segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

A traição americana - Lourival Sant’Anna (Estadão)

 Certas coisas em Trump não pertencem ao campo da racionalidade política e não podem ser explicadas por meio de argumentos apoiados em evidências sólidas e intelectualmente compreensíveis; suas posturas são prejudiciais aos próprios americanos, empresas, consumidores, o país. Avento a hipótese de confusão mental e demência senil. Estou errado? PRA

Lourival Sant’Anna:

“Os movimentos de Donald Trump não podem ser entendidos da óptica convencional da geopolítica. As motivações comuns são o colonialismo mercantilista, a ideologia iliberal e nativista. Depois da 2.ª Guerra, os EUA firmaram alianças com a Europa, Japão e Coreia do Sul para não ter de enfrentar os inimigos em território americano. Ao abandonar os aliados e se unir aos adversários, Trump anula a confiabilidade dos EUA, trai seus interesses e a causa da liberdade.”

Minha coluna no ESTADÃO deste domingo: A traição americana

https://lnkd.in/dc3Km_As 

domingo, 23 de fevereiro de 2025

Politica comercial de Trump é altamente prejudicial aos EUA - Juliana Machado (Revista Veja)

 A ineficiência do ‘tarifaço’ de Trump, segundo o BofA

Dez economistas assinam relatório sobre o efeito limitado da política comercial para as contas do governo americano

Por Juliana Machado

Revista Veja, 22:02/2025


As tarifas comerciais impostas pelo presidente dos EUA, Donald Trump, globalmente podem ter diversos efeitos para as relações geopolíticas, mas uma coisa é certa: elas não vão resolver o déficit comercial ou de conta corrente do governo americano. A opinião consta em relatório do Bank of America (BofA) enviado a clientes.

“Trump acredita nas tarifas como uma primeira linha de defesa”, dizem 10 economistas do banco, em diversos países, que assinam o relatório. “O déficit de conta corrente é um desequilíbrio macroeconômico, impulsionado por um excesso de investimento doméstico em relação à poupança doméstica.”

BofA explica que o problema todo é gerado pela conta de capital, em que os fluxos de capital levam a uma apreciação do dólar e induzem ao déficit. “Se a administração (de Trump) realmente quer lidar com esse desequilíbrio, deveria começar colocando ordem nas contas fiscais — algo que nós não esperamos”, diz o banco.

BofA afirma também que continua vendo as tarifas de Trump como uma “ferramenta para estimular concessões em acordos bilaterais abrangentes”. No entanto, usar as tarifas como forma de diálogo não significa que elas não serão impostas de fato sobre as nações.

Ainda no relatório, o banco diz que não espera tarifas permanentes para o Canadá ou o México. Na Europa, as negociações provavelmente terão como foco setores específicos, como energia e gastos com defesa. No caso da China, porém, o objetivo continua sendo de “dissociação geopolítica e econômica, o que ampara a visão de que as tarifas sobre a China serão permanentes”, ainda que em níveis menores do que o prometido na campanha republicana.

“Alguns países na Ásia, como Índia, Japão, Coreia do Sul e Vietnã parecem estar no topo da lista do governo para potenciais tarifas, segundo nossos especialistas”, diz o BofA.

O relatório também traz comentários a respeito das tarifas recíprocas, aquelas em que os EUA aplicarão taxas a produtos importados de um país na mesma proporção em que os produtos americanos são taxados ali.

“A implementação das tarifas recíprocas foi anunciada para começar em abril ao invés de imediatamente, abrindo margem para negociação. São economias emergentes, como Índia e Brasil, as maiores impactadas por essas tarifas, embora o Japão também esteja no foco”, diz o relatório.


Acordo Mercosul-UE cada vez mais em perigo: condicionalidades agricolas - Marcos Fava Neves Revista Veja

 A força das mídias sociais no agro

O que aprendemos com os casos da Danone, Carrefour e Tereos no Brasil? 

Por Marcos Fava Neves

Revista Veja, 22/02/2025


Nos meses de outubro e novembro de 2024, três executivos de altíssimo nível da Danone (França), Carrefour (França) e Tereos (França) – organizações muito respeitadas e admiradas – fizeram declarações públicas na imprensa e nas redes sociais sob diferentes situações de pressão, afirmando que não comprariam produtos do Brasil (ou do Mercosul). O argumento foi relativamente o mesmo: a questão da conformidade com regras sociais e ambientais, de acordo com a própria avaliação dessas empresas, demonstrando desconhecimento sobre as práticas e exigências para agricultores e empresas que operam no Brasil, a maioria certificada por organizações internacionais.

Essas declarações rapidamente ganharam destaque na mídia global, gerando problemas de imagem para a produção brasileira, já que a força dessas empresas e de suas marcas é impressionante. No Brasil, elas provocaram diversas reações de instituições do agronegócio, fornecedores, compradores e indivíduos, criando problemas para suas subsidiárias no país, prejudicando sua imagem e colocando em risco seu valor e suas vendas. As redes sociais, incluindo Instagram, LinkedIn e grupos de WhatsApp, nesta nova era de comunicação rápida, espalharam a informação rapidamente e causaram grandes danos em um único dia, algo impossível na era dos jornais impressos.

Quando o boicote contra seus produtos começou a crescer, a Danone conseguiu, após quatro dias, acalmar a situação emitindo um comunicado global esclarecendo que houve um mal-entendido na interpretação do que seu CFO (ChiefFinancial Officer) havia dito, reafirmando seu compromisso de comprar do Brasil, a importante do país para o negócio e que a situação estava sob controle, mas que, certamente, gerou aprendizados dentro da empresa.

No caso do Carrefour, após o CEO (Chief ExecutiveOfficer) da rede, Alexandre Bombard, anunciar que não importaria carnes oriundas de países do Mercosul, o movimento de boicote por parte de grandes fornecedores de carne do Brasil tomou forma e levou ao cessamento do abastecimento de carne para as empresas da rede no Brasil (Carrefour, Atacadão e Sam’s Club). A filial do Carrefour no Brasil publicou uma nota de retratação. O CEO se desculpou com uma nota endereçada ao ministro Carlos Fávaro.

Outro caso foi o da Tereos, gigante francesa produtora de açúcar. Olivier Leducq, CEO do grupo, se manifestou nas redes sociais se opondo a possibilidade de assinatura de acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul, alegando que a medida colocaria em risco a competitividade do setor açucareiro europeu. O diretor ainda disse que a concorrência seria desleal, pois os produtos sul-americanos não respeitam os padrões ambientais e sociais, como os países europeus. Após uma onda de comentários questionando a opinião, o executivo tentou se retratar negando ataques ao agro brasileiro e que sua publicação não diz respeito à qualidade dos produtos brasileiros. Ressaltou, ainda, os altos custos resultantes das exigências impostas aos produtos franceses.

Nós acreditamos em mercados e na liberdade econômica. Qualquer empresa na França, Holanda, Alemanha – ou outros países – tem o direito de buscar fornecedores onde quiser, desde que as regulamentações locais permitam essa liberdade; é o caso dessas três empresas na França. Elas pagam impostos, mas podem comprar de onde quiserem. Se quiserem dar preferência à produção local ou proteger fornecedores nacionais, é algo que entendemos e já opinamos, referindo-se a esse movimento como “compre localmente” ou outros nomes que levam ao mesmo objetivo de estimular o desenvolvimento interno. Muitos supermercados até identificam prateleiras onde os consumidores podem comprar produtos locais. O que deve ser compreendido, no entanto, é que se toda a sua oferta for local e for mais cara (menos competitiva) do que outras fontes internacionais, os consumidores serão forçados a pagar mais, gerando inflação de alimentos. E isso vai contra a liberdade de escolha.

Danone, Carrefour, Tereos e outras empresas respeitadas podem decidir o que quiserem em termos de fornecimento, mas precisam justificar suas preferências e escolhas com argumentos corretos. Basta informar aos consumidores e ao público (mídia) que comprarão apenas da França ou de outros lugares por razões de desenvolvimento local, ou outras justificativas verdadeiras. Quando a escolha é explicada atacando fornecedores, principalmente sem argumentos factíveis, gera-se uma injustiça e danos à imagem e ao trabalho árduo de empresas, pessoas e países.

Para inspirar futuras declarações e entrevistas de executivos de multinacionais ou até mesmo de empresas locais, os aprendizados com esses casos são: a) Seja transparente nos argumentos para justificar suas escolhas; b) Não ataque a produção de nenhum país, pois isso pode levar a generalizações, falta de respeito, injustiças e demonstrar desconhecimento sobre o mercado; c) Caso ataque, entenda que haverá reações de todos os stakeholders (de fornecedores locais a compradores, influenciadores, imprensa e consumidores) e que essas reações serão potencializadas pela incrível força das redes sociais, causando danos às filiais da empresa e à sua imagem. Felizmente, hoje as redes nos apoiam nessa luta contra a desinformação e a defesa da nossa imagem. Torcemos para ver cada vez menos casos como estes daqui em diante, afinal o aprendizado ficou evidente.


Marcos Fava Neves é professor Titular (em tempo parcial) da Faculdades de Administração da USP (Ribeirão Preto – SP) e fundador da Harven Agribusiness School (Ribeirão Preto – SP). É especialista em Planejamento Estratégico do Agronegócio. Confira textos e outros materiais em harvenschool.com e veja os vídeos no Youtube (Marcos Fava Neves). Agradecimentos a Vinícius Cambaúva e Rafael Rosalino.


Empresas japonesas alertam: Trump pode ser um desastre para os negócios - Camila Pati (Revista Veja)

 Empresas japonesas alertam: Trump pode ser um desastre para os negócios

Tarifas mais altas, guerra comercial com a China e ameaças à indústria automotiva estão no centro das preocupações dos empresários japoneses, segundo pesquisa

Por Camila Pati

Revista Veja, 22/02/2025


Nove em cada dez empresas japonesas dizem que as políticas de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos são ruins para os negócios.  A pesquisa divulgada pela Reuters nesta quinta-feira, 20, mostra a crescente preocupação no Japão que é o investidor estrangeiro direto dos Estados Unidos. Tarifas mais altas, guerra comercial com a China e ameaças à indústria automotiva estão no centro das preocupações dos empresários japoneses. O levantamento foi feito pela Nikkei Research,  queentrevistou 233 empresas anonimamente.

Cerca de 86% dos entrevistados disseram que as medidas políticas de Trump teriam um efeito adverso ou ligeiramente adverso em seu ambiente de negócios, enquanto o restante espera um impacto positivo ou ligeiramente positivo.

Desde que assumiu a presidência dos Estados Unidos, há um mês, Trump impôs tarifas de 25% sobre aço e alumínio, além de 10% sobre produtos chineses, e ameaçou Canadá e México com novas tarifas,  queacabaram suspensas por 30 dias, após acordo. Ele também ordenou planos para tarifas recíprocas contra países que taxam importações dos EUA e medidas contra barreiras não tarifárias.  Nesta quinta-feira, 20, o presidente Lula, em entrevista à rádio Tupi do Rio de Janeiro,  voltou a dizer que se o presidente americano impuser tarifas, o Brasil vai reagir e afirmou que Trump está tentando ser imperador do mundo.

 A percepção negativa das políticas de Trump entre as empresas japonesas aumentou significativamente em relação ao mês anterior, quando o percentual de empresas que viam impacto adverso foi de 73% .

Entre as empresas que veem as políticas de Trump de forma positiva, 37% destacaram a desregulamentação e os cortes de impostos, enquanto outros 37% apontaram o incentivo à produção de combustíveis fósseis. Apesar disso, 16% das empresas adotaram uma postura mais cautelosa em relação a investimentos nos EUA, enquanto 80% não planejam mudanças.


O custo do tarifaço trumpista para as empresas e os consumidores americanos - Márcio Juliboni (Revista Veja)

 Cada emprego criado pela tarifa do aço de Trump, em 2018, custou US$ 380 mil

Em 2018, quando exercia seu primeiro mandato, Trump impôs uma taxa de 25% sobre a importação do aço e preço no mercado americano subiu 19%

Por Márcio Juliboni

Revista Veja, 22/02/2025


O presidente dos Estados UnidosDonald Trump, prometeu novas medidas protecionistas nesta quarta-feira 19. O alvo da vez são as importações de automóveis, semicondutores e medicamentos. O republicano indicou que pode impor tarifas de 25% sobre esses produtos, em linha com as medidas que anunciou nos últimos dias. À medida que assina atos ordenando taxas sobre tudo o que outros países vendem ao país, economistas e empresários americanos temem uma disparada nos custos de produção. Um exemplo do que a ofensiva pode causar é o que ocorreu em 2018, quando Trump, então em seu primeiro mandato, estabeleceu uma tarifa de 25% sobre a importação de aço.

Segundo o centro de estudos Peterson Institute, a medida custou caro aos setores que utilizam o aço em seus produtos. O preço médio da commodity aumentou 19% naquele ano nos Estados Unidos. Como a produção das siderúrgicas americanas cresceu 13,5%, a alta dos preços indica que o setor aproveitou para elevar as margens de lucro. O instituto calcula que a sobretaxa gerou ganhos extras de 2,4 bilhões de dólares às usinas locais. O lucro total do setor saltou mais de 60% naquele ano.

(./.) 

É verdade que o protecionismo trumpista ajudou o setor siderúrgico dos Estados Unidos a criar 8 700 empregos em 2018. Esta é a parte que os apoiadores de Trump mostram a quem critica as sobretaxas. O outro lado, contudo, é que as tarifas elevaram os custos das empresas que utilizam aço em seus produtos. O Peterson Institute estima que, naquele ano, as companhias nessa situação pagaram 5,6 bilhões de dólares a mais para suprir suas necessidades.

Feitas as contas entre os lucros gerados para a siderurgia americana e os custos extras dos setores que dependem da commodity, o Peterson Institute calcula que cada emprego criado pela tarifa do aço, em 2018, custou aos consumidores americanos 380 000 dólares. Não é por acaso, portanto, que, tempos depois, Trump trocou as sobretaxas por um sistema de cotas de importação de produtos siderúrgicos.

O fantasma da inflação é o que mais assusta os economistas críticos à guerra comercial deflagrada pelo republicano. Após anunciar, no mês passado, o estabelecimento de uma taxa de 25% sobre todas as importações provenientes do Canadá e do México – posteriormente adiada por 30 dias -, Trump voltou ao ataque na semana passada. Na segunda-feira 10, assinou uma ordem revogando o sistema de cotas e restabelecendo a cobrança de 25% sobre todo o aço e alumínio importado pelos Estados Unidos. A medida entrará em vigor em 12 de março, e o Brasil deve ser um dos mais penalizados, já que é o segundo maior fornecedor de aço para os americanos, atrás apenas do Canadá.

Na última quinta-feira, 13, o republicano reforçou a investida ao assinar um memorando determinando que diversos órgãos do governo federal analisem as disparidades entre as taxas cobradas pelos Estados Unidos sobre os produtos que importa, e as que o país paga para exportar para seus parceiros comerciais. O objetivo é estabelecer reciprocidade tarifária, igualando as tarifas. O etanol de cana de açúcar brasileiro será um dos mais afetados pelas tarifas recíprocas, e foi usado como exemplo por Trump na ocasião. Enquanto o produto brasileiro paga uma taxa de 2,5% para entrar nos Estados Unidos, o etanol de milho americano é taxado em 18% pela alfândega verde-amarela.


 

Acabou o multilateralismo e a não-proliferação; agora é a vez da truculência dos poderosos e dos nucleares - Augusto de Franco (revista ID)

 Para quem queria realismo, eis aí: o prato está quase cheio

Você duvida? Voltamos a conversar daqui a dois anos



A essa altura já é possível ver que Trump não está brincando, nem blefando, que ele não está apenas ameaçando como técnica de negociação para depois voltar atrás levando vantagem. As pollyannas acham que, passado o atual período em que Trump tem que dar satisfação aos seus eleitores mais radicalizados, as coisas vão voltar ao normal. Não vão. Trump deu uma guinada autoritária e está levando (quase) o mundo todo junto.

Muitas pessoas, porém, ainda não entenderam que Trump não é isolacionista. É o contrário. Ele é intervencionista. Nenhum presidente americano tentou interferir em outras partes do mundo em tão pouco tempo.

Mas essas pessoas, em geral, são negacionistas. Negam realidades que possam lhes causar desconforto emocional. Diante das investidas de um autocrata, repetem sempre as mesmas avaliações furadas: "É pura retórica". "É só bravata". "É apenas tática de negociação". "Logo, logo, vai voltar atrás".

A dura realidade deve ser encarada como é. As democracias liberais devem se preparar para viver num mundo onde os EUA não são mais aliados, mas inimigos. Para todos os efeitos práticos os EUA sob domínio MAGA devem ser considerados como fazendo parte, objetivamente, do eixo autocrático. As democracias liberais devem se armar (inclusive com armas nucleares), conquistar autonomia energética (inclusive com usinas nucleares) e investir em tecnologia de ponta - em inteligência artificial, biologia sintética e infraestrutura de comunicação (inclusive por satélite). Para tudo isso, devem configurar ambientes de pesquisa e inovação capazes de atrair cérebros de todas as partes do mundo. 

O cenário global mudou. Infelizmente. O tratado de não proliferação de armas nucleares (de 1970) faz parte de um mundo que não existe mais. As armas nucleares estão nas mãos, majoritariamente, de ditaduras como Rússia, China, Índia, Paquistão, Coreia do Norte (e, provavelmente, em pouco tempo, Irã). Do lado das democracias tinhamos apenas EUA, França, Grã-Bretanha e Israel. Agora, com os EUA não podendo mais cumprir o papel de defesa do mundo livre, esse tratado dá vantagem ao eixo autocrático contra as democracias. Não faz mais sentido que Coreia do Sul, Taiwan e Japão não tenham armas nucleares para dissuadir invasões da Coreia do Norte e da China. Se a OTAN, sabotada pelos EUA, não vai defender a Ucrânia, a Moldávia, a Romênia, a Georgia, a Lituânia, a Letônia, a Estônia, a Finlândia, a Suécia e a Polônia, então esses países precisam ter como se defender da Rússia.

“Ah! Mas isso vai reeditar a corrida armamentista”. Pois é. Não foram as democracias liberais que provocaram essa situação. Quem deve ser responsabilizado por tal regressão são os EUA e o eixo autocrático, agora objetivamente alinhados.

As cerca de trinta democracias liberais que restaram devem também consolidar uma coalizão em defesa do mundo livre, apoiar a integridade da União Europeia e defender a Ucrânia - que jamais deve se ajoelhar, haja o que houver, pois não é a Europa que está protegendo a Ucrânia e sim o contrário.

Como escrevi há mais de seis meses,

“União Europeia, Reino Unido, Noruega, Suíça, Canadá, Barbados, Costa Rica, Suriname, Chile, Uruguai, Japão, Coreia do Sul, Taiwan, Israel, Austrália e Nova Zelândia, sem abandonar a ONU atual, têm que liderar agora uma espécie de "Organização das Nações Democráticas Unidas", atraindo dezenas de países em transição democratizante (que ainda podem ser chamados de democracias, conquanto defeituosas ou apenas eleitorais) para essa articulação.

Isso deve ser feito antes que esses países sejam capturados pelo eixo autocrático (como já está acontecendo com os regimes eleitorais parasitados por populismos, a saber: México, Colômbia, Honduras, Bolívia, Brasil, África do Sul e, talvez, Indonésia).

Na pauta deve estar o fortalecimento da União Europeia, o apoio político, financeiro e militar à Ucrânia, o apoio às sanções a Putin, o apoio à democracia israelense (não ao governo Netanyahu), a condenação do terrorismo do Hamas, Hezbollah e IRGC (Guarda Revolucionária Iraniana), o repúdio ao antissemismo (ainda que disfarçado de antissionismo), a defesa de Taiwan contra a invasão da ditadura chinesa e, sobretudo, a auto-defesa (das democracias liberais) contra as investidas do eixo autocrático (Rússia, China, Coreia do Norte, Irã, provavelmente Turquia, Hungria, Síria e outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África, talvez Bharat, Cuba, Venezuela e Nicarágua).”

Enquanto isso, antes que seja muito tarde, núcleos de resistência ao projeto autocratizante de Trump devem se formar em todos os lugares e setores dos EUA. 

Aos que acham que estou exagerando, digo apenas o seguinte. Voltamos a conversar daqui a dois anos.

Isso é o mais puro realismo, embora saibamos que todo realismo político é autocrático. Por isso costumo dizer que quando um realista pronuncia a palavra ‘democracia’ é bom se esconder da polícia. E quando fala a palavra ‘paz’ é melhor correr logo para um abrigo antiaéreo. Mas para quem queria realismo, eis aí. O prato está quase cheio.

Revista ID é uma publicação apoiada pelos leitores.


Política externa, diplomacia, democracia, adequação aos interesses nacionais - Paulo Roberto de Almeida

Política externa, diplomacia, democracia, adequação aos interesses nacionais

Paulo Roberto de Almeida

        Durante toda a minha trajetória como diplomata de carreira, eu sempre fiz uma nítida distinção entre a política externa, ou seja, uma das políticas setoriais de Estado, a diplomacia, ou seja, a ferramenta do Estado para, não conduzir, mas para operar a política externa, e a adequação de ambas ao que eu mesmo concebia como sendo os interesses nacionais, ou seja, uma interpretação subjetiva, mas mais ou menos compatível com o que eu mesmo já tinha aprendido depois de longos anos passados nas bibliotecas e em intensas leituras e a partir de uma atenta observação da realidade, não apenas a do próprio Brasil, onde vivi até os 20 anos, e aquela que observei diretamente a partir dos 21 anos, e durante quase sete anos vivendo na Europa, mas viajando intensamente por vários lugares do mundo.

        Pois bem, voltei ao Brasil em 1977 e, em lugar de começar uma carreira universitária, como era minha vocação e vontade, ingressei mais ou menos por acaso na diplomacia, e servindo ao regime que eu, não apenas desprezava, mas que tinha combatido desde a adolescência, numa precoce politização de esquerda em meados dos anos 1960. Tendo aprendido o que era desenvolvimento, políticas econômicas e política internacional, durante uma nova graduação – eu tinha largado Ciências Sociais na USP depois que o AI-5 cassou meus professores mais admirados: Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni e vários outros –, um mestrado em Economia e um começo de doutoramento em Sociologia Histórica, deixada no meio justamente pela volta ao Brasil. Fazer o concurso (direto, não o vestibular do IRBr) para o Itamaraty significava verificar se eu estava fichado ou não pela ditadura, depois de passar quase sete anos escrevendo contra o regime militar  – meu primeiro trabalho publicado foi este aqui, escrito em novembro de 1972: “L’Etat Brésilien”, Bruxelas, La Revue Nouvelle (Bruxelles, 29, LVIII, 11, spécial Amériques Latines, nov. 1973) – e, por incrível que pareça eu NÃO estava fichado, tanto por que sempre escrevi com nom de plume, e também porque mantive minha identidade não revelada nos contatos com a esquerda exilada. Mas fui fichado pelo SNI logo em 1978, como "diplomata subversivo", como soube muitos anos depois ao consultar o diretório do SNI no Arquivo Nacional de Brasília (tenho de agradecer ao pessoal por ter preservado meu primeiro trabalho de "diplomacia alternativa", que escrevi para o candidato de oposição, nas eleições indiretas que se desenrolavam então).

    A política externa do regime militar, com a esperada exceção dos temas tabu para a ditadura (comunismo, URSS, Cuba, China de Mao, guerrilhas na AL etc.), era praticamente toda ela moldada no Itamaraty, baseada na Política Externa Independente (sem essa designação, obviamente) e parecia se encaixar bastante bem no que se poderia considerar como os objetivos nacionais permanentes da nação: com exceção de um regime democrático, era o desenvolvimento econômico e social (em segundo lugar), a cooperação internacional, a transferência de tecnologia, a integração regional, o multilateralismo, o universalismo de nossas relações, ou seja, o menu tradicional de uma ideologia nacional do desenvolvimento que vinha da era Vargas, tinha sido aperfeiçoada na presidência JK e tinha tido continuidade no Itamaraty desde então (desenvolvimentismo, cepalianismo, uctadianismo etc.).

        Comecei a dissentir precocemente do conjunto de propostas diplomáticas, e de política externa, cabe dizer, quando constatei que, a despeito de todos os discursos (sempre grandiloquentes) e todas as políticas supostamente conducentes para o Santo Graal do desenvolvimento econômico e social, o Brasil continua um país teimosamente atrasado, ou pelo menos não atingia o objetivo ideal de transpor a barreira do desenvolvimento autônomo e sustentado. Isso com base em todos os meus estudos e observações externas, de países desenvolvidos e da imensa maioria de "países em desenvolvimento" (e muitos longe do ideal democrático, como era o nosso até o final da ditadura), de onde eu concluía que tínhamos de mudar de políticas, se desejássemos saltar a barreira, por dificuldades nossas, não de qualquer má vontade das grandes potências no cerceamento do acesso a tecnologias mais avançadas, ou de pouca cooperação na promoção do nosso próprio desenvolvimento. Tendo observado o que dava certo, e o que não dava certo nas políticas ativas manipuladas pelo Estado, comecei a desenhar o caminho alternativo da integração ao bloco dos países desenvolvidos pela via da educação e da produtividade. 

        Desde o início da Rodada Uruguai (estou falando de 1987, portanto), comecei a desconfiar daquela política de "tratamento preferencial e mais favorável para países em desenvolvimento", o que nos deixava no mínimo denominador comum dos países mais atrasados (inclusive não necessariamente democráticos). O governo Collor já representou uma ruptura com a política externa e a diplomacia conduzidas desde os anos 1950, que atravessou o regime militar e adentrou na redemocratização. Depois das hesitações do governo de transição de Itamar – contra as privatizações, a abertura comercial etc. –, os dois mandatos de FHC representaram uma mudança moderada nas políticas desenvolvimentistas do passado, com uma inclinação favorável à globalização e aos países social-democratas daquele momento. As crises financeiras dos anos 1990, assim como os próprios ajustes que cabia fazer no Plano Real, dificultaram um pouco essa transição (incompleta) para um novo conteúdo de política externa e um novo estilo de diplomacia, menos desenvolvimentista, e mais inclusiva no "clube dos ricos"(OCDE), mais interdependente. Minha resposta ia nessa direção, e por isso era visto com desconfiança pela ortodoxia diplomática. 

        A partir dos anos 2000, adentramos no novo mundo do desenvolvimentismo ativo e altivo, ou seja, o alinhamento com um mal definido Sul Global, a preferência por uma "diplomacia Sul-Sul", a conformação de alianças mais ou menos opostas ao mundo dos "hegemônicos", vale dizer, dos ex-colonialistas europeus e dos americanos imperialistas. Era a política externa da "nova geografia da economia mundial" e a diplomacia anti-hegemônica, que se tornou especialmente dinâmica e visível quando saímos do ambiente limitado da Unasul (anti-OEA, cabe registrar) e do IBAS (Índia e África do Sul apenas) para a grande janela do BRIC, com duas grandes potências, o que aumentava exponencialmente nossa presença no mundo. Eu talvez tenha sido o único diplomata – pelo menos que expressou seu pensamento de maneira aberta – que expressou divergência com tal projeto de aliança política (teoricamente apenas econômica ao início) com duas grandes potências claramente orientadas para um mundo bastante diferente do ambiente em que sempre se movimentou a diplomacia brasileira e a política externa. A questão central em minha oposição ao BRIC – depois expandido a BRICS, pelas mãos da China – era justamente o fato de juntar o Brasil, um país razoavelmente democrático (com deficiências) a duas grandes potências claramente autoritárias, com prioridades de política externa (e até de políticas domésticas) bastante diferentes de nossos interesses gerais na área econômica, política e na política internacional.

        O BRIC-BRICS conheceu um grande sucesso de imagem internacional, pelo menos até o início da guerra da Ucrânia, que coincidiu com a confirmação de uma espécie de consolidação da aliança China-Rússia numa postura claramente antiocidental e antiamericana. Normalmente, a política externa do Brasil, seguida por sua ferramenta diplomática, adotaria uma política de cauteloso distanciamento das grandes divisões geopolíticas de escopo mundial, para nos concentrarmos em nossos interesses tradicionais e imediatos: o desenvolvimento do país, por meio de uma política de relacionamento correto, autônomo com todos os países e grandes potências, independente dessa divisão geopolítica de âmbito mundial, cujas disputas não atendem a esses interesses nacionais. 

        Mas, foi exatamente o que Lula fez, aliás, desde o primeiro mandato, e com muita ênfase, neste terceiro mandato (de fato, desde a campanha eleitoral de 2022): declarar preferência pelo projeto absolutamente vago e indefinido de uma "nova ordem global multipolar", sendo que tal orientação não foi jamais discutida com a sociedade (embora apoiada com entusiasmo pela maior do establishment acadêmico).

        Não tenho nenhuma dificuldade em ser um contrarianista em face dessa orientação que me parece não apenas negativa, mas prejudicial ao Brasil, como Estado, como nação, como democracia, como país promotor da integração regional – que é nossa circunstância geográfica – e como sociedade dotada de princípios e valores que estão diametralmente opostos aos que orientam as políticas estatais das duas grandes potência aliadas no BRICS (e que agora estão ampliando de forma exacerbada o grupo, já identificada com uma agenda antiocidental).

        Esta seria a nossa política externa e a nossa diplomacia pelos dois anos à frente, talvez mais? Tenho dúvidas de que seja razoável ou desejável.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 23/02.2025


Politizando o que deveria ser institucional - Paulo Roberto de Almeida

A politização dos poderes públicos no Brasil, das instituições, das universidades, sempre foi uma constante no Brasil, mas de forma “normal”, artesanal, admitida e entronizada nos costumes. Enfim, o modo artesanal de produção da politização. Ela se tornou sistemática, planejada, desejada e dirigida, assim como a corrupção, sob o reino lulopetista. Enfim, o modo industrial de produção da politização (e da corrupção) no Brasil, como queria o Lênin (copiando Rosa Luxemburgo) para o imperialismo.

Agora chegamos no “estágio superior” no qual a extrema-direita, a mais burra e estúpida, se aproveita largamente dos experimentos do PT para estender sua dominação. E o Lula e o PT contribuem largamente para isso, continuando a politizar tudo e todos os movimentos sociais e institucionais.

Vão desacreditar o próprio julgamento da extrema-direita no STF, um suprema corte já altamente politizada.

Nos EUA ocorre exatamente o mesmo.

Estaremos nisso por um bom tempo.

Infelizmente.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 23/02/2025


Como volta de Trump pode levar a democracia dos EUA ao colapso - Steven Levitsky (FSP)

Como volta de Trump pode levar a democracia dos EUA ao colapso

Steven Levitsky

Professor de ciência política da Universidade Harvard. Autor, entre outros livros, de "Como as Democracias Morrem" e "Como Salvar a Democracia", escritos com Daniel Ziblatt

Lucan A. Way Professor de democracia no departamento de Ciência Política da Universidade de Toronto (Canadá)

Folha de S. Paulo, 23/02/2025

[RESUMO] Cientistas políticos americanos argumentam que a democracia nos EUA está à beira da ruína em seus principais pilares neste segundo mandato de Donald Trump. A isso se seguirá, dizem, não uma ditadura clássica, mas um modelo de autoritarismo competitivo. Embora nesses casos a ordem liberal pareça preservada, autocratas no poder usam sistematicamente a máquina do Estado para reprimir a oposição, usar brechas da lei a seu favor e fortalecer seu poder.

A primeira eleição de Donald Trump à Presidência em 2016 desencadeou uma defesa enérgica da democracia por parte do establishment americano, mas seu retorno ao cargo foi recebido com uma indiferença marcante.

Muitos políticos, comentaristas, figuras da mídia e líderes empresariais que viam Trump como uma ameaça agora tratam essas preocupações como exageradas —afinal, a democracia sobreviveu ao seu primeiro mandato. Em 2025, preocupar-se com o destino da democracia americana tornou-se quase banal.

O momento dessa mudança de humor não poderia ser pior, pois a democracia está em maior perigo hoje do que em qualquer outro momento da história moderna dos EUA. A América tem regredido por uma década: entre 2014 e 2021, o índice anual de liberdade global da Freedom House, que avalia todos os países em uma escala de 0 a 100, rebaixou os Estados Unidos de 92 (empatado com a França) para 83 (abaixo da Argentina e empatado com o Panamá e a Romênia), onde permanece.

Os aclamados controles constitucionais do país estão falhando. Trump violou a regra cardinal da democracia quando tentou reverter os resultados de uma eleição e bloquear uma transferência pacífica de poder.

No entanto, nem o Congresso nem o Judiciário o responsabilizaram, e o Partido Republicano, tentativa de golpe à parte, escolheu-o novamente para disputar a eleição.

Trump conduziu uma campanha abertamente autoritária em 2024, prometendo processar seus rivais, punir a mídia crítica e mobilizar o Exército para reprimir protestos. Ele venceu, e graças a uma decisão extraordinária da Suprema Corte, desfrutará de ampla imunidade presidencial em seu segundo mandato.

A democracia sobreviveu ao primeiro mandato de Trump porque ele não tinha experiência, plano ou equipe. Ele não controlava o Partido Republicano quando assumiu o cargo em 2017, e a maioria dos líderes partidários ainda estava comprometida com as regras democráticas do jogo.

Trump governou com republicanos do establishment e tecnocratas, e eles em grande parte o contiveram. Nada disso é mais verdade. Desta vez, Trump deixou claro que pretende governar com "pessoas leais". Ele agora domina o Partido Republicano, que, purgado de suas forças anti-Trump, consente com seu comportamento autoritário.

A democracia dos EUA provavelmente entrará em colapso durante o segundo governo Trump, no sentido de que deixará de atender aos critérios padrões para uma democracia liberal: sufrágio adulto pleno, eleições livres e justas e ampla proteção das liberdades civis.

O colapso da democracia nos Estados Unidos não dará origem a uma ditadura clássica em que as eleições são uma farsa e a oposição é presa, exilada ou morta. Mesmo no pior cenário, Trump não será capaz de reescrever a Constituição ou derrubar a ordem constitucional.

Ele será contido por juízes independentes, pelo federalismo, pelas Forças Armadas e por altas barreiras à reforma constitucional. Haverá eleições em 2028, e os republicanos poderão perdê-las.

O autoritarismo não requer a destruição da ordem constitucional. O que está por vir não é fascismo ou ditadura de partido único, mas autoritarismo competitivo —um sistema em que os partidos competem nas eleições, mas o abuso de poder do incumbente inclina o campo de jogo contra a oposição.

A maioria das autocracias que surgiram desde o fim da Guerra Fria se enquadra nessa categoria, incluindo o Peru de Alberto Fujimori, a Venezuela de Hugo Chávez e os contemporâneos El Salvador, Hungria, Índia, Tunísia e Turquia. Sob o autoritarismo competitivo, a arquitetura formal da democracia, incluindo eleições multipartidárias, permanece intacta.

As forças de oposição são legais e atuam abertamente, disputam seriamente o poder. As eleições são muitas vezes batalhas ferozmente. E, de vez em quando, os incumbentes perdem, como aconteceu na Malásia em 2018 e na Polônia em 2023.

No entanto, o sistema não é democrático, porque os governantes manipulam o jogo ao usar a máquina do Estado para atacar os oponentes e cooptar críticos. A competição é real, mas injusta.

O autoritarismo competitivo transformará a vida política nos Estados Unidos. Como a enxurrada inicial de ordens executivas de constitucionalidade duvidosa de Trump deixou claro, o custo da oposição pública aumentará consideravelmente: doadores do Partido Democrata podem ser alvos do IRS (Receita Federal dos Estados Unidos), empresas que financiam grupos de direitos civis podem sofrer maior escrutínio fiscal e legal ou ver seus empreendimentos impedidos por reguladores. Veículos de mídia crítica provavelmente enfrentarão processos por difamação ou outras ações legais, bem como políticas retaliatórias contra suas empresas-mãe.

Os americanos ainda poderão se opor ao governo, mas a oposição será mais difícil e arriscada, levando muitos cidadãos a decidirem que a luta não vale a pena. Abandonar a resistência, no entanto, poderia abrir caminho para o enraizamento autoritário, com graves e duradouras consequências para a democracia global.

O ESTADO COMO ARMA

O segundo governo Trump pode violar liberdades civis básicas de maneiras que subvertam inequivocamente a democracia. O presidente, por exemplo, poderia ordenar que o Exército atirasse em manifestantes, como ele supostamente quis fazer durante seu primeiro mandato.

Ele também poderia cumprir sua promessa de campanha de lançar a "maior operação de deportação da história americana", lançando milhões de pessoas em um processo repleto de abusos que inevitavelmente levaria à detenção equivocada de cidadãos americanos.

Todavia, grande parte do autoritarismo que está por vir assumirá uma forma menos visível: a politização e a instrumentalização da burocracia governamental. Estados modernos são entidades poderosas. O governo federal dos EUA emprega mais de 2 milhões de pessoas e tem um orçamento anual de quase US$ 7 trilhões.

Funcionários do governo servem como árbitros importantes da vida política, econômica e social. Eles ajudam a determinar quem é processado por crimes, quando e como regras e regulamentos são aplicados, quais organizações recebem status de isenção fiscal, quais agências privadas obtêm contratos para credenciar universidades e quais empresas obtêm concessões, contratos, subsídios, isenções tarifárias e resgates.

Mesmo em países como os Estados Unidos, com governos relativamente pequenos e livre mercado, essa autoridade cria incontáveis oportunidades para líderes recompensarem aliados e punirem oponentes.

Nenhuma democracia está totalmente livre de tal politização. Todavia, quando os governos transformam o Estado em arma contra seus adversários, usando seu poder para sistematicamente enfraquecer a oposição, eles minam a ordem liberal. A política torna-se uma partida de futebol em que os árbitros e os zeladores do campo trabalham para um time para sabotar seu rival.

É por isso que todas as democracias estabelecidas têm conjuntos elaborados de leis, regras e normas para prevenir a instrumentalização do Estado. Isso inclui judiciários independentes, bancos centrais e autoridades eleitorais e serviços públicos com proteções de emprego. Nos Estados Unidos, o Ato Pendleton de 1883 criou um serviço público profissionalizado em que a contratação é baseada no mérito.

Funcionários federais são proibidos de participar de campanhas eleitorais e não podem ser demitidos ou rebaixados por razões políticas. A grande maioria dos mais de 2 milhões de funcionários federais há muito tempo desfruta de proteção do serviço público. No início do segundo mandato de Trump, apenas cerca de 4.000 deles eram nomeados políticos.

Os Estados Unidos também desenvolveram um extenso conjunto de regras e normas para prevenir a politização de instituições estatais. Isso inclui a confirmação pelo Senado de nomeados presidenciais, mandato vitalício para juízes da Suprema Corte, segurança de mandato para o presidente do Federal Reserve (o Banco Central do país), mandatos de dez anos para diretores do FBI e de cinco anos para diretores do IRS.

As Forças Armadas são protegidas da politização por aquilo que o estudioso jurídico Zachary Price descreve como "uma sobreposição incomumente espessa de estatutos" que governam a nomeação, promoção e remoção de oficiais militares. Embora o Departamento de Justiça, o FBI e o IRS tenham permanecido um tanto politizados até a década de 1970, uma série de reformas pós-Watergate efetivamente encerrou a instrumentalização partidária dessas instituições.

Servidores públicos profissionais muitas vezes desempenham um papel crítico em resistir aos esforços do governo para instrumentalizar agências estatais. Eles têm servido como a linha de frente de defesa da democracia nos últimos anos em países como Brasil, Índia, Israel, México e Polônia, bem como nos Estados Unidos durante o primeiro governo Trump.

Por essa razão, um dos primeiros movimentos realizados por autocratas eleitos —como Nayib Bukele em El Salvador, Chávez na Venezuela, Viktor Orbán na Hungria, Narendra Modi na Índia e Recep Tayyip Erdogan na Turquia— tem sido purgar servidores de agências públicas responsáveis por coisas como investigar e processar irregularidades, regular a mídia e a economia e supervisionar eleições. Eles são substituídos por parceiros leais ao mandatário.

Depois que Orbán se tornou primeiro-ministro em 2010, seu governo retirou dos funcionários públicos proteções essenciais, demitiu milhares e os substituiu por membros leais do partido governante Fidesz. Da mesma forma, o partido Lei e Justiça da Polônia enfraqueceu as leis ao eliminar o processo de contratação competitiva e preencher a burocracia, o Judiciário e as Forças Armadas com aliados partidários.

Trump e seus aliados têm planos semelhantes. Por exemplo, americano reviveu seu esforço do primeiro mandato para enfraquecer o serviço público ao reinstaurar o Schedule F, uma ordem executiva que permite ao presidente retirar de dezenas de milhares de funcionários do governo proteções legais em cargos considerados "de caráter confidencial, determinante de políticas, formulador de políticas ou defensor de políticas."

Caso implementado, o decreto possibilitará que esses servidores públicos sejam facilmente trocados por nomes políticos. O número de nomeações partidárias, já mais alto no governo dos EUA do que na maioria das democracias estabelecidas, poderia aumentar mais de dez vezes.

A Heritage Foundation e outros grupos de direita gastaram milhões de dólares recrutando e avaliando um exército de até 54 mil pessoas leais a Trump para ocupar cargos no governo. Essas mudanças poderiam ter um efeito mais amplo de intimidação, desencorajando críticas ao presidente.

Finalmente, a declaração de Trump de que demitiria o diretor do FBI, Christopher Wray, e o diretor do IRS, Danny Werfel, antes do fim de seus mandatos levou ambos a renunciar, abrindo caminho para trumpistas com pouca experiência assumirem o comando.

Trocas assim no Departamento de Justiça, no FBI e no IRS podem levar o governo a usar essas agências para três fins antidemocráticos: investigar e processar rivais, cooptar a sociedade civil e livrar aliados de processos.

CHOQUE E LEI

O meio mais visível de transformar o Estado em arma é através de processos direcionados. Praticamente todos os governos autocráticos eleitos utilizam ministérios da Justiça, escritórios de promotores públicos e agências fiscais e de inteligência para investigar e processar políticos rivais, empresas de mídia, editores, jornalistas, líderes empresariais, universidades e outros críticos.

Em ditaduras tradicionais, críticos são frequentemente acusados de crimes como sedição, traição ou conspiração para insurreição, mas autocratas contemporâneos tendem a processá-los por ofensas mais mundanas, como corrupção, evasão fiscal, difamação e até mesmo violações menores de regras obscuras.

Se os investigadores procurarem o suficiente, geralmente podem encontrar infrações pequenas, como renda não declarada ou descumprimento de regulamentos raramente aplicados.

Trump declarou repetidamente sua intenção de processar seus rivais, incluindo a ex-representante republicana Liz Cheney e outros legisladores que serviram no comitê da Câmara que investigou o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio dos EUA. Em dezembro de 2024, republicanos da Câmara pediram uma investigação do FBI sobre Cheney.

Os esforços da primeira administração Trump para usar o Departamento de Justiça como arma foram em grande parte frustrados internamente, então desta vez ele buscou nomear pessoas que compartilhassem seu objetivo de perseguir adversários.

Sua indicada para procuradora-geral, Pam Bondi, declarou que os promotores que investigaram Trump serão processados, e sua escolha para diretor do FBI, Kash Patel, repetidamente pediu que rivais fossem investigados. Em 2023, Patel até publicou um livro com uma lista de funcionários públicos "inimigos" a serem alvos.

Como a administração Trump não controlará os tribunais, a maioria dos alvos de processos seletivos não acabará na prisão, mas o governo não precisa prender seus críticos para causar danos a eles.

Pessoas investigadas serão forçadas a dedicar tempo, energia e recursos consideráveis para se defender; gastarão suas economias com advogados; terão suas carreiras e reputações maculadas. No mínimo, sofrerão meses ou anos de ansiedade e noites sem dormir com suas famílias.

Os esforços para assediar adversários não se limitarão ao Departamento de Justiça e ao FBI. Uma variedade de agências e órgãos pode servir ao mesmo objetivo. Governos autocráticos, por exemplo, rotineiramente usam autoridades fiscais para mirar opositores em investigações politicamente motivadas.

Na Turquia, o governo Erdogan destruiu o grupo de mídia Dogan Yayin, cujos jornais e redes de TV estavam relatando corrupção governamental, acusando-o de evasão fiscal e impondo uma multa esmagadora de US$ 2,5 bilhões, o que forçou a família Dogan a vender seu império a aliados do governo. Erdogan também usou auditorias fiscais para pressionar o Grupo Koc, o maior conglomerado industrial do país, a abandonar seu apoio a partidos de oposição.

Trump poderia agir de forma semelhante. Um influxo de nomeações políticas potencialmente deixaria doadores democratas na mira. Como todas as doações de campanha individuais são divulgadas publicamente, seria fácil identificar essas pessoas; de fato, o medo de tal direcionamento poderia dissuadir indivíduos de contribuir para políticos de oposição em primeiro lugar.

O status de isenção fiscal também pode ser politizado. Em seu governo, Richard Nixon trabalhou para negar ou atrasar essa classificação para organizações e think tanks consideradas politicamente hostis.

Sob Trump, tais esforços seriam facilitados por uma legislação antiterrorismo aprovada em novembro de 2024 pela Câmara dos Representantes, o que autoriza o Departamento do Tesouro a retirar o status de isenção fiscal de qualquer organização suspeita de apoiar o terrorismo, sem a necessidade de divulgar evidências para justificar tal ato.

Como "apoio ao terrorismo" pode ser definido de forma muito ampla, Trump poderia, nas palavras do representante democrata Lloyd Doggett, "usá-lo como uma espada contra aqueles que vê como seus inimigos políticos."

Da mesma maneira, quase certamente o Departamento de Educação servirá de munição contra universidades, que, por serem centros de ativismo de oposição, despertam a ira de governos autoritários competitivos.

O Departamento de Educação distribui bilhões de dólares em financiamento federal para universidades, supervisiona as agências responsáveis pela avaliação de faculdades e aplica o cumprimento dos Títulos 6º e 9º, leis que proíbem instituições educacionais de discriminar com base em raça, cor, origem nacional ou sexo. Essas capacidades raramente foram politizadas no passado, mas líderes republicanos pediram seu uso contra escolas de elite.

Autocratas eleitos também rotineiramente usam processos por difamação e outras formas de ação legal para silenciar seus críticos na mídia. No Equador, em 2011, o então presidente Rafael Correa ganhou um processo de US$ 40 milhões contra um colunista e três executivos de um jornal que publicou um editorial chamando-o de "ditador."

Embora figuras públicas raramente ganhem tais processos nos Estados Unidos, Trump fez amplo uso de uma variedade de ações legais para desgastar meios de comunicação, mirando ABC News, CBS News, The Des Moines Register e Simon & Schuster. A estratégia já deu frutos.

Em dezembro de 2024, a ABC tomou a chocante decisão de chegar a um acordo em um processo por difamação movido por Trump, pagando-lhe US$ 15 milhões para evitar um julgamento que provavelmente teria vencido. Os proprietários da CBS também estão supostamente considerando fazer o mesmo, exemplo de como ações legais espúrias podem se mostrar politicamente eficazes.

A administração não precisa atacar diretamente todos os seus críticos para silenciar a maioria das dissidências. Lançar alguns ataques de alto perfil pode servir como um dissuasor eficaz. Uma ação legal contra Cheney seria observada de perto por outros políticos; um processo contra o New York Times ou Harvard teria um efeito intimidante em dezenas de outros meios de comunicação ou universidades.

ARMADILHA DO MEL

Um Estado transformado em arma não é apenas uma ferramenta para punir oponentes. Também pode servir para construir apoio. Governos em regimes autoritários competitivos rotineiramente se valem de políticas econômicas e decisões regulatórias para recompensar indivíduos, empresas e organizações politicamente amigáveis.

Líderes empresariais, empresas de mídia, universidades e outras organizações têm tanto a ganhar quanto a perder com decisões antitruste do governo, a emissão de licenças e permissões, a concessão de contratos governamentais, a dispensa de regulamentos ou tarifas e a isenção fiscal. Se acreditarem que essas decisões são tomadas com base política em vez de técnica, têm um forte incentivo para se alinhar com os incumbentes.

O potencial de cooptação é mais claro no setor empresarial. Em 2023, o governo americano gastou mais de US$ 750 bilhões, ou quase 3% do PIB, na concessão de contratos.

Para autocratas aspirantes, decisões políticas e regulatórias são poderosas cenouras e bastões para atrair apoio empresarial. Esse tipo de lógica patrimonial ajudou autocratas na Hungria, Rússia e Turquia a garantir a cooperação do setor privado.

Se Trump enviar sinais de que se comportará de maneira semelhante, as consequências políticas serão de longo alcance. Se líderes empresariais se convencerem de que é mais lucrativo evitar financiar candidatos de oposição ou investir em mídia independente, eles mudarão seu comportamento.

De fato, o comportamento deles já começou a mudar. No que a colunista do New York Times Michelle Goldberg chamou de "a Grande Capitulação", poderosos CEOs que antes criticavam o comportamento autoritário de Trump agora estão correndo para se encontrar com ele, elogiá-lo e dar-lhe dinheiro. Amazon, Google, Meta, Microsoft e Toyota doaram cada uma US$ 1 milhão para financiar a posse presidencial, mais do que o dobro de suas doações inaugurais anteriores.

No início de janeiro, a Meta, dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, anunciou que estava abandonando suas operações de checagem de fatos —uma medida que Trump se gabou de "provavelmente" ter resultado de suas ameaças de tomar medidas legais contra o CEO da empresa, Mark Zuckerberg. O próprio Trump reconheceu que em seu primeiro mandato "todos estavam lutando contra mim", mas agora "todos querem ser meus amigos".

Um padrão semelhante está surgindo no setor de mídia. Quase todos os principais veículos dos EUA —ABC, CBS, CNN, NBC, The Washington Post— são de propriedade e operados por grandes corporações.

Embora Trump não possa cumprir sua ameaça de reter licenças de redes de televisão nacionais, pode pressionar seus proprietários corporativos.

O Washington Post, por exemplo, é controlado por Jeff Bezos, cuja maior empresa, a Amazon, compete por grandes contratos federais. Da mesma forma, o dono do Los Angeles Times, Patrick Soon-Shiong, vende produtos médicos sujeitos à revisão pela Administração de Alimentos e Medicamentos. Antes das eleições presidenciais de 2024, os dois anularam os endossos planejados de seus jornais à democrata Kamala Harris.

ESCUDO AUTORITÁRIO

Finalmente, um Estado transformado em arma pode servir como um escudo legal para proteger funcionários do governo ou aliados que tiveram comportamentos antidemocráticos.

Um Departamento de Justiça leal, por exemplo, poderia fechar os olhos para atos de violência política pró-Trump, como ataques ou ameaças contra jornalistas, funcionários eleitorais, manifestantes ou políticos e ativistas da oposição. Também poderia se recusar a investigar casos de intimidação de eleitores ou até mesmo manipular os resultados das eleições.

Isso já aconteceu nos Estados Unidos. Durante e após a Reconstrução, a Ku Klux Klan e outros grupos armados de supremacia branca, com laços com o Partido Democrata, realizaram campanhas de terror violentas em todo o Sul, assassinando políticos negros e republicanos, incendiando casas, empresas e igrejas negras, cometendo fraudes eleitorais e ameaçando, espancando e matando cidadãos negros que tentavam votar.

Essa onda de terror, que ajudou a estabelecer quase um século de governo de partido único em todo o Sul, foi possibilitada pela conivência das autoridades de aplicação de leis estaduais e locais, que rotineiramente fechavam os olhos para a violência e sistematicamente não responsabilizavam seus perpetradores.

Os Estados Unidos experimentaram um aumento acentuado na violência de extrema direita durante o primeiro governo Trump. As ameaças contra membros do Congresso cresceram mais de dez vezes. Uma das consequências: segundo o senador republicano Mitt Romney, o medo da violência dos apoiadores de Trump dissuadiu alguns senadores republicanos de votar pelo seu impeachment após o ataque de 6 de janeiro de 2021.

Por quase todas as medidas, a violência política diminuiu após a invasão ao Capitólio, em parte porque centenas de participantes do ato foram condenados e presos. Mas agora o perdão de Trump a quase todos os insurrecionistas enviou uma mensagem de que atores violentos ou antidemocráticos serão protegidos.

Tais sinais encorajam o extremismo violento. Neste segundo mandato de Trump, críticos do governo e jornalistas independentes quase certamente enfrentarão ameaças mais frequentes e até mesmo ataques diretos.

Nada disso seria inteiramente novo para os Estados Unidos. J. Edgar Hoover, diretor do FBI, usou a agência como arma política para os seis presidentes. A administração Nixon utilizou o Departamento de Justiça e outras agências contra seus inimigos. O período atual, contudo, difere em aspectos importantes.

Os padrões democráticos globais aumentaram consideravelmente. Por qualquer medida contemporânea, os Estados Unidos eram consideravelmente menos democráticos na década de 1950 do que são hoje. Um retorno às práticas de meados do século 20 constituiria, por si só, retrocesso democrático significativo.

Mais importante, o próximo uso do governo como arma provavelmente irá muito além das práticas de meados do século 20. Há 50 anos, ambos os principais partidos dos EUA eram internamente heterogêneos, relativamente moderados e amplamente comprometidos com as regras democráticas do jogo.

Hoje, esses partidos estão muito mais polarizados. O Republicano radicalizado abandonou seu compromisso de longa data com as regras democráticas básicas, incluindo aceitar a derrota eleitoral e rejeitar inequivocamente a violência.

Além disso, grande parte do partido Republicano agora abraça a ideia de que as instituições da América —desde a burocracia federal e escolas públicas até a mídia e universidades privadas— foram corrompidas por ideologias de esquerda.

Pelo mundo, movimentos autoritários também acusam inimigos de subverter as instituições de seu países; líderes autocráticos, incluindo Erdogan, Orbán e Nicolás Maduro, da Venezuela, com frequência promovem tais alegações.

Essa visão de mundo tende a justificar, e até motivar, o tipo de expurgo e loteamento de cargos que Trump promete. Enquanto Nixon trabalhou secretamente para fazer do Estado uma arma e enfrentou oposição republicana quando esse comportamento veio à tona, o Partido Republicano de hoje encoraja abertamente tais abusos.

A transformação do Estado em arma tornou-se estratégia republicana. O partido que uma vez abraçou o ditado de campanha do presidente Ronald Reagan, segundo o qual o governo era a fonte dos problema, agora abraça entusiasticamente o governo como forma de munição política.

Usar o Poder Executivo dessa maneira é o que os republicanos aprenderam com Orbán. O autocrata húngaro ensinou uma geração de conservadores que o Estado não deve ser desmantelado, mas sim usado em busca de causas de direita e contra oponentes.

É por isso que a pequena Hungria se tornou um modelo para tantos apoiadores de Trump. Instrumentalizar o Estado não é uma nova característica da filosofia conservadora —é uma característica antiga do autoritarismo.

IMUNIDADE NATURAL?

A administração Trump pode descarrilar a democracia, mas é improvável que consolide o governo autoritário. Os Estados Unidos possuem várias fontes potenciais de resiliência. As instituições americanas são mais fortes do que as da Hungria, Turquia e de outros países com regimes autoritários competitivos.

O Judiciário independente, o federalismo, o bicameralismo e as eleições de meio de mandato —fatores ausentes na Hungria, por exemplo— provavelmente limitarão o alcance do autoritarismo de Trump.

Trump também é politicamente mais fraco do que muitos autocratas eleitos bem-sucedidos. Líderes autoritários causam mais danos quando desfrutam de amplo apoio público: Bukele, Chávez, Fujimori e Vladimir Putin ostentavam índices de aprovação acima de 80% quando lançaram golpes de poder autoritários.

Tal apoio público esmagador ajuda os líderes a garantir as supermaiorias legislativas ou vitórias plebiscitárias esmagadoras necessárias para impor reformas que consolidam o governo autocrático. Também ajuda a dissuadir rivais intrapartidários, juízes e até mesmo grande parte da oposição.

Líderes menos populares, por outro lado, enfrentam maior resistência de legislaturas, tribunais, sociedade civil e até mesmo de seus próprios aliados. Seus golpes de poder são, portanto, mais propensos a falhar. O peruano Pedro Castillo e o sul-coreano Yoon Suk-yeol tinham índices de aprovação abaixo de 30% quando tentaram tomar o poder de forma extraconstitucional, e ambos falharam.

O índice de aprovação de Jair Bolsonaro estava bem abaixo de 50% quando tentou orquestrar um golpe para reverter a eleição presidencial de 2022. Ele também foi derrotado nas urnas e declarado inelegível por 8 anos.

O índice de aprovação de Trump nunca ultrapassou 50% durante seu primeiro mandato, e uma combinação de incompetência, políticas impopulares e polarização partidária provavelmente limitará seu apoio durante este novo mandato. Um autocrata eleito com índice de aprovação de 45% é perigoso, mas menos do que um com 80% de apoio.

A sociedade civil é outra fonte potencial de resiliência democrática. Uma razão importante pela qual as democracias ricas são mais estáveis é que o desenvolvimento capitalista dispersa recursos humanos, financeiros e organizacionais para longe do Estado, gerando poder de contraposição na sociedade.

A riqueza não liberta completamente o setor privado das pressões impostas por um Estado transformado em arma. No entanto, quanto maior e mais rico for um setor privado, mais difícil será capturá-lo totalmente ou intimidá-lo à submissão.

Além disso, cidadãos mais ricos possuem mais tempo, habilidades e recursos para se juntar ou criar organizações cívicas ou de oposição —e como dependem menos do Estado para seu sustento do que cidadãos pobres, estão em melhor posição para protestar ou votar contra o governo.

Comparadas às de outros regimes autoritários competitivos, as forças de oposição nos Estados Unidos são bem organizadas, bem financiadas e eleitoralmente viáveis, o que as torna mais difíceis de cooptar, reprimir e derrotar nas urnas.

FALHAS NA ARMADURA

Ainda assim, mesmo uma inclinação modesta do campo de jogo poderia prejudicar a democracia americana. As democracias exigem uma oposição robusta, e oposições robustas devem ser capazes de contar com um grande e renovável pool de políticos, ativistas, advogados, especialistas, doadores e jornalistas.

Um Estado transformado em arma põe em perigo tal oposição. Embora os críticos de Trump não sejam presos, exilados ou banidos da política, o custo elevado da oposição pública levará muitos deles a se retirarem para as margens políticas.

Diante de investigações do FBI, de auditorias fiscais, audiências no Congresso, processos judiciais, assédio online ou a perspectiva de perder oportunidades de negócios, muitas pessoas que normalmente se oporiam ao governo podem concluir que simplesmente não vale o risco ou o esforço. Esse processo de autoexclusão talvez não atraia muita atenção pública, mas teria graves consequências.

Diante de investigações iminentes, políticos promissores, tanto republicanos quanto democratas, deixam a vida pública. CEOs em busca de contratos governamentais, isenções tarifárias ou decisões antitruste favoráveis param de contribuir com candidatos democratas, de financiar iniciativas de direitos civis ou democracia, e de investir em mídia independente.

Veículos de notícias cujos proprietários se preocupam com processos judiciais ou assédio governamental restringem suas equipes investigativas e seus repórteres mais agressivos. Editores praticam autocensura, suavizando manchetes e optando por não publicar matérias críticas ao governo.

E líderes universitários, temendo investigações governamentais, cortes de financiamento ou impostos punitivos sobre doações, reprimem protestos no campus, removem ou rebaixam professores mais combativos e permanecem em silêncio diante do crescente autoritarismo.

Estados usados como arma criam um problema difícil de ação coletiva para as elites do establishment que, em teoria, prefeririam a democracia ao autoritarismo competitivo.

Os políticos, CEOs, proprietários de mídia e reitores de universidades que modificam seu comportamento diante de ameaças autoritárias estão agindo racionalmente, fazendo o que consideram melhor para suas organizações. Tais atos de autopreservação, contudo, têm um custo coletivo.

À medida que atores individuais se retiram para as margens ou se autocensuram, a oposição social enfraquece. O ambiente midiático torna-se menos crítico. E a pressão sobre o governo autoritário diminui.

A retração da oposição social pode ser pior do que parece. Observamos isso quando atores relevantes se autoexcluem, quando políticos se aposentam, reitores de universidades renunciam ou veículos de mídia mudam sua programação e pessoal.

Mais difícil é ter a percepção de uma oposição que poderia ter se materializado em um ambiente menos ameaçador —os jovens advogados que decidem não se candidatar a cargos públicos; os jovens escritores aspirantes que decidem não se tornar jornalistas; os potenciais denunciantes que decidem não se manifestar; os inúmeros cidadãos que decidem não participar de um protesto ou se voluntariar para uma campanha.

MANTENHA A LINHA

A América está à beira do autoritarismo competitivo. A administração Trump já começou a cooptar instituições estatais e a usá-las contra os oponentes. A Constituição sozinha não pode salvar a democracia dos EUA. Mesmo as constituições mais bem elaboradas têm ambiguidades e lacunas que podem ser exploradas para fins antidemocráticos.

Afinal, a mesma ordem constitucional que sustenta a democracia liberal contemporânea dos Estados Unidos permitiu quase um século de autoritarismo e segregação racial no sul do país, a "internação" em massa de nipo-americanos durante a Segunda Guerra e o macarthismo nos anos 1950.

Em 2025, os Estados Unidos são governados nacionalmente por um partido com maior vontade e poder de explorar ambiguidades constitucionais e legais para fins autoritários do que em qualquer outro momento nos últimos dois séculos.

Trump será vulnerável. O apoio público limitado da administração e os erros inevitáveis criarão oportunidades para forças democráticas —no Congresso, nos tribunais e nas urnas.

A oposição, contudo, só pode vencer se permanecer no jogo. Sob autoritarismo competitivo, ela se torna extenuante. Desgastados por assédio e ameaças, muitos críticos de Trump serão tentados a se retirar para as margens.

Tal retirada seria perigosa. Quando o medo, o cansaço ou a resignação suprimem o compromisso dos cidadãos com a democracia, o autoritarismo emergente começa a criar raízes.

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2025/02/como-volta-de-trump-pode-levar-democracia-dos-eua-ao-colapso.shtml 


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