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terça-feira, 5 de março de 2024

O lugar do Brasil, segundo Lula - Demétrio Magnoli (O GLobo)

A Doutrina Lula, em todo o seu esplendor... 

O lugar do Brasil, segundo Lula 

Demétrio Magnoli 

O Globo, segunda-feira, 4 de março de 2024

Uma política externa oscilante, inconsistente — eis o que pensa a revista The Economist. “Lula quer que o Brasil seja todas as coisas para todos: um amigo do Ocidente e um líder do Sul Global, um defensor do meio ambiente e uma potência petrolífera mundial, um promotor da paz e um amparo para os autocratas”. O diagnóstico gira em falso, como refém da retórica ilusionista do governo. De fato, existe uma Doutrina Lula.

A orientação de política externa pode ser decifrada a partir de dois movimentos estratégicos. O primeiro renega o discurso oficial; o segundo elimina suas ambivalências.

1. O Novo PAC lançado pelo governo, no eixo consagrado à transição energética, prevê recursos de R$ 565,4 bilhões, dos quais 64% para óleo e gás e meros 12% para fontes limpas. Os investimentos em combustíveis fósseis fluirão principalmente do Estado, enquanto as fontes alternativas dependerão de financiamento privado.

2. O Brasil aumentou radicalmente seu intercâmbio com a Rússia desde a invasão da Ucrânia. O crescimento apoiou-se especialmente nas importações de petróleo, diesel e fertilizantes. As importações de diesel saltaram de 101 mil toneladas em 2022 para 6,1 milhões em 2023 — ou, em valores, de US$ 95 milhões para US$ 4,5 bilhões. No cenário do embargo europeu, o Brasil converteu-se no terceiro maior importador de hidrocarbonetos russos, atrás apenas da China e da Turquia.

O Acordo de Paris, a matriz baseada na fonte hídrica, a Amazônia e Marina Silva organizaram o discurso inaugural de política externa do governo Lula. Era ilusão: o Brasil chega às vésperas do G20, no Rio de Janeiro, e à antevéspera da COP30, em Belém, sem uma estratégia de transição energética. O discurso sobre a “liderança climática” funciona como rarefeita cortina de fumaça destinada a ocultar a Doutrina Lula.

As ambivalências sobre a guerra imperial russa circulam unicamente na superfície da retórica diplomática. Reiterando o gesto original de Bolsonaro, Lula oferece “solidariedade” à Rússia. A visita de Celso Amorim ao Kremlin e a visita de Lavrov a Brasília, logo após a ordem de prisão emitida pelo TPI contra Putin, evidenciam a direção para a qual aponta a bússola de política externa.

PT é parceiro do Rússia Unida, partido de Putin. Quase um ano atrás, à sombra da guerra de agressão na Ucrânia, participou de um fórum sobre “neocolonialismo” promovido pelo partido putinista. Logo mais, a convite do Rússia Unida, uma delegação oficial petista acompanhará a farsa eleitoral russa montada para simular legitimidade democrática a mais um mandato de Putin.

“Para que essa pressa de acusar alguém?”, indagou o presidente brasileiro, antes de criticar os governos que responsabilizam o regime russo pela morte de Navalny. Lula “compreende os interesses de quem acusa” e recomenda aguardar as conclusões dos legistas a serviço do Kremlin. A presença pessoal de Putin no G20 é uma meta difícil perseguida por Lula.

Cuba, Venezuela, Nicarágua. Aponta-se, desde o primeiro mandato lulista, a crônica inclinação à solidariedade com regimes ditatoriais de esquerda. A crítica não se aplica, porém, ao regime de Putin.

O governo russo, em aliança com o patriarcado ortodoxo de Moscou, combina o nacionalismo grão-russo com um conservadorismo extremo. O chefe do Kremlin conta com admiradores como Trump, Orbán e líderes da extrema direita europeia. Bolsonaro admirava Putin por compartilhar com o russo o conceito de uma ordem social baseada na família tradicional. Lula figura na lista, mas não por motivos ideológicos. Sua parceria com Putin deriva de uma visão estratégica.

A Doutrina Lula tem como norte o Sul Global, expressão altamente imprecisa que substitui o antigo conceito de Terceiro Mundo e atualiza a noção de anti-imperialismo. Em sua versão atual, adotada por uma esquerda irreformável, anti-imperialismo é, antes de tudo, hostilidade aos Estados Unidos e a seus aliados europeus. O Brasil de Lula almeja um lugar de destaque numa coalizão internacional anti-Ocidente. Nessa visão, China e Rússia emergem como parceiros privilegiados.

Lula tem rumo — eis aí o verdadeiro problema.


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