domingo, 20 de julho de 2025

Entrevista 'O Brasil já está condenado como na Inquisição', afirma Ricupero - Rosana Hessel (Correio Braziliense)

Entrevista
'O Brasil já está condenado como na Inquisição', afirma Ricupero

A abertura de investigação contra o Brasil, pelos Estados Unidos, no âmbito da Seção 301, já tem resultado, como na Inquisição, na avaliação do diplomata, mas medida poderá ajudar o país a ganhar tempo até a aplicação da sobretaxa.

Por Rosana Hessel
Correio Braziliense, 20/07/2025
https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2025/07/amp/7205601-o-brasil-ja-esta-condenado-como-na-inquisicao-afirma-ricupero.html

A abertura da investigação contra o Brasil, pelos Estados Unidos, no âmbito da Seção 301 da Lei Comercial norte-americana, abriu mais um flanco na disputa comercial entre os dois países, mas pode ser positiva o governo brasileiro ganhar tempo na entrada em vigor da sobretaxa de 50% sobre os produtos brasileiros, prevista para 1º de agosto, na avaliação do diplomata e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero. "Isso pode permitir, primeiro, quem sabe, um prazo maior, porque a investigação não vai terminar no dia 1º de agosto. E, como há sessão marcada para o dia 3 de setembro, haveria mais tempo", afirma Ricupero, em entrevista ao Correio, na quinta-feira (17), por telefone.

Na avaliação do ex-ministro, contudo, o Brasil já está condenado antes mesmo de se defender na audiência marcada para 3 de setembro pelo representante de comércio dos EUA, o USTR, e não terá a mínima chance, "como no tribunal da Inquisição", na Idade Média. "Ele já está condenado", afirma. Para ele, o presidente dos EUA, Donald Trump, resolveu abrir o processo para tentar dar alguma justificativa às medidas contra o Brasil que não têm fundamento do ponto de vista técnico, mas seguirá uma estratégia de forçar uma negociação permanente.

Leia também: Lula critica revogação de visto de Moraes pelos EUA: "Medida arbitrária"
Diplomata de carreira, Ricupero não poupa críticas ao modus operandi de Trump e do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seu filho, o deputado licenciado Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que está sendo patrocinado pelo ex-capitão em solo norte-americano. "O Eduardo Bolsonaro está cometendo um suicídio político. Ele, dificilmente, no futuro vai ter condições de poder enfrentar a opinião pública brasileira", profetiza. A seguir, os principais trechos da entrevista:

O governo dos Estados Unidos no âmbito da Seção 301 e chegou a atacar o Pix e o comércio da 25 de Março, em São Paulo. Como o senhor avalia a reação do Brasil?

Bem, eu vejo a situação como, de fato, uma ameaça grave. Indo por partes, isso começou no dia 9 de julho, quando ele enviou aquela mensagem ao Lula por canais extraoficiais, tanto que que o Itamaraty depois teve que chamar o encarregado de negócios para confirmar se aquela mensagem era autêntica ou não. Normalmente, uma mensagem de um presidente a outro vem por canais oficiais, vem da Embaixada, que envia o Ministério das Relações Exteriores, que encaminha ao presidente da República. Existe um protocolo, mas o Trump mandou por uma mídia social qualquer, tanto que a mensagem foi devolvida, porque não vinha de acordo com as normas usuais. E essa mensagem misturava dois tipos de assunto. A primeira parte da carta era uma referência ao que ele considera perseguição a Bolsonaro e às decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) relativas ao conteúdo das plataformas, das big techs. E a segunda parte era mais parecida a essas mensagens que ele envia a muitos países, como a União Europeia, o Japão, a Coreia do Sul, o México e o Canadá, ameaçando em cada caso aplicar uma tarifa num determinado nível, se eles não negociarem, e colocando um prazo. Então, são duas mensagens em uma, porque são dois temas diferentes. O primeiro tema é, obviamente, fora de qualquer possibilidade de negociação.

Pode explicar melhor?

É uma contestação à ação de um Poder soberano do Brasil, que é o Judiciário. Inclusive, uma mensagem enviada a um destinatário errado, porque o Lula não tem nada a ver nem com a punição do Bolsonaro, nem com as decisões do Supremo. O Bolsonaro foi condenado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por causa daquela reunião que ele fez com embaixadores, no Palácio do Alvorada. E ele está respondendo, agora, a outro processo do STF, acusado de conspiração. Ainda que o Lula quisesse responder, ele não tem o que responder, porque isso deveria ser dirigido ao Judiciário. Essa é uma parte inegociável, que não pode ser objeto de nenhum tipo de consideração. Agora, a outra parte, que é a questão do comércio, não é diferente do que Trump tem feito com um número enorme de países.

Qual a sua interpretação da Seção 301?

A minha impressão é que isso aconteceu, porque o governo Trump se deu conta de que a aplicação de sanções de tarifas ao Brasil num contexto de um tema político de soberania era uma medida ilegal até do ponto de vista norte-americano. O Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman, por exemplo, escreveu duas postagens na internet citando a lei comercial mostrando quais eram os casos em que um presidente norte-americano poderia impor tarifas. Nenhum dos casos se enquadra no caso brasileiro. Acho que eles ficaram alertados para a falta de uma base legal e resolveram abrir essa investigação da Seção 301. Como a lei exige, eles mandaram esse documento de 15 páginas em que relacionam um número enorme de questões, até desconexas, porque vão do comércio da 25 de Março até o desmatamento da Amazônia. Porque no caso da alegação política, como eu disse, você não teria nem onde começar, não teria nem por onde dialogar. Nesse caso, não. Isso segue uma regulamentação. O USTR, inclusive, estabelece as audiências públicas e já tem uma marcada para 3 de setembro. Nessas audiências, ouvem-se as partes. Ao menos, agora, o governo norte-americano oferece um processo. Só que não dá qualquer garantia de imparcialidade.

Por quê?

Estamos falando de Trump. Esse mecanismo 301 é antigo, não é de agora. Quando fui embaixador do Brasil, no GATT, em Genebra, de 1987 a 1991, durante quase toda a rodada do Uruguai, eu era o chefe da delegação do Brasil lá em Genebra, que, agora, é a sede da Organização Mundial do Comércio (OMC). Na época que eu estava lá, os EUA já tinham acionado essa Seção 301, no caso do Brasil, sobre as patentes para remédios. Eles alegavam que o Brasil não reconhecia patentes para medicamentos nem o processo. É uma coisa antiga, tem mais de 30 anos. Não só o Brasil, mas também os outros países nunca admitiram a legalidade desse mecanismo, porque, pela lei internacional, teriam que pedir uma investigação na OMC, pelo Departamento de Solução de Controvérsias. Mas, obviamente, esse mecanismo deles é totalmente unilateral e parcial, porque é um tribunal em que o mesmo país é promotor público, é juiz e é executante do processo. É como se a mesma pessoa fosse o acusador, o juiz que dá a sentença e o carrasco que executa. É óbvio que é um tipo de mecanismo em que o acusado não tem a mínima chance. Ele (o Brasil) já está condenado, como tribunal da inquisição. Quem era denunciado à Inquisição nunca saía inocentado. Por definição, é culpado.

O senhor não está otimista?

Eu não sou otimista. O fato de eles mandarem essa carta com 15 páginas, em que todo mundo discute um argumento e outro, mas, no fundo, é claro, até por uma questão de dignidade, mostrar que tudo é bobagem. Mas você não pode ter muita esperança de que o resultado vai ser a condenação. Apenas a única coisa que eu diria é que isso pode permitir, primeiro, quem sabe, um prazo maior. Porque a investigação não vai terminar no dia 1º de agosto. E, como há sessão marcada para o dia 3 de setembro, haveria mais tempo. Seria bom se pudesse ter um prazo maior, porque é como no caso dos outros países, o prazo foi sendo estendido cada vez mais. E também porque acho que, com o atual governo dos EUA, o máximo que se pode desejar não é um acordo definitivo, mas é uma espécie de estado de negociação permanente, porque ele sempre reabre. O máximo que vai acontecer é negociar uma sanção menor do que essa de 50%.

Agora, é curioso que esse estado de negociação permanente parece uma marca do Trump. Ele estica a corda para depois negociar?

Ele quer deixar o adversário sempre desestabilizado. E, com isso, ele está sempre tomando novas iniciativas para obter mais concessões. Agora, eu acho que há muitas ilusões. Muita gente tem falado, até colegas meus diplomatas, dizem, que precisamos negociar, por exemplo, o etanol, porque o Brasil tem uma tarifa maior, de 16%, 18%, do que a tarifa deles sobre o nosso etanol e cana-de-açúcar. Agora, todas as pessoas que dizem isso estão partindo de uma pressuposição equivocada, a de que nós nunca quisemos negociar. A verdade é que isso não é certo.

Como assim?

O Brasil tentou negociar várias vezes e eles que é que não quiseram. É preciso lembrar uma frase que os americanos usam muito, eles dizem que para dançar o tango você precisa de duas pessoas. E a negociação é a mesma coisa. O Brasil, no mês de março, mandou uma missão aos Estados Unidos e tentou negociar. Essa presunção que está sendo repetida aqui não é verdadeira. Não é verdadeira. O Brasil sempre esteve disposto a negociar o comércio. Ele nunca quis negociar questões de soberania nacional. As pessoas que falam em negociação sobre o etanol, ou não conhecem, ou estão sendo ingênuas, porque o Brasil tentou negociar o etanol sugerindo que os americanos fizessem concessões, ou em suco de laranja, porque encontramos muitas barreiras no mercado norte-americano para o suco de laranja por causa da Flórida. Eles não aceitaram nem conversar sobre uma coisa nem sobre outra. Essas pessoas que fazem essas declarações pensam que os americanos estão de boa-fé. Mas, eu tenho minhas dúvidas. Na verdade, eles não querem negociar, eles querem extorquir. Eles querem que o Brasil faça concessões unilaterais sem esperar nada em troca.

E o que o senhor acha desse procedimento da Seção 301?

Infelizmente, esse mecanismo, vai demonstrar que eles não estão interessados numa negociação real. Oxalá eu esteja equivocado. Mas os precedentes me levam a crer que na área que eles são protecionistas, eles não vão ceder. Você sabe, as pessoas todas partem da presunção de que eles são os heróis e nós somos os vilões. Mas isso é equivocado. Eles têm protecionismo exacerbado, por exemplo, em açúcar, em arroz, em etanol, em suco de laranja, em algodão. O Brasil já ganhou uma vez um julgamento na OMC contra os Estados Unidos por causa dos subsídios ao algodão. Eles, em vez de retirar os subsídios, preferiram pagar a multa. Pagaram vários milhões de dólares ao Brasil, mas não retiraram os subsídios, porque os subsídios ao algodão decorrem da ação do lobby mais poderoso do Texas. Há muita ignorância sobre o panorama norte-americano, porque, mesmo a média das tarifas deles, que era baixa, agora com o Trump, já no mês de maio, estava em 8,5%, que é praticamente o nível teórico das tarifas brasileiras. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) publicou um documento há pouco tempo mostrando que as tarifas que o Brasil efetivamente aplica aos produtos americanos, como há muitas exceções, são menos de 3%. Na prática, o que é que o Brasil vai negociar?

Então o Brasil não é protecionista em relação aos Estados Unidos?

É, em teoria. No livro tem essas tarifas, mas, na aplicação prática, a tarifa aplicada aos produtos americanos é inferior a 3%. Por isso, é que os americanos têm exportado muito para o Brasil. Basta ver os documentos da AmCham que mostram que o saldo comercial americano aumentou. Então é preciso dizer isso. E a esperança que podemos ter de, pelo menos, reduzir essas tarifas para 10% é usar a ajuda do setor exportador americano. Se nós vamos perder, os americanos vão perder mais, porque eles têm saldo comercial positivo com o Brasil. É um raciocínio muito simples. Se, nos últimos 15 anos, venderam ao Brasil US$ 410 bilhões a mais do que compraram, se zerar o comércio, eles perdem mais.

E no Brasil, quem perde mais?

Os maiores prejudicados são a Embraer, a WEG, fabricante de motores de Santa Catarina, e a Tupi, que exporta ferro fundido. Mas é preciso ver caso a caso. A American Chamber of Commerce, que é uma câmara de comércio norte-americana, publicou um documento dizendo que mais de 6 mil pequenas empresas dos EUA dependem de importação de produtos brasileiros. A melhor esperança que o Brasil pode ter é mobilizar esse setor, porque, obviamente, ele tem mais influência sobre o Trump do que o governo brasileiro ou a nossa diplomacia.

A estratégia não será a via diplomática no caso?

O Trump não é sensível à diplomacia. Ele não fala com diplomata. Ele fala com homens de negócios. Os diplomatas brasileiros são úteis no caso da Seção 301, porque quem vai representar o Brasil vai ser a Embaixada ou o vice-presidente Geraldo Alckmin. O Brasil também pode procurar os diplomatas brasileiros em Washington, por exemplo, para mobilizar os estados americanos em que o Brasil já tem indústria. São vários. Se há 3.800 empresas americanas com investimento no Brasil, por outro lado, há mais de 2.600 empresas brasileiras com investimento nos EUA. É preciso mobilizar esses estados, porque muitos deles são republicanos e têm acesso ao presidente Trump. Há uma ampla gama de coisas que se pode fazer. Mas, sem muita ilusão, porque como eu disse, da parte deles, não há boa-fé. Só espero que essa decisão possa ser negociada quanto ao prazo e quanto ao montante da sobretaxa.

A Lei de Reciprocidade seria um tiro no pé do governo brasileiro?

Não, eu acho que não, porque a Lei de Reciprocidade dá ao Brasil a possibilidade de retalhar se o pior acontecer. A reciprocidade é como uma bomba atômica. Você tem que possuir um elemento para não usar. Você tem que dizer, olha, se você me aplicar tal e tal coisa. Você não me deixa retalhar. Eu não quero fazer isso, mas está nas suas mãos. Nessa investigação, por exemplo, eles fazem acusações infundadas, entre outras, de que o Brasil não protege a propriedade intelectual, de que o Brasil está aplicando taxas sobre serviços de telecomunicação. Você sabe, isso em inglês se chama uma self-fulfilling prophecy, uma profecia autorrealizável. Se eles estão me castigando por uma coisa que eu não estou fazendo, estão me convidando a fazer essa coisa. Isso pode ser utilizado como argumento dentro do processo da Seção 301, porque a impressão que eu tenho é que dentro desse processo, muitas das acusações vão se revelar infundadas, como essa do Pix. Isso vai se desmontar e no fim e vai ficar alguma coisa que eles vão se segurar para aplicar alguma medida. Esse é o cenário mais provável que vai acontecer.

Qual sua avaliação da escolha do vice-presidente Geraldo Alckmin como o negociador após as declarações de Lula na cúpula do Brics?

Primeiro, acho que o Alckmin é o interlocutor ideal. Ele é um conciliador, um homem que tem muito controle do que ele diz. Ele nunca faz declarações sem pensar, acho que ele é o interlocutor ideal para conduzir essa negociação. Por outro lado, independentemente das declarações de Lula na cúpula do Brics, mesmo se ele nunca tivesse dito uma palavra, ele já representa, pelas suas posições tradicionais, algo que é incompatível com o Trump. Certas pessoas têm dito que o Lula deveria tomar o telefone, deveria ir lá conversar com Trump, mas elas esquecem que, quando o Trump recebeu o Volodymyr Zelensky (presidente da Ucrânia), ele passou uma descompostura pública. O Lula também corria o risco de sofrer uma humilhação pública. É preciso tomar cuidado com o que se sugere. Já o Alckmin é diferente. Ele não vai negociar com o Trump. Vai negociar com os setores do governo americano, como o USTR, a Secretaria de Comércio, o Departamento de Estado.

Com a investigação da Seção 301, agora, esses canais são abertos. Antes não tinha. A investigação tem um lado negativo, que é aquele acúmulo de acusações, um pouco sem perna e cabeça, mas por outro lado proporciona, como eu disse, um procedimento com regras. E a investigação prevê audiências públicas, prevê apresentação de documentos. Tudo isso não existia antes, agora vai passar a existir.


As medidas anunciadas por Trump, de certa forma, defendendo o Bolsonaro, na verdade, estão beneficiando o Lula no campo político. As pesquisas da Quaest, por exemplo, mostraram que a aprovação de Lula aumentou e a desaprovação diminuiu. Quer dizer que Trump está ajudando mais o Lula do que o Bolsonaro indiretamente?

Eu concordo plenamente. Esse tipo de medida é contraproducente. Ter o apoio público do Trump é pior do que não ter nenhum apoio. Porque você vê, isso já aconteceu com nas eleições canadenses, há dois, três meses atrás. O Trump apoiou o candidato que era o adversário do atual primeiro-ministro. Perdeu a eleição por causa do Trump. A mesma coisa aconteceu na Austrália. Então, eu acho que vai acontecer aqui também no Brasil, já está acontecendo. Inclusive, como você sabe, tradicionalmente a opinião pública brasileira rejeita a intromissão de uma potência estrangeira. E brasileiros que apareçam conspirando com o governo estrangeiro para prejudicar o Brasil passam a ser rejeitados pela opinião pública brasileira. Acho que o Eduardo Bolsonaro está cometendo um suicídio político. Ele, dificilmente, no futuro, vai ter condições de poder enfrentar a opinião pública brasileira. O que esses brasileiros estão fazendo é castigando o Brasil. Eles são muito desequilibrados. Eles não estão castigando o Lula. Para o Lula, está sendo um presente fantástico para a eleição de 2026. O Lula não sai perdendo, politicamente. Quem sai perdendo são os trabalhadores, os empresários… 

Mal comparando duas personalidades: Lula e Trump - Paulo Roberto de Almeida

Mal comparando duas personalidades: Lula e Trump

P.S. ex-ante: Alguns dos leitores da postagem abaixo estão considerando que eu equiparei Lula e Trump, que supostamente considero ambos exatamente iguais, o que é totalmente errado. Eu falei da maneira de ser, não do caráter ou do efeito real de suas ações, no que eles são absolutamente diferentes, com ações frontalmente opostas no plano interno ou na esfera internacional.

Lula é um populista sinceramente engajado na promoção do povo pobre, ainda que com politicas equivocadas no plano econômico e mesmo social. Lula não é marxista, está longe de qualquer definição ideológica, mesmo se acredita ser um esquerdista, onde acredita devem estar todos aqueles que querem igualdade de oportunidades para aqueles que nunca tiveram nenhuma. 

Também é um anti-imperialista igual a tantos outros (como eu, por exemplo) e um antiamericano anacrônico, e por isso se alia a ditaduras execráveis ao redor do mundo, de direita e de esquerda, desde que sejam antiamericanas ao seu gosto, o que é exatamente o caso do extremista de direita, tirano cruel Vladimir Putin, que leva uma brutal guerra de agressão contra o povo ucraniano, contrária à Carta da ONU e a todos os princípios elementares do Direito Internacional, assim como aos valores constitucionais e aos padrões diplomáticos do Brasil, que Lula parece ignorar completamente. Nesse plano dos nossos valores e princípios, creio que Lula está profundamente equivocado, mas não na esfera de suas intenções. Espero que isso fique bastante claro, ponto.

Trump é um sujeito completamente diferente, de um caráter doentio e perverso, absorvido unicamente por suas próprias ambições mesquinhas e que está destruindo não apenas o seu próprio país, mas tudo aquilo que os EUA fizeram de positivo no mundo nos ultimos 110 anos (por certo muitas coisas erradas, Vietnã, Iraque etc., mas a maior parte certas, como salvando a Europa duas vezes de aventuras totalitárias de poderes agressivos). Trump é um sociopata perigoso, para os EUA e o mundo, que isso fique bastante claro, ponto.


Resumo e termino esta nota introdutória a uma postagem anterior: Eu fiz uma comparação entre duas personalidades pelo lado do egocentrismo megalomaníaco, não quanto a seus respectivos papeis no plano das políticas sociais. Se quiserem notas “diplomáticas” para ambos, Lula fica com 40/100 e Trump com um Zero absoluto (Putin tem menos 50, ou mais, e merece um Nuremberg só seu). PRA

===========

Aqui a postagem original:

No fundo, no fundo, Trump e Lula são muito parecidos, praticamente duas almas gêmeas separadas unicamente pela língua e pelo PIB de cada país, mas unidos pela mesma vocação palanqueira, bravatas mil, espíritos autocentrados, se encantam com as suas próprias palavras, se julgam extraordinariamente espertos e acreditam, piamente, que ninguém consegue ser como si próprios, cada um deles, respectivamente, dispostos a subir o tom quando são desafiados, não aceitam negativas e acham que podem transferir custos para terceiros desde que possam provar que estão certos e que não há nada melhor do que prevalecer sobre tudo e sobre todos, como se o mundo girasse em volta deles mesmos, a exclusão de qualquer concorrente, adversário, auxiliar ou subordinado, todos devidamente enquadrados e submissos à sua vontade exclusiva. Lula tem ligeira vantagem, pois está em 3, ao passo que seu espelho tropeça no 2. 

Cara de um, espelho do outro, perfeitamente simétricos, ainda que no formato reverso, comme il faut!


Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 20/07/2025


sábado, 19 de julho de 2025

A cláusula de nação-mais-favorecida está na origem do multilateralismo - Paulo Roberto de Almeida

 A cláusula de nação-mais-favorecida está na origem do multilateralismo

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Nota sobre o desmantelamento do multilateralismo contemporâneo por Trump.

        Mais de cinco séculos atrás, quando os Estados nacionais começaram a se estruturar no plano institucional, depois constitucional, a cláusula relativamente “recente” (na época) de nação-mais-favorecida (MFN) começou a ser introduzida nos primeiros acordos comerciais feitos entre países até aquela época relativamente fechados e autossustentados, saídos da grande ruptura do Império Romano, mergulhados na fragmentação da Idade Média, quase todos agrícolas, com alguma manufatura urbana e portos comerciais ativos (Liga Hanseática, por exemplo). Era uma cláusula legítima no plano do Direito Internacional nascente – ou seja, todos devem ser tratados igualmente – e que sinalizava uma realidade concreta para os fabricantes e comerciantes nacionais, mas de angústia para os protecionistas, fabricantes de manufaturas ou produtores de produtos agrícolas (grãos, vinhos, azeites).
        Mas os primeiros arranjos comerciais entre os países eram feitos em meio a guerras – civis, de religião, de conquista – tanto no continente europeu, quanto nas possessões coloniais, ainda sendo conquistadas nas Américas e na Ásia, impérios em formação, com fronteiras externas e continentais sempre sujeitas a alterações, o que repercutia em tratados intensamente debatidos nos parlamentos ou gabinetes dos governos. Os tratados comerciais eram necessariamente bilaterais (e assim permanecerão até o século XX) e nem sempre continham a cláusula MFN, que estava mais presente na Lex Mercatoria do que nos tratados entre os países. O tratado de Methuen, por exemplo, concluído pelo ministro inglês em Portugal em 1703 (e que demorou a ser ratificado em ambos os países) não continha essa cláusula MFN, que foi muito discutida nas negociações de Utrecht (1711-1713), que também abrigava discussões paralelas sobre tratados de fronteiras, reconhecimento e comerciais (como entre a França e a Inglaterra).
        O tratado de Methuen se tornou emblemático na história do comércio internacional, sendo usado e citado por Adam Smith, em sua famosa obra sobre a Riqueza das Nações, e também por David Ricardo, em seu discurso sobre o comércio internacional, e permanece até hoje como uma espécie de “página negra” que explicaria o não desenvolvimento industrial de Portugal, e até do Brasil, supostamente dependentes do imperialismo inglês, aceitando, assim, uma relação assimétrica, desigual, abrindo o acesso aos mercados da parte dependente, talvez condenando-a a não desenvolver todo o seu potencial industrializador. O tratado regulava a aceitação, pela Inglaterra, dos vinhos portugueses a uma tarifa preferencial, mas não livre, e o ingresso nos mercados portugueses dos panos ingleses, geralmente de lã (o algodão não estava ainda amplamente disseminado, o que veio algumas décadas mais tarde). Sua grande distinção não esteve tanto na sua assinatura, mas na sua não recusa, dez anos depois, quando se discutiu um tratado de comércio e navegação entre os reinos da Inglaterra (já unificada à Escócia, portanto Grã-Bretanha) e da França, que deveria a rigor reconhecer a cláusula MFN, mas que não foi aceito pelo Parlamento inglês, salvando, assim, o tratado de Methuen.
        A cláusula foi sendo usada, ao longo dos dois séculos seguintes, mas ao sabor dos interesses nacionais de cada parte, geralmente de forma condicionada ou condicional, não ilimitada, irrestrita e incondicional, como veio a ser inserida, sendo mesmo o primeiro grande princípio do sistema multilateral de comércio, no GATT-1947, negociado em Genebra nesse ano, e que deveria ter sido integrado à Carta de Havana (1948), que criou uma primeira Organização Internacional de Comércio (mas que nunca foi ratificada pela maioria dos países que participaram dessa conferência que deveria fechar o tripé aberto na conferência de Bretton Woods (1944).
        Pois bem, a cláusula MFN, junto com o tratamento nacional, não discriminação, reciprocidade, constituiu, ao longo de mais de 80 anos o eixo central do sistema multilateral de comércio, tendo estado na base do crescimento mundial, da prosperidade e das medidas de confiança que tornaram o mundo mais seguro para a paz e não para a guerra. Até que veio Mister Trump, que simplesmente dinamitou, literalmente, completamente, a cláusula MFN e todos os demais princípios do Gatt-1994, denunciando acordos de livre comércio (Nafta, bilaterais etc.) e introduzindo unilateralmente tarifas retaliatórias contra TODOS os países do mundo. Foi a mais completa destruição do sistema internacional desde a IIGM e as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Ou seja, os países não mais estão sendo tratados de forma igual, ou igualitária, mas são obrigados a responder à vontade demencial do presidente americano, que não possui NENHUM critério racional para o estabelecimento de tarifas. O mais curioso, ou estranho, é que ele manipula tarifas como se os exportadores estrangeiros as tivessem de pagar, e não os importadores e consumidores americanos, o que revela, uma vez mais, o quão desequilibrado, ignorante e autoritário é esse mandatário, que se imagina o dono do mundo.
        O mundo está à deriva e à mercê da vontade errática do desequilibrado presidente.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4999, 19 julho 2025, 2 p.

O Itamaraty e a guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, e a questão das crianças sequestradas e enviadas para a Rússia - Pesquisa de Vitelio Brustolin por meio da IA

Numa breve postagem no Facebook, eu me perguntava se o Itamaraty havia feito, alguma vez, uma nota sobre o sequestro de crianças ucranianas e seu envio para serem adotadas, criadas e russificadas no país que se esvazia de gente, especialmente de homens, enviados para a guerra, e que não tem nascimentos suficientes para repovoar o maior território estatal do mundo.

Eu até havia feito uma pesquisa na seção de notas do MRE, buscando simplesmente o conceito "Ucrânia", e vieram 5 centenas de resultados, de 2006 à atualidade. Postei os resultados na minha página em Academia.edu, e repeercuti a busca neste blog Diplomatizzando, como abaixo: 

4993. “Notas sobre a Ucrânia no âmbito do Itamaraty (2006-2025)”, São Paulo, 15 julho 2025, 31 p. Levantamento efetuado na Base de Dados de Notas de Informação à Imprensa no Itamaraty: 499 notícias de todos os tipos, diretas e indiretas (link: https://www.gov.br/mre/pt-br/search?origem=form&SearchableText=Ucr%C3%A2nia). Íntegra da relação disponível na plataforma Academia.edu (Link: https://www.academia.edu/142908159/Notas_sobre_a_Ucr%C3%A2nia_no_ambito_do_Itamaraty_2006_2025_ ). Disponível no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/07/notas-sobre-ucrania-no-ambito-do.html). PRA


Veio em meu socorro o amigo acadêmico, especialista em geopolítica, professor de relações internacionais na UFF Vitelio Brustolin, que com a ajuda da AI enviou-me a seguinte mensagem:


"O Itamaraty, até o momento, *não emitiu uma nota específica sobre o sequestro de crianças ucranianas pela Rússia ou sua suposta ligação com Putin*. No entanto, fez declarações oficiais referindo-se ao tema em contexto mais amplo:

•⁠  ⁠O Itamaraty *reiterou condenação da invasão russa à Ucrânia*, também mencionando a preocupação com a situação humanitária, incluindo as crianças ucranianas removidas durante o conflito. A nota destacou ações como concessão de vistos temporários, doações humanitárias e acolhida de refugiados ucranianos no Brasil ([Gazeta do Povo][1]).

•⁠  ⁠O Ministério citou o *“Plano de Paz sino-brasileiro” de maio de 2024*, no qual consta que “a população civil, incluindo mulheres, crianças e prisioneiros de guerra, deve ser protegida” e que “esforços para assistência humanitária e prevenção de crise devem ser aumentados” — sem menção direta aos casos de sequestro de crianças ([Gazeta do Povo][1]).

Também houve pressão política interna:

•⁠  ⁠A senadora *Damares Alves solicitou reunião com o Itamaraty* no início de fevereiro de 2025 para discutir a mediação brasileira no resgate dessas crianças, após ter recebido informações sobre cerca de 20 mil delas sendo levadas de regiões ucranianas ocupadas ([UOL Notícias][2], [Gazeta do Povo][3]).

•⁠  ⁠A Ucrânia, por meio de seu chefe de gabinete Andriy Yermak, fez *pedido público para que o Brasil mediasse a devolução* das crianças, mas o governo brasileiro respondeu que “reconhece o problema” e está disposto a colaborar em acordos de paz, sem compromisso específico de mediação ou adesão à coalizão internacional “Bring Kids Back” ([Gazeta do Povo][1]).

Em resumo: *não há nota específica mencionando Putin ou se referindo diretamente ao sequestro das crianças*, apenas posicionamentos gerais e diplomáticos sobre a invasão e a situação humanitária.

Se quiser, posso buscar declarações mais recentes ou oficiais no site do Itamaraty. Deseja que eu procure diretamente no site do Ministério das Relações Exteriores?

[1]: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/brasil-responde-a-pedido-de-ajuda-da-ucrania-para-resgatar-criancas-apontando-para-plano-pro-russia/?utm_source=chatgpt.com "Brasil não deve intermediar volta de crianças ucranianas raptadas"

[2]: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2024/02/08/onu-pede-a-russia-que-interrompa-transferencia-forcada-de-criancas-ucranianas.htm?utm_source=chatgpt.com "ONU pede à Rússia que interrompa transferência forçada de crianças ucranianas"

[3]: https://www.gazetadopovo.com.br/republica/damares-cobra-acoes-do-itamaraty-contra-sequestro-de-criancas-ucranianas-pela-russia/?utm_source=chatgpt.com "Damares cobra ações do Itamaraty contra sequestro de crianças ucranianas"

Retomo (PRA): O Itamaraty não faz absolutamente nada que não seja autorizado pelos "mestres da diplomacia", que não estão exatamente no Itamaraty, e não faz nada que possa de alguma maneira, mesmo a mais leve e sutil, contrariar os amigos russos, especialmente Putin e Lavrov.

Uma hipoteca negativa para o Brasil: uma reflexão pessoal sobre o BRICS+ - Paulo Roberto de Almeida

Uma hipoteca negativa para o Brasil: uma reflexão pessoal sobre o BRICS+

Paulo Roberto de Almeida

Minha posição sobre as aventuras diplomáticas de Mister Lula.


O BRIC, o BRICS e agora o BRICS+ são apenas ilusões equivocadas (o que é uma redundância, mas justificada) de uma certa diplomacia? 

Não, não se trata apenas disso, pois essas siglas sucessivas resultam dos compromissos assumidos em meados da primeira década do século pelo que eu já chamei, inúmeras vezes, de lulopetismo diplomático, mas que agora pesam na diplomacia nacional nesta terceira década do século XXI.


Não são apenas ilusões, mas grandes miragens de uma diplomacia em sua essência personalista, e que não foram impedidas (esse é o termo) de se tornarem políticas de Estado — em lugar de serem apenas aventuras passageiras de um chefe de Estado autoritário e megalomaníaco — por um Itamaraty muito mais submisso do que o habitual em sua longa história bissecular (mais longa, em todo caso, do que certas Instituições diplomáticas de grandes Estados que se unificaram décadas depois de nosso Estado imperial, que é mais antigo, por exemplo, do que a Itália e a Alemanha contemporâneas).


Os três blocos são totalmente artificiais — pois que não nasceram de reflexões técnicas da diplomacia profissional do Itamaraty — e, sim, foram impostos à instituição pelo então chefe de Estado e pelo seu chanceler “ativo e altivo”. Eles são equívocos desastrosos para à diplomacia de uma potência MÉDIA, como sempre foi o Brasil, em toda a sua história, mas que foi guindado a essa aliança mal concebida com duas grandes potências imperiais - Rússia e China —  pela megalomania de um populista obsecado pelo seu antiamericanismo primário e anacrônico (aqui em virtude de um gramscismo mal digerido pelos guerrilheiros reciclados que dominaram o aparelho político de um partido que era, em sua origem, basicamente sindicalista).


Não é natural que uma potência média, desejosa de preservar sua autonomia decisória e independência diplomática, conforme uma aliança com uma grande potência, a não ser para fins defensivos em um ambiente hostil, como pode ter sido o caso de Portugal, precocemente levado a conformar uma aliança com a Inglaterra, após a Restauração de 1640, para se defender de dois vizinhos incômodos, Espanha e França.

O Brasil imperial e o republicano nunca fizeram tais tipos de alianças desiguais, a não ser circunstancialmente nas duas grandes guerras gobais da primeira metade do século XX, da segunda vez de maneira informal com os EUA durante a Guerra Fria devido à ameaça real ou suposta do comunismo.

Mas nos desvencilhamos rapidamente dessa aliança incômoda ainda no segundo governo do regime militar, mesmo se não conseguimos estabelecer uma completa autonomia em matéria de defesa, ainda que rompendo um acordo de assistência militar no quarto governo da ditadura, por questões de soberania (críticas às práticas de DH pela potência imperial americana).


E assim preservamos a autonomia de nossa política externa e a credibilidade de nossa diplomacia no período imediatamente posterior ao regime militar, ou seja, nos primeiros quinze anos da Nova República. Foi aí que sobreveio o regime dos companheiros — sim, regime, e não apenas dois ou três governos —, cujos ideólogos tinham imensa raiva do império americano (por ter sido “golpista” em 1964, apenas em parte verdade), mas que também exibiam uma grande fidelidade a Cuba e outros regimes assimilados ao já referido antiamericanismo primário.

O primeiro BRIC nasce justamente dessa circunstância oportunista, a mera sugestão de um “bloco” de potências “emergentes”, mas que devia servir unicamente como uma espécie de plataforma financeira para investimentos rentáveis para fundos bilionários institucionais. O acrônimo era atraente e assim se formou, entre 2006 e 2009, primeiro em escala ministerial, depois em nível de cúpula, o bloco diplomática antinatureza que uniu o Brasil a duas grandes autocracias (mais a Índia, já parceira do Brasil lulopetista nessa outra aliança mais modesta, o IBAS).


Não vou retomar aqui todos os argumentos reflexivos que desenvolvi ao longo de 18 anos, desde a bizarra formação do BRIC em 2096 até a publicação de meu livro de 2022, “A Grande Ilusão do BRICS e o Universo Paralelo da Diplomacia Brasileira”, so a forma de artigos e ensaios ali reunidos. A importância relativa dessas reflexões está contida no prefácio e no posfácio dessa compilação, que acabo de tornar disponíveis a todos os interessados. Isso foi antes da ampliação irracional (e indesejada pela diplomacia profissional, e até mesmo pela diplomacia lulopetista, incapaz de resistir às pressões de China e Rússia) para o bloco completamente disforme do BRICS+, que poderia estar ainda meior, não fosse pela resistência de Índia e Brasil, que justamente não desejavam diluir sua importância e poder relativos no novo “bloco”.

Essa ampliação não invalida o teor e a substância desses dois textos, prefácio e posfácio, ao livro em questão.

Convido os interessados a lê-los, prometendo trazer uma nova reflexão abrangente em tempo hábil. Eles estão nesta postagem do meu quilombo de resistência intelectual que é o Diplomatizzando:

https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/07/a-grande-ilusao-do-brics-e-o-universo_19.html?m=1 

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 19/07/2025


No mundo dos “livros” (se é o caso de se dizer): Mein Kampf - Paulo Roberto de Almeida

No mundo dos “livros” (se é o caso de se dizer): Mein Kampf

Existe alguma outra obra mais execrável do que o Mein Kampf, completando 100 anos agora? 

Os Protocolos dos Sábios de Sion sempre foram reconhecidamente falsos, mas o “magnum opus” de Hitler, à parte sua criminosa carreira de tirano mais asqueroso de toda a humanidade, era um projeto de vida, que se transmutou em um projeto nacional, assustadoramente verdadeiro e consequente.

Não consigo imaginar obra mais “mortal” do que essa. E mesmo na sua vertente puramente geopolítica, como conceber que os bolcheviques tenham abastecido uma potência fundada sobre a promessa de sua eliminação da face da terra e ainda tenham mantido a ilusão de que poderiam conviver com Hitler?

Como a culta Alemanha se rendeu a um dos mais desvairados tiranos do século XX, junto com Stalin, Mao e Pol Pot? E, com livro ou sem livro, como admitir que um ser humano possa ter sido tão horrendo quanto Hitler?

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 19/07/2025


Lista de trabalhos sobre o multilateralismo (conceito estrito) - Paulo Roberto de Almeida

Lista de trabalhos sobre o multilateralismo

(conceito estrito)

Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Relação dos trabalhos pessoais sob esse conceito.

        A lista abaixo, extraída da minha lista geral de trabalhos, recupera, apenas e tão somente, aqueles trabalhos que trazem em seu título ou descrição de conteúdo esse conceito estritamente redigido sob o conceito do multilateralismo, ou seja, à exclusão de outros trabalhos que também possam tratar da mesma temática (como multilaterais, ou simplesmente multilateral, por exemplo). É, portanto, uma lista limitada ao conceito estrito do título, e serve apenas para oferecer aos interessados uma ideia do que produzi, desde 1997 até a atualidade, mas reiterando que muitos outros trabalhos podem ter “escapado” à rede do “multilateralismo” enquanto tal.
        Outra deficiência, apenas uma parte limitada desta relação está devidamente linkada, permitindo, portanto, o acesso à íntegra do trabalho, o que seria difícil fazer neste momento (eu teria de colocar cada um deles, os mais extensos, nas minhas páginas nas plataformas Academia.edu ou Research Gate, o que demandaria um trabalho que não estou em condições de oferecer neste momento, ao passo que os menos extensos, até 10 páginas por exemplo, poderiam ser colocados no blog Diplomatizzando).
        Aqueles que gostariam de acessar um dos trabalhos não linkados, podem me solicitar diretamente (no e-mail pralmeida@me.com), e terei prazer em enviar a versão Word ou pdf, ou até indicar onde foram publicados ou estão disponíveis.
        Esta relação é oferecida ao alunos de RI, aos candidatos à carreira diplomática e outros interessados, e não pretende ser a “última palavra” em matéria de multilateralismo, inclusive porque eu não sou um especialista no assunto em sua vertente especificamente política, tendo trabalhado sobretudo sobre o multilateralismo econômico (e vários dos trabalhos não estão necessariamente classificados sob o conceito), mas ela pode dar uma ideia de minhas pesquisas, análises e reflexões sobre esse mecanismo central, axial, da diplomacia contemporânea, sobretudo do ponto de vista do Brasil.
        Espero que ela possa ajudar os interessados, pesquisadores, simples curiosos em torno da temática. Eu continuo trabalhando nessa vertente, sobretudo pelo lado do multilateralismo econômico, e poderei, talvez, fazer uma nova e atualizada edição de meu livro O Brasil e o Multilateralismo Econômico (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999), que já deve estar esgotado na editora, mas que ainda é oferecido nos sebos eletrônicos. Tentarei satisfazer a curiosidade.
        A lista, falha e incompleta como ela pode ser, está ordenada na cronologia inversa, ou seja, os mais recentes em primeiro lugar, com alguma repetição ou aproveitamento (pelo método Lavoisier) dos mais antigos, listados ao final.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4996, 19 julho 2025, 4 p.


4981. “O Brasil e o Direito Internacional desde Rui Barbosa”, Brasília, 8 julho 2025, 28 p. Considerações sobre a ordem internacional a partir de posicionamentos da diplomacia brasileira nos últimos cem anos.

4961. “O Brasil e o multilateralismo: construção e desconstrução”, Brasília, 22 junho 2025, 22 slides. Apresentação a partir do trabalho 4946, para aula magna para os candidatos à carreira diplomática em 28/06/2025.

4946. “O Brasil e o multilateralismo: construção e desconstrução”, Brasília, 9 junho 2025, 29 p. Nova elaboração ampliada a partir do trabalho 4616 (25 março 2024, 23 p.), para aula magna para os candidatos à carreira diplomática em 27/06/2025.

4939. “A política externa brasileira em face das ameaças ao multilateralismo e ao equilíbrio diplomático: itinerário desde o início do século XX”, Brasília, 26 maio 2025, 4 p. Exercício exploratório e análise crítica sobre os vieses introduzidos na política externa e na diplomacia do Brasil pelas correntes opostas do bolsonarismo e do lulopetismo. Postado no blog Diplomatizzando (27/05/2025; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/05/a-politica-externa-brasileira-em-face.html) e disponível na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/129573018/4939_A_politica_externa_brasileira_em_face_das_ameacas_ao_multilateralismo_e_ao_equilibrio_diplomatico_2025_).

4930. “A política externa brasileira em perigo, sob a dupla deformação das diplomacias bolsonarista e lulopetista: ameaças conceituais e práticas”, Brasília, 18 maio 2025, 1 p. Postado parcialmente no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/05/a-politica-externa-brasileira-em-perigo.html).

4898. “A Grande Transformação (retomando o conceito de Karl Polanyi)”, Brasília, 15 abril 2025, 1 p. Nota sobre a fragmentação do multilateralismo político e econômico pela ação de dois autocratas. Postado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/04/a-grande-transformacao-paulo-roberto-de.html).

4754. “O Brasil e o multilateralismo: notas para aula”, Brasília, 9 outubro 2024, 1 p. Seleção de trabalhos para aula no curso CACD, 11/10/2024; trabalhos disponíveis na plataforma Academia.edu.

4649. “A reforma da ONU, o sistema internacional e a postura do Brasil”, Brasília, 1 maio 2024, 32 p. Ensaio sobre a evolução do multilateralismo político e sobre os obstáculos atuais para uma reforma da estrutura política do poder mundial, num contexto diferente da criação da ONU. Para servir de base a aula no quadro de curso preparatório aos exames de ingresso na carreira diplomática.

4616. “O multilateralismo de dimensão universal: a ONU e os órgãos multilaterais”, Brasília, 25 março-2 abril 2024, 27 p. Texto base e bibliografia para curso preparatório aos candidatos à carreira diplomática, para aula em 5/04/2024.

4231. “O Brasil e o multilateralismo econômico, do século XIX ao XXI”, Brasília, 6 setembro 2022, 7 p. Breve síntese sobre a participação do Brasil nos esquemas multilateralistas do século XX, com ênfase na vertente econômica.

4134. “O itinerário do multilateralismo e o Brasil: da Liga das Nações à ONU”, Brasília, 20 abril 2022, 69 p. Terceira palestra no ciclo dedicado à política internacional e a política externa do Brasil, para candidatos à carreira diplomática. no dia 29/04/2022; Sumário: 1. As novas bases da diplomacia multilateral no século XX; 2. Acordos multilaterais e instituições, de 1815 a 2021; 3. Brasil: perfil institucional do multilateralismo, 1856-2021.

4105. “A construção da Ordem Mundial: do Bilateralismo ao Multilateralismo”, Brasília, 14 março 2022, 11 slides. Segunda aula do ciclo de palestras para o Curso de Preparação à Carreira Diplomática, em 1/02/2023, online.

4014. A construção do multilateralismo contemporâneo: do século XIX ao XXI: a participação do Brasil no sistema internacional, Brasília, 12 novembro 2021, 109 p. Apostila preparada para Curso de Pós-Graduação em Direito Internacional da Faculdade CEDIN, em 11/12/2021, com base no trabalho 3943. Revisto na parte das convenções da OIT em 25/11/2021.

3944. “Brasil: perfil institucional do multilateralismo, 1856-2019”, Brasília, 6 julho 2021, 9 p. Destaque da parte 7 do trabalho 3493, para informação aos estudantes de relações internacionais. Divulgado via plataforma Academia.edu (link; https://www.academia.edu/49573963/3944_Brasil_perfil_institucional_do_multilateralismo_economico_1856_2019) e informado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/07/brasil-perfil-institucional-do.html).

3513. “Desconstruindo Bretton Woods: a fragmentação do multilateralismo econômico pelo novo nacionalismo antiglobalista”, Notas em voo Brasília-Navegantes, Balneário Camboriú, 18-19/09/2019, 9 p. Ensaio sobre a difícil transição da antiga Guerra Fria geopolítica para uma nova Guerra Fria Econômica que também apresenta aspectos geopolíticos, mas de natureza mais econômica e tecnológica do que propriamente militar. Disponibilizado no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2019/09/desconstruindo-bretton-woods.html).

3130. “Relações econômicas internacionais do Brasil: perspectiva histórica”, Brasília, 20 junho 2017, 318 p. Retomada do trabalho n. 3005 (“A construção do multilateralismo contemporâneo e a inserção internacional do Brasil”, Brasília, 4 julho 2016, 83 p.), agregando diversos trabalhos dentro da temática (entre eles o n. 3109), incluído como capítulo 9, “A sociologia institucional do multilateralismo brasileiro (1815-2011)”, ao livro Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012).

3006. “Rui Barbosa e o direito internacional”, Brasília, 7 julho 2016, 3 p. Artigo sobre os 100 anos da conferência realizada por Rui Barbosa em Buenos Aires, sobre os conceitos modernos do direito internacional, mais conhecida como o dever dos neutros, para publicação na imprensa local. Publicado no Correio Braziliense (14/07/2016), divulgado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2016/07/rui-barbosa-e-o-direito-internacional.html). Postado no blog Diplomatizzando (28/02/2022; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2022/02/rui-barbosa-e-o-direito-internacional.html). Relação de Publicados n. 1234.

3005. “A construção do multilateralismo contemporâneo e a inserção internacional do Brasil”, Brasília, 4 julho 2016, 83 p. Relação atualizada dos atos e organizações internacionais, sobretudo de caráter econômico, constantes originalmente dos trabalhos 533/1996 e 585/1997, publicado uma primeira vez na revista Contexto Internacional (Rio de Janeiro: IRI/PUC-RJ, vol. 19, nº 2, julho-dezembro 1997, pp. 307-401), depois incorporado, com atualizações, ao livro Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização (Porto Alegre: EdUFRGS, 1998), e novamente, como capítulo 9, “A sociologia institucional do multilateralismo brasileiro (1815-2011)”, no livro Relações internacionais e política externa do Brasil: a diplomacia brasileira no contexto da globalização (Rio de Janeiro: LTC, 2012).

681. “A inserção internacional do Brasil”, Brasília, 11 maio 1999, 2 p. Resenha de livro: Paulo Roberto de Almeida: O Brasil e o multilateralismo econômico (Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999, 328 p.). Publicado, com pequenas mudanças, por Alberto Tamer, n’O Estado de São Paulo (dia 28.06.99, caderno de Economia). Divulgada no blog Diplomatizzando (18/07/2025; link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/07/livro-de-paulo-roberto-de-almeida-o.html).

621. O Brasil e o multilateralismo econômico, Brasília, 25 maio 1998, 219 p. Livro sobre as instituições multilaterais e a inserção internacional do Brasil, elaborado com base nas aulas de comércio exterior e de integração e nos trabalhos sobre a estrutura institucional do multilateralismo econômico brasileiro. Publicado pela Livraria do Advogado, de Porto Alegre, em 1999. Relação de publicados nº 235.

597. “A democratização da sociedade internacional e o Brasil: ensaio sobre uma mutação histórica de longo prazo (1815-1997)”, Brasília, 2 dezembro 1997, 32 p. Artigo sobre a construção do multilateralismo e a inserção internacional do Brasil, preparado com base na leitura de Craig Murphy e nas pesquisas efetuadas sobre os acordos econômicos internacionais. Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (vol. 40, nº 2, julho-dezembro 1997, p. 76-105; link: https://doi.org/10.1590/S0034-73291997000200004). Incluído, sob forma revista, no livro O Brasil e o multilateralismo econômico (Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1999). Relação de Publicados nº 211.

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira - Paulo Roberto de Almeida, Prefácio e Posfácio

Em vista dos desenvolvimentos recentes no âmbito do BRICS+ (cúpula no RJ) e as ameaças do presidente Trump contra o bloco e especificamente contra o Brasil, assim como declarações tempestuosas dele e do presidente Lula sobre os embates em curso entre os dois dirigentes (certamente não entre os dois países, seus empresários e trabalhadores), resolvi transcrever o prefácio e o posfácio de meu livro sobre o bloco, publicado em formato Kindle em meados de 2022, antes, portanto, de sua transmutação em bloco de oposição ao Ocidente, sob pressão da China e da Rússia.


Eis o índice geral, sendo que o livro está disponível neste link da Amazon.com:
https://www.amazon.com/grande-ilus%C3%A3o-%20Brics-diplomacia-brasileira-%20ebook/dp/B0B3WC59F4/ref=sr11?keywords=A+grande+ilus%C3%A3o+do+Brics+e%20+o+universo+paralelo+da+diplomacia+brasileira&qid=1656513882&sr=8-1

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira
Paulo Roberto de Almeida


Índice
Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo
1. O papel dos Brics na economia mundial
2. A fascinação exercida pelo Brics nos meios acadêmicos
3. Radiografia do Bric: indagações a partir do Brasil
4. A democracia nos Brics
5. Sobre a morte do G8 e a ascensão do Brics
6. O Bric e a substituição de hegemonias
7. Os Brics na crise econômica mundial de 2008-2009
8. O futuro econômico do Brics e dos Brics
9. O Brasil no Brics: a dialética de uma ambição
10. O lugar dos Brics na agenda externa do Brasil
11. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria
Posfácio: O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia
Indicações bibliográficas

O Prefácio pode ser lido aqui:
https://diplomatizzando.blogspot.com/2025/07/a-grande-ilusao-do-brics-e-o-universo_18.html

sexta-feira, 18 de julho de 2025

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira, Posfácio do livro de Paulo Roberto de Almeida

Transcrevo o Posfácio deste livro publicado em formato Kindle, em junho de 2022, ou seja, antes do BRICS+. Em postagem imediatamente anterior, transcrevi o Prefácio.


A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira
Paulo Roberto de Almeida

Índice
Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo
1. O papel dos Brics na economia mundial
2. A fascinação exercida pelo Brics nos meios acadêmicos
3. Radiografia do Bric: indagações a partir do Brasil
4. A democracia nos Brics
5. Sobre a morte do G8 e a ascensão do Brics
6. O Bric e a substituição de hegemonias
7. Os Brics na crise econômica mundial de 2008-2009
8. O futuro econômico do Brics e dos Brics
9. O Brasil no Brics: a dialética de uma ambição
10. O lugar dos Brics na agenda externa do Brasil
11. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria
Posfácio: O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia
Indicações bibliográficas


Posfácio:
O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia

“Yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo.”
Ortega y Gasset, Meditaciones del Quijote (1914)

        A frase do filósofo espanhol é bastante conhecida, e pode ser interpretada de diversas formas, geralmente no plano individual. Pelo menos dois dos autores citados nos ensaios que compõem este livro, Robert Kagan e Parag Khanna, atribuem forte importância à geografia, que pode ser considerada como a circunstância inevitável no plano das nações ou, mais precisamente, dos Estados e sua geopolítica. Em outros termos, os Estados podem escolher a sua organização interna, na esfera política e econômica, e sobretudo suas relações externas, mas eles não podem escolher a sua geografia. Ela lhes é dada pela história, ou seja, pelo longo desenvolvimento de um povo – ou vários deles – num determinado território, partindo dessa condição primária para constituir uma nação, ou um Estado, ou seja, a representação dessa nação no âmbito regional e internacional.
        Napoleão, por sua vez, reconhecendo a relação muito estreita entre a geografia e a política, teria dito: “Um Estado faz a política de sua geografia”, ou, segundo outras fontes, “A política de um Estado está em sua geografia.” Qualquer que seja a forma exata do aforisma do primeiro cônsul da Revolução francesa, depois Imperador da nação dominante na Europa do século XVIII e início do XIX, ele não conseguiu dominar a geografia europeia, ao tentar estender sua preeminência sobre a Europa continental – que se estendia das penínsulas ibérica e itálica, até praticamente a Prússia oriental, onde vivia Kant – às terras eslavas da Rússia, passando, portanto, sobre territórios que depois conformariam duas repúblicas soviéticas, a Bielorrússia (ou Rússia branca) e a Ucrânia. O pequeno corso, genial estrategista militar, foi vencido não tanto pela geografia, como pela distância, fator que também afligiu as tropas da Wehrmacht, quando tentaram vencer onde Napoleão tinha falhado: as terras longínquas da Rússia europeia, que podia escolher, como fizeram os generais czaristas, recuar até o ponto no qual o “general inverno” se encarregaria de abater tropas francesas e blindados nazistas.
        Voltando à circunstância geográfica do Brasil, sua projeção estratégica – para retomar o vocabulário dos geopolíticos – se estende não muito naturalmente pelos vastos espaços da América do Sul, e não muito além disso. Não naturalmente pois que existem as barreiras naturais da selva amazônica, dos contrafortes andinos, do próprio pantanal e da quase total facilidades de comunicações terrestres ou mesmo fluviais nos vastos ermos de nosso heartland, o cerrado central, penosamente acessados apenas pelos grandes rios da bacia amazônica, ao norte, e da bacia platina, ao sul. Aqui se situava, justamente, o espaço natural de projeção do poder instalado na costa atlântica do Brasil, tanto que a metrópole portuguesa tentou por diversas vezes assenhorear-se da margem superior do Prata, instalando uma colônia em Sacramento e depois lutando contra os castelhanos para tentar manter a província oriental, ou cisplatina, ou pelo menos garantir a livre navegabilidade dos rios da bacia do Prata, como única maneira de alcançar a província do Mato Grosso.
        Como não se pode discutir com a geografia – pois ela existe, simplesmente, como dizia o teórico geopolítico Spykman –, se pode tomar como natural uma política externa do Brasil que buscasse construir um vasto espaço econômico integrado no coração da América do Sul, pela liberalização recíproca dos mercados e pela própria abertura até unilateral dos seus próprios mercados a todos os vizinhos regionais. O que ultrapassasse tais “circunstâncias geográficas” – o hemisfério norte, o Atlântico Sul, o continente africano, terra de origem de grande parte da população, que depois se mesclou aos aborígines e aos colonizadores e aos imigrantes, e as terras mais distantes “para além da Taprobana” – seriam objeto de suas relações exteriores “dentro de lo que cabe”, como poderia também dizer Ortega y Gasset. Ou seja, construído o espaço natural de projeção econômica, política e cultural do Brasil no seu entorno imediato, garantindo paz, segurança e prosperidade na América do Sul, os espaços “externos” seriam alcançados para fins de desenvolvimento econômico e social, mobilizando capitais, tecnologia, recursos de todos os tipos para conectar nossa economia, e a do espaço de integração liderado pelo Brasil, à dos grandes centros dinâmicos da economia global.
Tal seria a conformação de um relacionamento exterior, regional, continental e alhures, totalmente compatível com nossa dotação de fatores, nossas vantagens comparativas, nossa capacidade competitiva e nossas ambições diplomáticas de desempenhar um papel positivo em nosso “ambiente natural” – as circunstâncias geográficas – e mais além, em outros quadrantes de um planeta ainda muito desigual, mas vocacionado ao crescimento e à prosperidade, desde que as grandes potências, as economias avançadas, mas também as potências médias, como o Brasil, se concertassem em garantir paz e segurança – como rezam os primeiros artigos da Carta da ONU – e, a partir daí, traçar um vasto plano de eliminação da miséria, de redução da pobreza, e de cooperação ampliada visando elevar os indicadores de bem-estar de imensos contingentes dos povos e nações do planeta.

        Os argumentos acima podem ajudar a explicar os motivos pelos quais eu falei de uma “miragem do Brics” e de um “universo paralelo da diplomacia brasileira”, pois estas duas expressões me parecem resumir o desvario da política externa do lulopetismo ao pretender construir uma aliança não natural com duas superpotências nucleares, autocráticas, e uma outra potência nuclear, mas de dimensão média, embora afligida pelos mesmos problemas de subdesenvolvimento de parte de sua população, mas dotada de instituições democráticas de tão baixa qualidade quanto as do Brasil, os quatro Estados originais não exatamente isentos dos males da corrupção, da desigualdade e de um excesso de intervencionismo estatal. A adição de mais um parceiro, africano, não mudou quase nada a conformação inicial do novo grupo, e de toda forma não resultou de uma decisão diplomática do Brasil, e sim de uma decisão tomada praticamente de forma monocrática pelo principal membro do grupo. Que o Brics tenha sido uma miragem – talvez imaginada como sendo capaz de criar uma ordem mundial alternativa àquela dominada pelos arrogantes ocidentais – e que ela tenha sido promovida por uma espécie de diplomacia paralela à normalmente existente na instituição bicentenária de nossas relações exteriores, as justificativas desse julgamento, talvez severo, se encontram na dezena de textos compilados nesta coletânea que teve por único objetivo oferecer à curiosidade dos interessados meus argumentos dotados de ceticismo sadio quanto à propriedade da iniciativa e sua adequação aos requisitos do desenvolvimento brasileiro, que se estenderam desde antes que esse “animal diplomático” fosse criado até certa ruptura do padrão diplomático seguido durante três mandatos e meios do assim chamado lulopetismo. Os governos ulteriores receberam essa herança e a mantiveram num ritmo mais incerto, sem o entusiasmo dos amadores que comandaram a política externa por quase três lustros.
        Nunca tive nenhuma hesitação em classificar de erro de percepção, até de concepção, a iniciativa, tomada entre as duas nações que figuram em primeiro lugar no acrônimo do Brics, de operar a transmutação de um mero exercício de “carteira de investimentos” de um economista de banco de negócios internacionais em um grupo diplomático, como toda a parafernália habitual nesse tipo de empreendimento: reuniões de sherpas, conferências de ministros e, culminando, os encontros de cúpula, com o diplomatês também habitual garantido pelos diplomatas profissionais, e o entusiasmo pouco refletido da maior parte da academia e do jornalismo. Uma das coisas que me surpreenderam sobremaneira, em mais de quatro décadas de exercício profissional da diplomacia – mas combinada a uma atividade acadêmica também constante, assim como a estudos e pesquisas regulares ao longo de todo esse período –, foi a pouca capacidade de meus colegas, tanto na diplomacia quanto na academia, de refletirem criticamente sobre a aventura proposta por dirigentes políticos e diplomáticos, em meados da segunda década deste século e de avançarem estudos técnicos, reflexões ponderadas, exercícios e simulações fundamentadas em dados empíricos, no tocante às possibilidades praticamente inexequíveis de tal grupo heterogêneo, separado pela cultura, pela história e pela geografia, resultar em algum arranjo racional e instrumental para os objetivos nacionais de desenvolvimento, vale dizer para os interesses da nação.
        O que ocorreu foi que uma decisão oportunista, movida unicamente pelo apelo ocasional de uma sigla construída com objetivos totalmente distintos, acabou transformada em um empreendimento de Estado, em total ligeireza de avaliação e com falta completa de senso crítico. Surpreendeu-me a submissão de diplomatas – geralmente tido por burocratas de altíssima qualidade intelectual – a uma ideia sem qualquer consistência efetiva, sem apoio numa tradição de relacionamentos mais profundos – como os existentes entre os países da América do Sul, por exemplo – e sem o cuidado de buscar, na densidade já adquirida de nossas interfaces externas (geralmente no próprio hemisfério, e com os continentes de origem de nossa população mestiça), a rationale fundamental que justificasse tal objetivo grandioso: a união diplomática, num novo grupo, de quatro grandes economias emergentes, pensadas originalmente como fonte de retornos ampliados a investidores, repentinamente consideradas como iniciadoras de um projeto de mudança da “ordem internacional” existente, tida talvez como não compatível com os interesses nacionais dos quatro paladinos (mas esses interesses eram compatíveis entre si?). Não, não estou condenando ou censurando os diplomatas: eles apenas cultivam os dois princípios que lhes foram inculcados desde o Instituto Rio Branco e depois em discursos regulares da direção quando falando para a tropa reunida: hierarquia e disciplina (coisa que eu considero válidas para soldados de linha, mas não para diplomatas).

        Meus artigos e ensaios, espaçados por toda a “vida útil” do Brics, visavam tão somente chamar a atenção para as discrepâncias entre os países, para o lócus único de cada um no sistema internacional – se sistema existe – e discutir as dificuldades em construir uma agenda coerente a partir dessas diferenças estruturais entre eles, o que eu já havia feito, aliás, para o primeiro exercício de voluntarismo internacional do lulopetismo diplomático, o grupo IBAS, congregando três dos futuros cinco integrantes do Brics, Brasil, Índia e África do Sul. Não considerava, tampouco, desde o início de 2003, que os três países tivessem problemas comuns, a não ser a pobreza, a desigualdade e até a miséria de boa parte das populações respectivas, e jamais admiti que esses problemas pudessem ser solucionados por uma agenda comum de trabalhos, que necessariamente seria reduzida ao mínimo denominador comum e acabaria se traduzindo em viagens de diplomatas e outros burocratas, num esforço insano de produzir declarações que se alimentam delas próprias, entre uma e outra reunião de consulta e coordenação. Assim, quando foi aventada a ideia de mais um grupo diplomático a partir de ideias mal concebidas e, de toda forma, pensadas para objetivos mais prosaicos – retornos de investimentos financeiros –, considerei que o novo empreendimento também padecia de “males de origem”, como classificou Manoel Bonfim as dores do subdesenvolvimento do Brasil e da América Latina.
        Mas, o que eram apenas reflexões de natureza basicamente econômica, sociológica, com alguns toques amadores de geopolítica para aprendizes, não pretendiam de forma alguma mudar as posições do governo brasileiro ou de sua diplomacia, pois eu tinha plena consciência de que o pacote partidário da diplomacia lulopetista seria aplicado de forma fiel pelos apparatchiks da presidência e pelos servidores do corpo diplomático. Essas reflexões adquirem agora, no momento em que decido coletar as mais importantes – apenas 10, entre duas dúzias, aproximadamente – para uma publicação consolidada, uma outra conotação, que é mais de caráter propriamente político, ou talvez essencialmente moral: o governo daquele momento decidiu unir alguns dos movimentos diplomáticos do Brasil aos de dois outros países já bastante conhecidos pelo caráter autocrático de seus governos. O que parecia uma simples oportunidade de ganhos econômicos, diplomáticos e de prestígio internacional, no momento em que uma dessas autocracia viola flagrantemente a Carta das Nações Unidos, afronta todos os capítulos dos manuais de Direito Internacional e pratica crimes de guerra – e possivelmente crimes contra a humanidade – meus textos críticos ao Brics aparecem numa nova luz, a de uma recusa prévia de uma aventura que eu já achava antinatural e contrária ao espírito e à letra de nossas tradições diplomáticas mais arraigadas, o respeito irrestrito ao Direito Internacional, ou às mais elementares regras de boa conduta nas relações externas, todas elas condenadas pela Carta da ONU e pela Convenção de Viena de 1961 sobre relações diplomáticas. Não é possível o Brasil permanecer indiferente à agressão e aos crimes.
        Eppur si muove, como diria Galileu, no entanto, o Brasil do atual governo não apenas permanece indiferente ao terrível suplício de um povo e de uma nação, como, pelo seu mais alto dirigente demonstra uma ativa solidariedade e um apoio objetivo a esses crimes. Daí, que resolvi – depois de já ter coletados os artigos e ensaios aqui compilados – escrever este posfácio para declarar, em alto e bom som, que como acadêmico, como diplomata e como cidadão, repudio e condeno a postura do governo atual, o dessa gestão absolutamente prejudicial à diplomacia profissional, ao conceito e à imagem do Brasil no plano externo, ao nosso prestígio internacional tão duramente construído e mantido, a despeito de percalços, nos anos que se sucederam à ditadura militar (que também nos envergonhou como cidadãos e diplomatas). Parte da postura do governo atual em relação aos crimes que estão sendo perpetrados contra o povo ucraniano se devem, justamente, à nossa condição de membros desse grupo anômalo que se chama Brics, que na verdade se tornou um instrumento a mais de atuação de duas autocracias bastante poderosas. Isso já era verdade, quando um governo anterior permaneceu igualmente indiferente em face de uma primeira violação da soberania da Ucrânia, o sequestro e a anexação de parte do seu território – a península da Crimeia – e a promoção do separatismo armado em suas províncias orientais, de ocupação russa.

        Meu posfácio tinha sido concebido primariamente para explicar os conceitos de “miragem do Brics” e de “universo paralelo” da diplomacia lulopetista, mas agora está sendo escrito para declarar minha postura em face da miséria diplomática atual, uma fase indigna de nossa política exterior que espero possa ser corrigida num futuro próximo. Um dos escolhos a uma reversão nesse sentido se chama justamente Brics: o quadro atual materializa temores que eu já mantinha desde o início, apenas por uma rejeição natural a ditaduras.
Espero que esta coletânea possa servir para despertar certo espírito crítico entre meus colegas, acadêmicos, jornalistas, cidadãos interessados na diplomacia brasileira: ela teve apenas esse modesto objetivo, que aliás se coaduna com um dos objetivos declarados do editor Monteiro Lobato, que era originalmente o de Castro Alves:

        Livros à mão cheia,
        E manda o povo pensar!
        É germe – que faz a palma,
        É chuva – que faz o mar!

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 9 de junho de 2022

A grande ilusão do Brics e o universo paralelo da diplomacia brasileira: Prefácio - Paulo Roberto de Almeida


Transcrevo o Prefácio deste livro publicado em formato Kindle, em junho de 2022, ou seja, antes do BRICS+. Em postagem subsequente, transcreverei o Posfácio.

A grande ilusão do Brics : e o universo paralelo da diplomacia brasileira

Paulo Roberto de Almeida

Índice
Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo
1. O papel dos Brics na economia mundial
2. A fascinação exercida pelo Brics nos meios acadêmicos
3. Radiografia do Bric: indagações a partir do Brasil
4. A democracia nos Brics
5. Sobre a morte do G8 e a ascensão do Brics
6. O Bric e a substituição de hegemonias
7. Os Brics na crise econômica mundial de 2008-2009
8. O futuro econômico do Brics e dos Brics
9. O Brasil no Brics: a dialética de uma ambição
10. O lugar dos Brics na agenda externa do Brasil
11. Contra as parcerias estratégicas: um relatório de minoria
Posfácio: O Brics depois da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia
Indicações bibliográficas

Prefácio: Brics: uma ideia em busca de algum conteúdo

        Agrupamentos econômicos ou políticos geralmente partem de algum projeto intrínseco à lógica instrumental de seus proponentes originais e tendem a seguir os objetivos precípuos de seus principais países membros. Eles geralmente são constituídos a partir de alguma ruptura de continuidade na ordem normal das coisas, ou seja, no plano diplomático, no seguimento de um evento ou processo transformador das relações de força. Por exemplo, a Grande Guerra de 1914-18, o mais devastador dos conflitos globais até então conhecidos, produziu a Liga das Nações, uma tentativa de conjurar enfrentamentos bélicos daquela magnitude nos anos à frente: o proponente original, contudo, a ela não aderiu, e a primeira entidade multilateral dedicada à manutenção da paz entre os Estados membros se debateu nos projetos militaristas expansionistas dos fascismos do entre guerras, até soçobrar por completo nos estertores da Segunda Guerra Mundial. Para Winston Churchill, os dois conflitos globais foram uma espécie de repetição daquilo que a Europa havia conhecido no século XVII, uma “segunda Guerra de Trinta Anos”.
        A tentativa seguinte começou com um exercício de conformação da ordem econômica do pós-guerra, realizado na reunião de Bretton Woods, em junho de 1944: ela partiu da constatação de que era preciso reconstruir as bases da interdependência econômica destruídas pela crise de 1929 e pela depressão da década seguinte, congregando quase todos os países que estavam então unidos pela ideia das “nações aliadas”, a maior parte em luta contra as potências do eixo nazifascista. A proposta foi relativamente bem-sucedida e resultou na criação do FMI e do Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento, ainda que a União Soviética, presente ao encontro, tenha preferido não se juntar às demais economias de mercado que puseram em funcionamento as duas instituições a partir de 1946.
        Imediatamente após a conferência de San Francisco e a abertura dos trabalhos da ONU, seu Comitê Econômico e Social (Ecosoc) aprovou a constituição de comissões econômicas regionais, encarregadas de mapear e informar a nova organização multilateral sobre a situação econômica em cada grande região do planeta, sendo que a mais famosa delas, a Cepal, sob a direção de Raúl Prebisch, não se contentou em apenas coletar dados econômicos sobre os países latino-americanos e do Caribe; com sede em Santiago do Chile, ela logo virou uma verdadeira escola de pensamento econômico, com cursos e programas de estudo sobre os problemas estruturais do continente.
        Da mesma forma, a primeira organização de coordenação econômica europeia, a Oece, predecessora, em 1948, da Ocde (1960), foi constituída para administrar o funcionamento do Plano Marshall, e deveria, em princípio, estender-se igualmente aos países da Europa central e oriental ainda ocupados pelo Exército Vermelho. O Secretário de Estado americano proponente da ideia, o próprio George Marshall, respirou aliviado quando Stalin vetou a participação de sua esfera de influência no esquema, pois que não haveria, provavelmente, recursos a serem distribuídos entre todos eles; o programa, coordenado a partir de Paris, ficou então restrito à Europa ocidental.
        Nos anos 1950 e no início da década seguinte, os países em desenvolvimento, em grande medida impulsionados pelo Brasil e demais latino-americanos, constataram que os arranjos econômicos feitos no âmbito de Bretton Woods e das reuniões preparatórias em Genebra à conferência da ONU sobre comércio e emprego de Havana, das quais resultaram, preliminarmente, o Acordo Geral sobre Comércio e Tarifas Aduaneiras (Gatt, 1947), não tinham resolvido o problema básico das diferenças estruturais entre as economias avançadas e as “subdesenvolvidas”, como então eram chamados os países pobres, logo em seguida batizados conjuntamente de “Terceiro Mundo”. Levantou-se, então, um imenso clamor em torno dessa distinção julgada indesejável entre o Norte e o Sul do planeta, do qual resultou a convocação, pelo Ecosoc, da primeira conferência das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento (Unctad, 1964), da qual resultou não só a criação do G77, o grupo dos países em desenvolvimento, mas um secretariado em Genebra, que passou a organizar reuniões quadrienais, das quais alguns dos resultados foram acordos sobre produtos de base e a criação de um Sistema Geral de Preferências, abolindo, na prática, o princípio da reciprocidade inscrito nos primeiros acordos comerciais, uma das cláusulas básicas do sistema do Gatt.
        Quando, no seguimento da denúncia americana da primeira versão de Bretton Woods, feita pelo presidente Nixon em agosto de 1971, se instalou um “não-sistema financeiro mundial”, as principais economias de mercado avançadas estabeleceram um esquema informal de consultas entre elas para tentar conter a volatilidade dos mercados cambiais, o que deu origem ao G5 e, mais adiante, ao G7. Esse agrupamento perdura até hoje, com uma fase de G8 – não exatamente econômica, mas bem mais política –, com a inclusão da Rússia pós-soviética no esquema, situação que perdurou até a invasão da península da Crimeia, amputando-a da Ucrânia, em 2014.
        Paralelamente às reuniões anuais do G7, foi criada uma entidade privada, o Fórum Econômico Mundial, com encontros em Davos, na Suíça, com esse mesmo objetivo primário, de oferecer um espaço de discussões sobre a economia global, mais reunindo líderes de países e empreendedores privados; daquelas tertúlias nos Alpes suíços resultaram algumas boas iniciativas depois incorporadas às agendas de trabalho das principais organizações do multilateralismo econômico, primeiro o Gatt, depois a OMC, mas também as entidades de Bretton Woods, assim como as de várias agências especializadas da ONU; delas também participavam muitas ONGs de todo o mundo, a passo que, num sentido manifestamente oposto aos objetivos de Davos, começou a reunir-se, por breve tempo, o Fórum Social Mundial, um convescote anual das tribos confusas de antiglobalizadores – ou altermundialistas, como proferiam os franceses –, já com clara orientação anticapitalista.
        De forma algo similar, no contexto das crises financeiras das economias emergentes, no final dos anos 1990, foi criado, no âmbito do FMI, um Fórum de Estabilidade Global, que, impulsionado por nova crise financeira, desta vez dos países avançados, em 2008, resultou na institucionalização do G20, reunindo as maiores economias do planeta. As reuniões anuais do G20 ingressaram numa repetitiva rotina de trabalho dos dirigentes desses países (incluindo a União Europeia e organizações pertinentes), relativamente satisfatórias no plano das proposições, mas que eram bem menos exitosas no terreno das realizações concretas, dada a diversidade natural de orientações de política econômica (e de postura política) entre seus membros, o que parece natural, uma vez que o G20 carece da unidade de propósitos que caracteriza, por exemplo, a Ocde. Alguns grupos informais, para meio ambiente, por exemplo, ou para outros temas globais, foram sendo instituídos, ao sabor das urgências de cada momento, sem exibir, contudo, o formalismo institucional de grupos estruturados em torno de um tema específico, com objetivos bem determinados. Estes são, grosso modo, os exemplos mais conspícuos – descurando a multiplicidade e a diversidade dos acordos e arranjos regionais ou plurilaterais que congregam interesses setoriais ou regionais, geralmente sob a forma de arranjos de liberalização do comércio ou organizações de escopo político, ou militar, como a Otan, no caso –, de agrupamentos surgidos a partir de um entendimento comum sobre objetivos compartilhados, que podem, ou não, evoluir para formatos institucionais, ou mais refinados, de agregação de valores e dotados de metas claramente definidas.
        Este não parece ser o caso do Bric-Brics, entidade híbrida, no universo dos agrupamentos conhecidos, sem um formato preciso quanto à sua institucionalidade e desprovido de metas objetivamente fixadas de acordo a um entendimento comum sobre seus objetivos básicos, ou seja, os elementos capazes de definir esse agrupamento em sua essência fundamental. Ele parece ter sido mais formado em oposição ao suposto “hegemonismo” do G7 do que em torno de propostas próprias sobre a ordem econômica e política mundial, com base em uma agenda de trabalho formalizada. Mas atenção, e aqui reside uma diferença relevante com respeito a todas as entidades mencionadas acima, ele não resultou de uma necessidade detectada internamente aos integrantes de seu primeiro formato, o Bric, mas se constitui a partir de uma sugestão totalmente alheia ao trabalho diplomático, ou de coordenação econômica entre países postulando objetivos comuns, com uma “inspiração” externa e estranha ao grupo, apenas para “aproveitar” a aproximação feita por um funcionário de uma entidade dedicada a finanças e investimentos, o economista Jim O’Neill, do Goldman Sachs. Por essa razão precisa, sempre o considerei um personagem anômalo, no universo de nossas tradições diplomáticas, mas basicamente em função de uma composição heterogênea, sem um foco preciso no leque dos interesses nacionais do Brasil no plano externo.

        Este livro foi composto a partir de uma seleção de uma dezena, tão somente, de trabalhos, dentre uma lista de mais de duas dúzias de ensaios e artigos que escrevi explicitamente sobre o Brics – à exclusão, portanto, de diversos outros textos que pudessem igualmente abordar secundariamente esse grupo de países reunidos por uma ambição diplomática –, a partir de uma simples proposta econômica, e que se manteve navegando, entre ventos e marés, desde meados da primeira década do século, e que segue existindo mais como ideia do que como realidade. Os primeiros trabalhos nessa categoria foram escritos antes mesmo da constituição formal do grupo e se estenderam por mais de uma década, sobretudo durante a vigência do lulopetismo diplomático. A despeito de algo defasados no tempo, o que se reflete em alguns dados conjunturais, eles revelam uma preocupação fundamental do autor com a coerência da diplomacia brasileira – nem sempre respeitada em todos os governos – e com uma noção muito bem refletida sobre os chamados interesses nacionais – nem sempre bem interpretados por todos os governos –, o que fiz invariavelmente desde minha formação superior, nos campos da sociologia histórica e da economia política.         A partir do momento em que passei a exercer-me na carreira de diplomata, nunca deixei de aplicar minhas leituras, minhas pesquisas, as experiências adquiridas em prolongadas estadas no exterior, em todos os regimes políticos e sistemas econômicos imagináveis, com exceção talvez de uma pura tirania ao velho estilo do despotismo oriental, ou o stalinismo do seu período mais sombrio. Percorri muitos países, ao longo de uma vida de estudos e de missões diplomáticas, sempre recolhendo impressões sobre suas formas de organização política e suas modalidades de organização econômica, o que me permitiu escrever centenas de artigos, duas dúzias de livros e incontáveis notas em cadernos, que se transformavam em trabalhos uma vez definido um objeto preciso de análise.
        O Bric-Brics foi um desses animais estranhos na paisagem diplomática, ao qual apliquei o meu bisturi analítico, de forma bastante crítica como se poderá constatar pela leitura dos trabalhos selecionados e aqui compilados, o que obviamente se situava contrariamente à postura do Brasil em política externa nos anos do lulopetismo diplomático. Nunca fui de aderir a modismos de ocasião, nem me intimidei com os olhares estranhos que me eram dirigidos cada vez que eu me pronunciava com o meu olhar crítico sobre esse novo animal na paisagem de nossas relações exteriores. Sempre considerei que a atividade diplomática não pode ser dominada por esses princípios que só podem vigorar nas casernas, ou melhor, em situações de combate: a hierarquia e a disciplina. Acredito que um soldado não pode interromper as operações no terreno para ir discutir os fundamentos da paz kantiana com o seu comandante de pelotão, mas um diplomata tem, sim, o dever, de questionar, e de argumentar, sobre cada “novidade” que se apresenta na agenda das relações exteriores do Brasil.
        Como nunca me dobrei ao argumento da autoridade, sempre busquei invocar a autoridade do argumento ao discutir a rationale desse animal bizarro no cenário de nossas atividades, o que não foi bem recebido pelo grupo no poder. Não obstante estar privado de cargos na Secretaria de Estado, durante mais de uma década, continuei analisando criticamente as principais opções de nossas relações exteriores, aliás em todos os governos, desde a era militar até o arremedo de autoritarismo castrense a partir de 2019, o que se refletiu, precisamente, em todos os livros que publiquei desde 1993 (sendo os dois primeiros sobre o Mercosul) e em dezenas de artigos de corte acadêmico redigidos desde o período da ditadura militar. O último artigo desta coletânea, não tem a ver diretamente com a questão do Brics, mas se refere precisamente a essa postura de “minoria” contra certas posições dominantes, que nunca hesitei em proclamar, com base num estudo aprofundado de nossas relações internacionais.
        Esta compilação de artigos e ensaios tem por objetivo, assim, demonstrar na prática como se pode fazer diplomacia – ou, no caso, história diplomática – sem necessariamente rezar a missa pelo credo oficial. Ela demonstra, pelo menos para mim, que o dever do diplomata não é o de se curvar disciplinadamente às inovações que vêm de cima, mas o de questionar, com base num exame detido de cada questão, sua adequação a uma certa concepção do interesse nacional. A radiografia que aqui se faz do Brics tem por objetivo apresentar os dados da questão, examinar o interesse da ideia para o interesse nacional – com o objetivo do desenvolvimento econômico e social sempre em pauta – e de questionar o que deve ser questionado a partir de certos equívocos de posicionamento externo que podem discrepar daquele objetivo.         Manterei minha opção de oferecer relatórios de minoria cada vez que a ocasião se apresentar. No momento, a intenção foi a de coletar trabalhos resultando uma década e meia de reflexões sobre o que eu chamei de “grande ilusão” de uma diplomacia paralela, que ainda exerce influência sobre nossas opções externas.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 6 de maio de 2022

Postagem em destaque

Livro Marxismo e Socialismo finalmente disponível - Paulo Roberto de Almeida

Meu mais recente livro – que não tem nada a ver com o governo atual ou com sua diplomacia esquizofrênica, já vou logo avisando – ficou final...