mas o crescimento deixaria de ser, como em 2007 havia dito o então primeiro-ministro Wen Jiabao, “instável, desequilibrado, descoordenado e insustentável”.

Dado o baixo nível do consumo doméstico no PIB (fato ainda presente) e, portanto, a dependência em relação a investimentos e saldos comerciais, a transição correria o risco de passar então por queda abrupta no ritmo de crescimento. Para afastar os receios de desaceleração abrupta, ondas de superinvestimentos impulsionados pelo crédito em infraestrutura e habitação se seguiram nos anos posteriores. Uma segunda rodada veio a ser aplicada em 2015–2017, como resposta a uma desaceleração imobiliária e ao declínio do mercado de ações. Além, claro, das políticas de expansão adotadas durante a crise pandêmica em 2020.

Com efeito, a queda nas taxas de crescimento do PIB chinês ocorreu apenas gradualmente até 6% em 2019. Agora, contudo, há o esgotamento da alavanca de superinvestimentos imobiliários e na infraestrutura. Não apenas por causa dos patamares de endividamento que acompanharam seu uso extensivo, mas também porque, na margem, seus retornos em termos de crescimento do PIB apresentaram contribuição declinante. Claramente as autoridades chinesas optaram por salvaguardar sua economia das vulnerabilidades financeiras, mesmo que ao preço de um crescimento do PIB mais baixo.

Duas reformas teriam forte efeito. Antes de tudo, reforçar a proteção social de modo a convencer chineses a poupar menos. Além disso, retomar a proposta feita por Hu Jintao em 2011 – deixada de lado por Xi Jinping – de “rebalancear” empresas públicas e privadas, com um consequente ganho de produtividade por conta das diferenças favoráveis às segundas mostradas onde operam em conjunto.

Vejamos o que dirá o relatório de trabalho econômico do governo sobre a “nova estratégia de crescimento da China e as metas do PIB”, a ser divulgado na próxima terça-feira.

Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Atualmente é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University e professor afiliado na Universidade Mohammed VI. Fez mestrado na Concordia University em Montreal e doutorado na Unicamp, ambos em economia.


Um dos grandes truques deles é dar migalhas aos miseráveis, enquanto frequentam os coquetéis dos milionários - Luiz Felipe Pondé (FSP)

 O PT é profissional, os bolsonaristas são amadores e cafonas

Um dos grandes truques deles é dar migalhas aos miseráveis, enquanto frequentam os coquetéis dos milionários

Luiz Felipe Pondé, Folha de São Paulo (03/03/2024)

Se Boulos levar a prefeitura de São Paulo,  a cidade será uma importante cabeça de ponte para o PT levar o estado  em 2026. Com as mãos nos cofres federais e de São Paulo — estado mais  rico da federação — o PT sangrará o país por 100 anos.

Não há oposição legítima ao PT entre nós. Os "conservadores" do legislativo  estão a venda sempre. Oferecem oposição até a próxima mesada. Os  evangélicos, em última instância, também estão a venda. Mas, estes  seriam a última resistência em termos de população comum, apesar de que,  como são evangélicos, ninguém os levaria a sério: tudo que creem é fake news. No final do dia, toda oposição ao PT é apenas manobra de barganha fisiológica.

As  redes poderiam fazer frente ao domínio universal do PT porque, como  dizem por aí, "as redes são da direita", mas, o resultado disso seriam  idiotas quebrando tudo nas ruas e os "democratas" gritando em uníssono:  Golpe! Golpe!

A Europa tem leis que regulam a internet. Mas  esses países não são corruptos como o Brasil. Aqui, a regulação da  internet servirá apenas para o PT destruir qualquer oposição popular a  ele — com ajuda da "Justiça". Não é à toa que a infantaria da imprensa  — 99% de esquerda — fica com água na boca quando ouve a expressão  "regulação das redes". 

Pessoalmente, penso que um Estado corrupto como o  nosso é muito mais perigoso para a liberdade do país do que as  plataformas digitais.

A  colonização do STF é mais complexa, mas possível e em curso — basta ver a  emoção da chegada ao Supremo dos terrivelmente lulistas, assim como nos  tempos do Bolsonaro, a chegada do terrivelmente evangélico. Os  salamaleques nesse caso são mais longos. O processo de redução do poder  de freio e contrapeso que o STF poderia oferecer ao PT viria regado a  muitos discursos empolados sobre o "império da lei" e sobre a democracia  ser um regime jurídico e, por isso mesmo, sustentada no princípio do  Estado de Direito — o que é pura verdade.

Aqui  está uma cartada sofisticadíssima da ameaça a democracia que traz o PT,  uma vez tendo colonizado o STF — colonização esta por simpatia  ideológica ou mero oportunismo de ocasião: o "golpe" aconteceria de modo  invisível e dentro do Estado de Direito. A máquina de censura jurídica  operaria na velocidade da luz e na densidade de um enxame de abelhas.  Processos, perda de patrocínio, de emprego, apagamento e cancelamento de  qualquer resistência publicamente mais significativa.

As  "minorias identitárias" chorariam juntas pelo Brasil "progressista".  Nenhuma resistência seria oferecida por essas minorias a um golpe na  democracia dado pelo PT, pelo contrário, ajudariam a esmagar qualquer  reação sob a rubrica de crítica a uma fobia qualquer.

A  virada diplomática brasileira no sentido de regimes totalitários é  muito clara: Rússia, Venezuela, Irã, Hamas. O país piorou: até a  diplomacia hoje é miserável.

Os  ricos vivem bem com qualquer governo. Viveram bem no Lula 1 e 2, e no  Dilma 1, e viverão bem nos 100 anos do PT. Um dos grandes truques deles é  dar migalhas aos miseráveis, com discursos açucarados, enquanto  frequentam os coquetéis dos milionários, oferecendo "descontos" nos  encargos e empréstimos generosos. Em Brasília, não existe vergonha na  cara.

A  sociabilidade na elite intelectual que reúne acadêmicos, jornalistas,  psicanalistas, editores, artistas e agentes culturais, funciona como um  método difuso de repressão.

Maledicência,  exclusão, inviabilização do dia a dia de trabalho e lazer entre colegas  são suas marcas. Isso foi bem mostrado pelo historiador Tony Judt no  seu impecável "Passado Imperfeito" sobre a sociabilidade intelectual  francesa na primeira metade do século 20. Tendo essa sociabilidade a seu  favor, a "democracia petista absoluta" caminharia segura para o domínio  da "cultura".

Uma  das misérias do país é não ter uma cultura decente que não mame nas  tetas do PT, não chore lágrimas de crocodilo e que não seja disposta a  apoiar um regime totalitário que abrace suas opções políticas e garanta  suas carreiras profissionais. O PT é profissional, os bolsonaristas são  amadores e cafonas.


O lugar do Brasil, segundo Lula - Demétrio Magnoli (O GLobo)

A Doutrina Lula, em todo o seu esplendor... 

O lugar do Brasil, segundo Lula 

Demétrio Magnoli 

O Globo, segunda-feira, 4 de março de 2024

Uma política externa oscilante, inconsistente — eis o que pensa a revista The Economist. “Lula quer que o Brasil seja todas as coisas para todos: um amigo do Ocidente e um líder do Sul Global, um defensor do meio ambiente e uma potência petrolífera mundial, um promotor da paz e um amparo para os autocratas”. O diagnóstico gira em falso, como refém da retórica ilusionista do governo. De fato, existe uma Doutrina Lula.

A orientação de política externa pode ser decifrada a partir de dois movimentos estratégicos. O primeiro renega o discurso oficial; o segundo elimina suas ambivalências.

1. O Novo PAC lançado pelo governo, no eixo consagrado à transição energética, prevê recursos de R$ 565,4 bilhões, dos quais 64% para óleo e gás e meros 12% para fontes limpas. Os investimentos em combustíveis fósseis fluirão principalmente do Estado, enquanto as fontes alternativas dependerão de financiamento privado.

2. O Brasil aumentou radicalmente seu intercâmbio com a Rússia desde a invasão da Ucrânia. O crescimento apoiou-se especialmente nas importações de petróleo, diesel e fertilizantes. As importações de diesel saltaram de 101 mil toneladas em 2022 para 6,1 milhões em 2023 — ou, em valores, de US$ 95 milhões para US$ 4,5 bilhões. No cenário do embargo europeu, o Brasil converteu-se no terceiro maior importador de hidrocarbonetos russos, atrás apenas da China e da Turquia.

O Acordo de Paris, a matriz baseada na fonte hídrica, a Amazônia e Marina Silva organizaram o discurso inaugural de política externa do governo Lula. Era ilusão: o Brasil chega às vésperas do G20, no Rio de Janeiro, e à antevéspera da COP30, em Belém, sem uma estratégia de transição energética. O discurso sobre a “liderança climática” funciona como rarefeita cortina de fumaça destinada a ocultar a Doutrina Lula.

As ambivalências sobre a guerra imperial russa circulam unicamente na superfície da retórica diplomática. Reiterando o gesto original de Bolsonaro, Lula oferece “solidariedade” à Rússia. A visita de Celso Amorim ao Kremlin e a visita de Lavrov a Brasília, logo após a ordem de prisão emitida pelo TPI contra Putin, evidenciam a direção para a qual aponta a bússola de política externa.

PT é parceiro do Rússia Unida, partido de Putin. Quase um ano atrás, à sombra da guerra de agressão na Ucrânia, participou de um fórum sobre “neocolonialismo” promovido pelo partido putinista. Logo mais, a convite do Rússia Unida, uma delegação oficial petista acompanhará a farsa eleitoral russa montada para simular legitimidade democrática a mais um mandato de Putin.

“Para que essa pressa de acusar alguém?”, indagou o presidente brasileiro, antes de criticar os governos que responsabilizam o regime russo pela morte de Navalny. Lula “compreende os interesses de quem acusa” e recomenda aguardar as conclusões dos legistas a serviço do Kremlin. A presença pessoal de Putin no G20 é uma meta difícil perseguida por Lula.

Cuba, Venezuela, Nicarágua. Aponta-se, desde o primeiro mandato lulista, a crônica inclinação à solidariedade com regimes ditatoriais de esquerda. A crítica não se aplica, porém, ao regime de Putin.

O governo russo, em aliança com o patriarcado ortodoxo de Moscou, combina o nacionalismo grão-russo com um conservadorismo extremo. O chefe do Kremlin conta com admiradores como Trump, Orbán e líderes da extrema direita europeia. Bolsonaro admirava Putin por compartilhar com o russo o conceito de uma ordem social baseada na família tradicional. Lula figura na lista, mas não por motivos ideológicos. Sua parceria com Putin deriva de uma visão estratégica.

A Doutrina Lula tem como norte o Sul Global, expressão altamente imprecisa que substitui o antigo conceito de Terceiro Mundo e atualiza a noção de anti-imperialismo. Em sua versão atual, adotada por uma esquerda irreformável, anti-imperialismo é, antes de tudo, hostilidade aos Estados Unidos e a seus aliados europeus. O Brasil de Lula almeja um lugar de destaque numa coalizão internacional anti-Ocidente. Nessa visão, China e Rússia emergem como parceiros privilegiados.

Lula tem rumo — eis aí o verdadeiro problema.


segunda-feira, 4 de março de 2024

Tusan, Michelle: The Last Treaty: Lausanne and the End of the First World War in the Middle East' - Book Review by Jay Winter

 

Algum retrocesso em vista no sistema internacional? No próprio Brasil? - Paulo Roberto de Almeida

Algum retrocesso em vista no sistema internacional? No próprio Brasil?

Paulo Roberto de Almeida


Nosso sistema imunológico na área política, interna e externa, ainda não conseguiu criar uma vacina eficaz contra as ditaduras, sobretudo as eleitorais e/ou plebiscitárias. Existem algumas na região e várias ao redor do mundo, inclusive no BRICS+, o xodó do Grande Guia, apreciado por muitos. Fatalidade geopolítica ou escolha ideológica?

O quê, exatamente, o Brasil e o povo brasileiro ganham ao ver o seu atual governo apoiar ditaduras execráveis ao redor do mundo, especialmente duas grandes autocracias que pretendem criar uma “nova ordem global”, supostamente oposta, contrária e substitutiva à atual ordem econômica e política mundial, que deriva de Bretton Woods (1944) e de San Francisco (1945), uma ordem baseada em regimes democráticos, de economias de mercados livres e garantidores de direitos humanos?

Repito a pergunta: o que o Brasil ganha ao se opor à atual ordem “ocidental”, aparentemente tão desprezada pelos que nos governam? 

O que se espera com essa “nova ordem global”, que para ser implantada necessitaria o “afastamento” da ordem prevalecente atualmente? Pacífico, consensual, por livre escolha? Ou por imposição da força bruta? Pela força do Direito ou pelo direito da força?

Alguma rationale credível do ponto de vista dos interesses nacionais, dos valores e princípios de nossa Constituição, de nossa diplomacia, das regras e normas que presidem o Direito Internacional e a Carta da ONU?

O governo atual ainda não conseguiu chegar à conclusão de que a guerra de agressão da Rússia de Putin contra a Ucrânia vizinha constituiu uma violação flagrante da Carta da ONU e do Direito Internacional? O que falta para chegar a essa conclusão elementar? 

Seria preciso um “puxão de orelhas” de alguma instância da ONU, o Conselho de Direitos Humanos, por exemplo, ou, eventualmente, um ruling da Corte Internacional de Justiça?

Não bastaria uma simples adequação a certas simples normas éticas, ou a princípios elementares de moral pública?

Como confundir agressor ou agredido, como equiparar as duas partes em conflito, como se elas fossem equivalentes, no plano do Direito, ou da realidade empírica visível aos olhos de todos e cada um?

Confesso minha estupefação em face desses fatos, não apenas como diplomata, ou estudioso das relações exteriores do Brasil e da sua diplomacia, mas como simples cidadão bem informado e engajado nas causas democráticas e dos DH.

Confesso que não entendi certas coisas, e que não consigo suportar a desfaçatez, a mentira e a deformação da realidade. 

Confesso minha desconformidade e meu contrarianismo, fundamentados num ceticismo sadio sobre certas escolhas de autoridades e poderes públicos que me parecem contrárias ao nosso sentido de  Justiça, à nossa definição de democracia e de respeito aos DH. 

Por que admitir tais retrocessos no âmbito interno e no contexto internacional?

Por quê?

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 4/03/2024