Uruguai cogita sair do Mercosul
Temas de relações internacionais, de política externa e de diplomacia brasileira, com ênfase em políticas econômicas, viagens, livros e cultura em geral. Um quilombo de resistência intelectual em defesa da racionalidade, da inteligência e das liberdades democráticas. Ver também minha página: www.pralmeida.net (em construção).
terça-feira, 4 de julho de 2023
Uruguai cogita sair do Mercosul - Júlia Barbon (FSP)
Livro: Seven Crashes: The Economic Crises That Shaped Globalization - Harold James
Um livro interessante:
Relações internacionais, política externa do Brasil e carreira diplomática: reflexões de um diplomata não convencional - Paulo Roberto de Almeida
Relações internacionais, política externa do Brasil e carreira diplomática: reflexões de um diplomata não convencional
Paulo Roberto de Almeida
Notas para aula inaugural no quadro do curso do Ibmec Global Affairs, em 20/08/2021, 19hs.
Agradecimentos pelo convite.
Como sempre faço, tomo notas do que gostaria de expor, mas como também sempre acontece, fica muito grande, e por isso acabo não lendo, mas colocando à disposição de todos as minhas reflexões do momento, para que todos possam ler com mais calma, do que numa exposição ex-catedra, que teria virtudes dormitivas.
Comecei pelo assunto do momento, a retirada dos Estados Unidos do Afeganistão e o reflexo disso para as relações internacionais e para a posição dos EUA, e para isso me vali de um interessante artigo na revista The New Yorker, da colunista Robin Wright, “Does the Great Retreat from Afghanistan Mark the End of the American Era?” (16/08/2021; que coloquei à disposição de todos em uma postagem no meu blog Diplomatizzando: “A Grande Retirada do Afeganistão marca o fim da Era Americana?”).
Faço uma série de considerações sobre a questão dos Impérios, um pouco com base na conhecida obra de Arnold Toynbee, Estudo da História, mas também recomendo um livro que estou lendo atualmente: Empires in World History, de Jane Burbank e Frederich Cooper, que downloadei no meu Kindle (Princeton, 2010). É um livro diferente das histórias convencionais, pois que justamente trata das questões de poder, desde a antiga Roma e a China até o fim do sistema imperial, o que não está perto de ocorrer. Não vou retomar aqui tudo o que escrevi sobre os variados impérios, com destaque para o americano, em aparente declínio, até a irresistível ascensão da China e a sua volta ao seu antigo status imperial. Apenas me refiro ao fato de que o moderno sistema de relações internacionais, baseado numa representação supostamente igualitária dos Estados nacionais, têm no máximo 75 anos, ou seja, pouco mais de três gerações. O próprio sistema de Estados nacionais, se sistema existe, têm aproximadamente quatro ou cinco séculos, mas isso de uma perspectiva ocidental, pois que outros impérios e civilizações existiram, coexistiram se combateram e se suplantaram durante muitos séculos antes, e em várias outras regiões do mundo.
O império chinês, que existiu por meio de mais de duas dezenas de dinastias, através dos séculos, por mais forte e inovador que tenha sido, não pode evitar sua conquista por povos de fora de suas muralhas supostamente inexpugnáveis: os mongóis, no século XII, e os manchus, no século XVII. O império romano do Ocidente, com sua capital em Roma, existiu durante mais de quatro séculos, até ser submerso pelos povos germânicos ou eslavos que viviam na sua periferia, no século V despois de Cristo. O império romano no Oriente, com sua capital em Constantinopla, ou Bizâncio, sobreviveu durante mil anos, aproximadamente, até ser conquistado pelos otomanos, que mantiveram, por sua vez, o seu império por mais de 600 anos.
Mais próximo de nós, o império britânico, o maior do mundo entre o final do século XIX e o início do XX, dominou o comércio internacional, pagamentos e financiamentos durante décadas, até o seu declínio, a partir da Grande Guerra e finalmente em Suez. Foi a partir de 1917 que tem início a era do império americano, começando pelo lado financeiro para depois se traduzir num domínio econômico e estratégico claramente preeminente, pelo resto do século XX: o século americano parecia predestinado a durar mais um século inteiro, todo o século XXI. A China recém emergia dos anos destruidores de maoísmo demencial – depois do fracasso mortífero do Grande Salto para a Frente e dos anos turbulentos da Revolução Cultural – e não parecia estar minimamente em condições de desafiar a superpotência americana.
O que assistimos, nos últimos trinta anos, desde os anos 1990, quando começa, verdadeiramente, a fulgurante ascensão da China, foi algo absolutamente excepcional na história econômica mundial, jamais visto nos registros de crescimento econômico e de capacitação tecnológica e de construção de poderio militar.
O mundo está próximo, agora, de ver a China conquistar o primeiro lugar na formação do PIB global, como já é o caso em grande parte do comércio internacional e será certamente o caso dos investimentos diretos e dos financiamentos em mais alguns anos. Os chineses, não alcançarão, provavelmente, o PIB per capita dos americanos no corrente século ou em qualquer tempo, mas existem outros elementos que sinalizam a mudança de cenário.
Três observações podem ser feitas a esse respeito. Em primeiro lugar, a ascensão da China não significa, inevitavelmente, o declínio, mesmo relativo, do poderio científico e tecnológico ocidental, ou seja, americano, europeu, japonês (e de alguns outros membros do clube das nações avançadas). Em segundo lugar, o impulso excepcional da China pode não ser tão irresistível quanto parece atualmente, sobretudo em vista de tremores geopolíticos na Ásia Pacífico ou no próprio Império do Meio, Em terceiro lugar, não se pode conceber que, após essa “era americana” – que ainda não terminou, cabe esclarecer – virá uma “era chinesa”, o que está longe de ser admitida universalmente ou consensualmente.
A China também foi humilhada ao longo de sua história, duas vezes por invasores que não se intimidaram com o seu tamanho e desprezaram solenemente a Grande Muralha, e mais algumas outras vezes pelas potências ocidentais, nas guerras do ópio e na destruição do Palácio de Verão, em meados do século XIX,
Os impérios que humilharam a China já não poderão voltar a fazê-lo novamente, e os impérios que ainda restam já não podem ignorar solenemente os Estados nacionais, como frequentemente fizeram no passado. O mundo mudou, mas veleidades imperiais permanecem presentes, assim como as mesmas paixões e instintos que deslancharam a guerra de Troia permanecem invariavelmente humanas, mesmo a uma distância de milhares de anos.
Como se situa o Brasil no presente contexto de uma incerta multipolaridade?
Nos trinta anos precedentes, o Brasil e o Itamaraty construíram as bases conceituais de suas relações exteriores e os instrumentos operacionais de uma diplomacia autônoma e soberana, identificadas, ambas, com os grandes interesses do desenvolvimento nacional, em todos os planos: bilateral, regional e multilateral.
A política externa, a gestão ambiental, a condução da cultura e a da educação nunca corresponderam, no atual governo, a padrões compatíveis com o que se espera de uma administração normal, dotada de um programa qualquer que pudesse garantir estabilidade macroeconômica e programas setoriais voltados para o crescimento, o emprego e ganhos de produtividade necessários para enfrentar a competição econômica num mundo globalizado.
Examinei, em quatro livros digitais, fase de demolição completa dos fundamentos conceituais e de sua substância operacional nos dois anos e três meses em que perduraram os desatinos e loucuras perpetrados por quem chamei de “chanceler acidental”, sendo que os efeitos da virtual derrocada de nossa credibilidade no exterior não foram ainda totalmente superados, uma vez que a política externa continua a ser marcada pela mesma autoridade incompetente. Esses livros receberam os significativos nomes de Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019), O Itamaraty num labirinto de sombras: ensaios de política externa e de diplomacia brasileira e Uma certa ideia do Itamaraty: a reconstrução da política externa e a restauração da diplomacia brasileira (ambos de 2020) e O Itamaraty Sequestrado: a destruição da diplomacia pelo bolsolavismo, 2018-2021, o mais recente. A esses, se seguirá um novo livro, Apogeu e demolição da política externa: itinerários da diplomacia brasileira (em versão impressa, pela Editora Appris).
Não pretendo refazer aqui todas as críticas e comentários que já formulei a propósito da miséria da nossa atual política externa e dos descompassos de nossa diplomacia – no momento felizmente liberta das loucuras alucinadas e alucinantes do ex-chanceler acidental –, tanto porque já disso tudo o que poderia ser dito nesses cinco livros mencionados acima. Mas cabem algumas palavras de alento aos que pensam em seguir a carreira diplomática e que se preparam seriamente para tal.
Como diz o famoso bordão: não há bem que nunca acabe, e não há mal que sempre dure. O Itamaraty e a política externa passaram por turbulências inéditas em nossa história independente, mas uma recuperação está em curso, e ela se completará no próximo governo.
A carreira diplomática é uma das mais atraentes na burocracia federal, pelo menos para aqueles que não estão apenas à procura de um emprego público, mas que, sim, tenham a vocação internacionalista, possuam um bom preparo intelectual e se sintam totalmente à vontade numa vida nômade, feita de postos excelentes, muitos médios e algumas situações de dificuldades materiais no vasto mundo da periferia do capitalismo global.
“Dez Regras Modernas de Diplomacia” (Chicago, 22 de julho de 2001; 19/08/2021: link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2021/08/regras-modernas-e-sensatas-de.html).
Se ouso concluir, seria por uma nota de otimismo. No Brasil, depois de surpresas e frustrações, retomaremos nosso inevitável processo de crescimento econômico, visando um grau maior de desenvolvimento social, o que virá, no devido tempo, e reconstruiremos também a nossa política externa e a diplomacia de qualidade, uma vez afastados os novos bárbaros do poder. É uma questão de persistência, de resiliência, de insistência no caminho iniciado 200 anos atrás, que construiu uma das melhores diplomacias entre novas nações saídas do colonialismo e uma política externa das mais respeitadas entre países em desenvolvimento.
De minha parte, continuarei me exercendo em minhas vantagens comparativas relativas, que estão na pesquisa, no estudo, na reflexão e na escrita e publicação de materiais diversos atinentes às relações internacionais do Brasil, à sua política externa e à sua diplomacia, cujo itinerário estou concluindo com plena satisfação intelectual e um registro de boas obras realizadas, no plano profissional e no acadêmico.
Muito obrigado.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3960, resumo: 19 agosto 2021, 14 p.
segunda-feira, 3 de julho de 2023
Mercosul: Conselho do Mercado Comum: propostas otimistas, resultados pífios - Nota do Itamaraty
Discursos oficiais costumam ser otimistas, e pretendem mostrar uma realidade rósea, prometendo mais do que os governos conseguirão cumprir. Mas, é mais do que róseo: é absolutamente onírico em suas pretensões. Desejo que tudo se cumpra, mas não acredito em uma só linha do que vai aqui.
Paulo Roberto de Almeida
Nota MRE nº
3 de julho de 2023
Puerto Iguazú, 3 de julho de 2023
Senhores Ministros,
É um prazer estar aqui, neste belo marco da integração regional, as Cataratas do Iguaçu, na tríplice fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai. Nada melhor do que este local para simbolizar nossa conexão natural.
Como Ministro das Relações Exteriores do governo do presidente Lula, para quem a integração regional é uma prioridade absoluta, é com imensa satisfação que participo desta reunião do Conselho Mercado Comum.
Tenho especial prazer de estar presente no momento em que se encerra a presidência ‘pro tempore’ da Argentina no MERCOSUL, sob a liderança do presidente Alberto Fernández e do chanceler Santiago Cafiero. Gostaria de agradecer a Argentina pelo empenho em resguardar, ao longo dos últimos anos, o legado institucional e político conjunto que viemos construindo conjuntamente ao longo das últimas três décadas de existência do MERCOSUL.
Alegra-me também rever muitos dos representantes que estiveram na Reunião de Presidentes da América do Sul, realizada em Brasília, em 30 de maio. A atual formação do MERCOSUL, que inclui todos os países sul-americanos, como Estados Partes ou Associados, demonstra que o bloco constitui sólida base institucional para fortalecer a integração, tanto em termos econômicos e comerciais, quanto em perspectivas políticas, sociais e cidadãs. Estendo a todos, desde já, o convite a colaborar com as atividades da presidência ‘pro tempore’ brasileira no MERCOSUL.
Para o governo do presidente Lula, a prioridade concedida à integração regional está baseada tanto em nossa Constituição Federal quanto no compromisso com a melhoria das condições de vida das nossas populações. Tão logo o Presidente Lula assumiu o governo, o Brasil retornou à CELAC; celebramos a Reunião dos Presidentes Sul-Americanos em Brasília; e estamos planejando, para agosto, a Cúpula dos Países Amazônicos.
Ao ressaltar a tradição política de paz na nossa região, acredito que devemos aprofundar nossa cooperação política e a busca de interesses comuns. Se recordarmos a recente pandemia de COVID-19 e seus profundos efeitos sobre o cotidiano, a economia e, principalmente, a perda de numerosas vidas, teremos o exemplo claro de que nossos países fazem mais e melhor, quando cooperam, do que quando se isolam e enfrentam, por exemplo, piores condições de suprimento de insumos médicos e vacinas.
Também vale mencionar o conflito na Ucrânia e suas implicações sobre fundamentos centrais da economia mundial, em particular o fornecimento de energia e a provisão de insumos básicos para a agricultura. Nesse contexto adverso, a integração regional assume importância ainda maior.
Na visão do Brasil, o MERCOSUL pode desempenhar papel relevante na coordenação de iniciativas e na busca de projetos estratégicos para conectar cada vez mais a América do Sul entre si e às cadeias globais de valor. Projetos como o Corredor Bioceânico têm enorme potencial para impactar positivamente nossas economias e sociedades. Pretendemos, durante a PPTB, continuar trabalhando para ampliar nossa conectividade de infraestrutura, transporte e logística.
Nosso comércio com a região desempenha papel fundamental. A América do Sul, um mercado de mais de 430 milhões de pessoas, é o quarto parceiro comercial brasileiro, atrás apenas da China, da União Europeia e dos Estados Unidos. Em 2022, o intercâmbio com nossos parceiros sul-americanos cresceu 21%, registrando quase 78 bilhões de dólares, e até maio deste ano, já aumentou 8,5%. Para além do fator quantitativo, valorizamos a qualidade desse comércio, com marcante participação de produtos manufaturados e semimanufaturados, nos dois sentidos.
Tais cifras são possíveis, em grande parte, em razão dos acordos celebrados com nossos parceiros, no âmbito da ALADI. Graças a esses acordos, a América do Sul conforma, na prática, uma área de livre comércio.
Nossos Presidentes, por meio do Consenso de Brasília, adotado em 30 de maio, comprometeram-se a trabalhar para o incremento do comércio e dos investimentos entre os países da região; a melhoria da infraestrutura e logística; o fortalecimento das cadeias de valor regionais; a aplicação de medidas de facilitação do comércio e de integração financeira; a superação das assimetrias; a eliminação de medidas unilaterais; e o acesso a mercados, por meio de uma rede de acordos de complementação econômica, inclusive no marco da ALADI.
Ciente desse fato, posso assegurar-lhes que, durante a Presidência Pro Tempore do Brasil no MERCOSUL, que coincidirá com a presidência brasileira no Comitê de Representantes da ALADI, priorizaremos ações efetivas para atualizar a agenda comercial dos Estados Partes com os Estados Associados e dinamizar os fluxos de bens, serviços e investimentos com nossos irmãos sul-americanos. Não menos importante, o MERCOSUL dará continuidade ao processo de retomada e aproximação com a América Central e o Caribe.
A força da institucionalidade do MERCOSUL está baseada no trabalho de seus foros especializados e no constante aprimoramento de normas e acordos temáticos. Quero reforçar, nesse contexto, os meus agradecimentos à PPTA pelo empenho envidado ao longo desse semestre.
No âmbito do MERCOSUL político, gostaria de adiantar que pretendemos reforçar o diálogo com o PARLASUL. Nesse sentido, convido também os Estados Associados a avaliarem o seu interesse em aderir a diferentes instrumentos do MERCOSUL já vigentes, bem como reforço o convite para participação de seus ministérios setoriais nos foros especializados. Esperamos, ao longo da PPTB, avançar na discussão sobre formatos institucionais mais flexíveis, que permitam maior participação dos Estados Associados nos foros especializados. Menciono, por exemplo, o desejo do nosso Ministério de Desenvolvimento Social de aprofundar a parceria com o Chile e a Colômbia, no âmbito da Reunião de Ministros e Autoridades de Desenvolvimento Social (RMADS).
Em tema conexo, gostaria de reconhecer e agradecer o grande esforço da PPTA na retomada da Cúpula Social do MERCOSUL. A Cúpula Social representa o principal espaço para participação da sociedade civil dos Estados Partes e dos Estados Associados no MERCOSUL. O governo do presidente Lula tem priorizado a retomada da participação social na discussão e aplicação de políticas públicas nacionais. Também pretendemos dar encaminhamento a esta agenda no âmbito regional. Por isso, gostaria de anunciar que realizaremos nova edição da Cúpula Social ao longo da PPTB.
Por fim, entre os resultados da agenda social e cidadã, gostaria de saudar o reconhecimento do “Museu Sítio de Memória ESMA” como patrimônio cultural do MERCOSUL. Iniciativas como essa fomentam a reflexão sobre o direito à vida, à liberdade e à democracia. Aproveito para recordar que o Museu Sítio de Memória ESMA serve de sede ao Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do MERCOSUL, cuja atuação em muito se beneficia do apoio conferido pelo governo argentino. Trata-se, portanto, de um local de significado para todo o bloco, de nossos esforços comuns em prol da consolidação da democracia e dos direitos humanos na região. Quero reiterar, nesse contexto e com vistas à PPTB, o compromisso do governo brasileiro com o fortalecimento do IPPDH e também do Instituto Social do MERCOSUL.
Ao encerrar, gostaria de agradecer mais uma vez à PPTA e renovar a todos o convite para trabalharmos junto em prol do MERCOSUL ao longo do próximo semestre, no âmbito da presidência ‘pro tempore’ do Brasil.
Muito obrigado.
Prigozhin Should Study Europe’s Greatest Mercenary -Lucian Staiano-Daniels (Foreign Policy)
Prigozhin Should Study Europe’s Greatest Mercenary
Albrecht von Wallenstein was the Holy Roman Empire’s power broker—until he clashed with his superior.
Foreign policy, JULY 2, 2023, 7:00 AM
Over a 24-hour period last weekend, Yevgeny Prigozhin, the commander of Russia’s Wagner Group, called for an uprising against Russia’s military leaders and advanced most of the way to Moscow at the head of his mercenary army before abruptly stopping. Prigozhin and Russian President Vladimir Putin looked each other in the eye, and both blinked.
Commenters have been likening this incident to a spat among gangsters, harking back to Prigozhin’s rise from a petty crook to, until recently, a close crony of Putin. This is more apposite than they might realize. The political theorist Charles Tilly famously compared state-making and war-making to organized crime. Both are human networks that extract resources, use these resources to promulgate violence, and attempt to monopolize violence in areas they control.
Putin and Prigozhin are fighting as a late medieval or early modern head of state and one of his mercenary generals might fight: Social networks of violent men tend to act in remarkably similar ways in many different contexts. One interpretation of Prigozhin’s actions suggests that they were intended more as an elaborate protest than as a serious threat; although this is by no means certain, this kind of mutiny is well attested in early modern Europe.
In 1973, the historian Geoffrey Parker analyzed the mutinies of the Spanish Army of Flanders, arguably the greatest infantry army of its age, in the late 16th and early 17th centuries. Their mutinies were forms of protest against harsh conditions or lack of pay, they followed a ritualized formula of work stoppage and presentation of demands, and the authorities often met them with negotiation rather than draconian punishment.
These protests were not bloodless: Antwerp has never fully recovered from its sack in 1576 during one of these events. But they and other large mutinies in the early modern Swedish or Parliamentarian armies demonstrate that the relationship between mercenary and master operated according to what the social historian E.P. Thompson called a moral economy, according to which proper behavior was expected on either side. This relationship could be extraordinarily vexed. The career of Europe’s last and greatest early modern mercenary general, a man whose eventual fall may offer insights into Russia’s future today, demonstrates this well.
Albrecht von Wallenstein was born in 1583 in Bohemia, then a kingdom of the Holy Roman Empire. When the Thirty Years’ War broke out with a rebellion in Bohemia, he was a minor Bohemian noble with military experience. He remained loyal to the Holy Roman Empire’s establishment and became a colonel in the Imperial Army of Emperor Ferdinand II. He also became extremely wealthy during the early years of the war by expropriating the confiscated properties of rebels who fled or were defeated. This is also how Prigozhin’s generation of Russian kleptocrats rose after the fall of the Soviet Union, which was followed by a massive sell-off of state-owned property.
Wallenstein used his financial base to make himself essential to Ferdinand by raising and financing armies on his own while also advancing immense loans to the crown. He was repeatedly ennobled and eventually given command of the Imperial Army. Centuries later, Prigozhin echoed him in his own fusion of public war-making and private finance but in a different form. Wagner was funded by the Russian defense ministry, but Prigozhin’s companies also made large sums of money through government contracts. In return, until Prigozhin’s rebellion, the Wagner Group not only acted as an extralegal army but also helped strengthen the Russian economy by extracting natural resources in Africa.
Military enterprise and state activity have been intertwined in many states, at many times. Early modern political entities relied on this public-private cooperation because they were not yet able to finance warfare on their own or handle other essential activities such as minting coinage, an ambiguously crooked enterprise in which Wallenstein also participated. The public, the private, and the potentially criminal were intertwined in Wallenstein’s career because the prince he served was not yet powerful enough to do what he relied on Wallenstein to do for him.
In contrast, they were and are intertwined in Russia because the Russian state in the Weberian sense is weakening. The Russian institutions of state are substantially interpenetrated with private and criminal interests, and functions such as universal suffrage and the rule of law are compromised. Most importantly for this essay, in both the early modern Holy Roman Empire and contemporary Russia, the central authority lacks the monopoly on legitimate lethal force.
This has become brutally clear in Russia over the past few days, as Prigozhin’s men seized Rostov-on-Don and shot down Russian army helicopters while other forces avoided engaging them. Their mutiny has damaged the image Putin cultivated of himself as the most powerful warlord, the man whose extra-state rule was acceptable because it was effective. But this rule laid the structural foundations that made the mutiny possible.
Like Prigozhin and Putin, Wallenstein and Ferdinand were tied inextricably to each other: Wallenstein was both the emperor’s creditor and his creature and owed his social position solely to the emperor’s promotion. The Imperialists may not have been able to win without him, just as the use of mercenaries such as Wagner is one way Russia is effacing the true costs of the war in Ukraine.
Yet politically Wallenstein was troublingly independent. Like Prigozhin, Wallenstein clashed repeatedly with his government over strategies that he was responsible for implementing but on which he had little influence, and he attempted to broker peace on his own. He was dismissed twice and eventually accused of treason, lured into a meeting with the connivance of some of his officers, and assassinated in early 1634. Like Prigozhin, Wallenstein’s contacts with his government’s enemies were ambiguous; unlike him, he probably was not planning armed rebellion until he figured out that the emperor had put out a warrant on him.
Both Prigozhin and Wallenstein were powerful military leaders acting within a fusion of public and private. Such men were both subjects of their head of state and mercenary generals, neither purely dependent nor purely independent. This is one reason they chafed against their respective heads of state. But militarily, Wallenstein was the most powerful man in the empire, and the army he commanded was the largest in Europe since classical Rome. The Imperialists literally could not fight without him. Wagner is tiny: Prigozhin is not, in terms of military force, a serious rival to the Russian army.
But Wallenstein’s rise and fall illustrate not only Prigozhin’s weakness but also Putin’s. Although Wallenstein was probably not a traitor, once Ferdinand became convinced that he was, he acted decisively and authorized Wallenstein’s apprehension, dead or alive. In contrast, Putin has let Prigozhin live so far.
Wallenstein’s end suggests two possibilities. The first is that Ferdinand may have been a colder operator than Putin, despite the former’s lace collar and the latter’s tough-guy image. The second is that Putin is planning to kill Prigozhin—perhaps with the compliance of some of his own men, much like Wallenstein. Alive, especially in an independent base in Belarus, he will be a threat.
Lucian Staiano-Daniels is a visiting assistant professor at Colgate University. His book on the historical social anthropology of early seventeenth century common soldiers is upcoming from Cambridge University Press.
Lula assume presidência do Mercosul com desafio de destravar negociação com a União Europeia (O Globo)
Lula assume presidência do Mercosul com desafio de destravar negociação com a União Europeia
O Globo, 3/07/2023
- O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assume a presidência rotativa do Mercosul a partir desta terça-feira, com o desafio de tentar destravar o acordo entre o bloco e a União Europeia. No comando da organização, o presidente brasileiro terá que tentar construir uma posição unificada no continente, diante das novas exigências dos europeus. Outro obstáculo é o processo de aproximação da China junto à Argentina e ao Uruguai.Presidido por Luis Lacalle Pou, líder da direita no país, o Uruguai cogita construir um acordo bilateral com os chineses separadamente. Mas o governo brasileiro argumenta que qualquer negociação desse tipo precisa primeiro da concordância dos demais sócios do Mercosul.A 62ª cúpula de presidentes do Mercosul começa oficialmente nesta segunda-feira, quando acontecerá uma reunião do Conselho do Mercado Comum (CMC), que reúne os ministros das Relações Exteriores e da Fazenda de cada país. Os chefes de Estado só devem entrar em cena na terça-feira, quando a Argentina passará o comando temporário para o Brasil pelos próximos seis meses. A reunião será realizada em Puerto Iguazú, cidade argentina localizada na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina.De acordo com secretário de Assuntos Econômicos e Financeiros do Ministério das Relações Exteriores, embaixador Mauricio Carvalho Lyrio, o Brasil está “muito próximo” de fazer uma proposta ao Mercosul sobre qual deve ser a resposta do bloco à União Europeia. Isso porque, no último mês de maio, os países da UE apresentaram um documento adicional que contém novas exigências, como, um maior rigor no combate à derrubada de florestas.Do lado brasileiro, a principal preocupação diz respeito às compras governamentais. O motivo é que o texto do acordo, construído até 2019, prevê a abertura de licitações para empresas estrangeiras em condição de igualdade com as locais. Além disso, causa preocupação no Itamaraty o fato de a União Europeia sugerir que o acordo traga também a possibilidade de sanções ao Mercosul, caso os países sul-americanos não cumpram com exigências ambientais.— Tem umas preocupações específicas sobre o conjunto de textos herdados de 2019 [quando o acordo quase foi concluído] mais o documento adicional no que se refere às compras governamentais — explicou o embaixador. — Numa relação de países de confiança não cabe abordagem por meio de sanções comerciais. Então este é outro tema que temos que discutir.Um dos aspectos que podem pesar contra o esforço da diplomacia brasileira para que essas questões sejam solucionadas já nesta semana é o fato de que dois dos quatro países do bloco estão passando por processos eleitorais. A Argentina terá novo presidente em outubro e o atual chefe de Estado do país, Alberto Fernández, sequer irá concorrer à reeleição. Já o Paraguai elegeu, recentemente, o economista Santiago Peña, mas este assumirá o cargo apenas em agosto. Portanto, não participará das negociações em relação à resposta do Mercosul neste momento.Na prática, isso colocará foco justamente sobre os presidentes Lula e Lacalle Pou, que têm adotado posições divergentes no bloco. O Valor apurou que a chancelaria brasileira pretende insistir no argumento de que, caso o Uruguai continue reivindicando a possibilidade de negociar diretamente com a China, estará optando também por abdicar de privilégios comerciais aduaneiros da região, como é o caso da Tarifa Externa Comum (TEC).O Itamaraty diz que o Mercosul tem a seu favor os números do comércio na região. Após uma queda substantiva nas relações comerciais entre os países-membros por conta da pandemia, o volume de negócios voltou a crescer no bloco em 2021 (US$ 35 bilhões) e 2022 (US$ 40 bilhões). Além disso, o Mercosul tem negociações “avançadas”, segundo o secretário Mauricio Carvalho Lyrio, com a “Efta”, como é conhecida a área de livre comércio formada por Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça.Outro assunto que tem colocado Brasil e Uruguai em lados opostos é a questão venezuelana. Lula defende o retorno da Venezuela ao bloco, mas, recentemente, Lacalle Pou criticou duramente o brasileiro por amenizar as denúncias de violação de direitos humanos no país de Nicolás Maduro. Neste contexto, o governo brasileiro deve ignorar o assunto na cúpula.— O Brasil pretende levar [este tema para a reunião do Mercosul]? Não. É do interesse do Brasil ter a Venezuela [no bloco]? Sim, mas precisa discutir as condições — disse a embaixadora Gisela Padovan, secretária para América Latina e Caribe do Itamaraty. — A razão da suspensão [da Venezuela] foi o não cumprimento do calendário de ações de qualquer país que queira ingressar [no Mercosul] e evidentemente a questão democrática é importante.https://oglobo.globo.com/mundo/noticia/2023/07/lula-assume-presidencia-do-mercosul-com-desafio-de-destravar-negociacao-com-a-uniao-europeia.ghtml
Augusto de Franco sobre as democracias e as autocracias
Uma canja. Capítulo 33 do meu novo livro Como as democracias nascem
Augusto de Franco :
Como Nascem as Democracias
A RAIZ DO REALISMO POLÍTICO
“A teoria de Darwin sobre a sobrevivência do mais forte… [é] um melhor guia para a compreensão da história do que a moralidade pessoal”.
O realista Kissinger (1994), em Diplomacy, interpretando o pensamento de Theodore Roosevelt, o seu admirado “estadista-guerreiro” (1).
O realismo político acabou virando uma vertente de política externa ou internacional. Não nasceu assim, porém. Nasceu como um pensamento antipolítico, para efeitos, na verdade, internos.
Há uma tradição autocrática no pensamento político. É essa tradição que constitui o chamado realismo político. Começa com Platão, passa por Maquiavel, Hobbes, pelo Cardeal Richelieu, por Clausewitz, pelos chamados “políticos do poder”, como Metternich e Bismarck e vários outros até chegar aos realistas modernos como Schmitt, Morgenthau e Carr e aos contemporâneos, como, para citar apenas alguns exemplos, Brzezinski, Genscher, Ross, Kissinger e o novo crush dos autocratas de direita e de esquerda chamado John Mearsheimer. Este capítulo é sobre isso. Mas não vai comentar exaustivamente as ideologias desses autocratas e sim apenas chamar a atenção para alguns padrões antidemocráticos que estão presentes nos seus pensamentos.
Platão
Podemos dizer – sem medo de errar – que o realismo político nasceu com Platão, quer dizer, tem a ver com os fundamentos dos regimes de Esparta, Creta e Siracusa, não com os fundamentos do regime que vigorou em Atenas nos séculos 5 e 4 a.C. Sua raiz é dória, não jônia. E as tentativas de atribuí-lo originalmente a Tucídides são inconsistências inventadas por acadêmicos americanos.
Platão, nas Leis (626a), escreveu que “na realidade, por questões de natureza (φύσις), todas as póleis vivem envolvidas em um estado de guerra velada”. Bem… aí com certeza começou, no plano teórico, o chamado realismo político. O primeiro problema dessa afirmação platônica não é constatar que as póleis (entendidas erroneamente como cidades-Estado) vivem em estado de guerra e sim achar que isso ocorre por algum tipo de deteminação natural, da phýsis, como qualidade ou propriedade constitutiva de todas as coisas ou sua maneira de ser. O segundo problema é não ver que a pólis, numa democracia (onde Platão vivia, embora a ela se contrapusesse), não é a cidade-Estado e sim a koinonia (comunidade) política. Como percebeu Hannah Arendt (1958), em A condição humana, “a pólis não era Atenas e sim os atenienses” (2).
Avancemos agora pouco mais de dois milênios para constatar como os padrões autocráticos se replicam em outras regiões do tempo. Hans Morgenthau (1948), um dos principais teóricos do realismo político, acreditava que “a política, como aliás a sociedade em geral, é governada por leis objetivas que deitam suas raízes na natureza humana”. Eis aí, desnudado, o pressuposto ideológico platônico antipolítico. Natureza humana é uma natureza (não, com perdão do neologismo, uma “socialeza”). Natureza, Deus ou História (tudo assim com maiúsculas) dá no mesmo. É uma instância extra-política determinando a política a despeito da interação propriamente política entre as pessoas. Se há algo infenso à política, determinando a política, não pode haver democracia.
Bastaria dizer isso. Mas partamos de uma definição, quase escolar, de realismo político antes de examinar os pensamentos de alguns realistas políticos.
Realismo político é guerra
Em poucas palavras e simplificando ao máximo (o que não é tão inadequado, pois suas construções intelectuais são simplórias), o realismo político parte da constatação de que, não havendo uma instância normativa no plano internacional (uma autoridade máxima à qual os Estados devam se submeter), cada Estado – sim, todo realismo é um estatismo: o sujeito é sempre o Estado, a sociedade é um dominium do Estado – deve garantir a sua própria segurança, agindo em nome de um interesse nacional.
Em nome desse interesse nacional, definido pelo próprio Estado, cada ator deve lutar para aumentar o seu poder (em geral traduzido como capacidade militar, mas não só), para impor sua vontade a Estados mais fracos. Cada Estado deve então decidir por si mesmo se e quando vai usar sua força para alcançar seus objetivos (ou realizar seus interesses).
A colaboração entre Estados, no limite, leva a abrir flancos perigosos, pois o aliado de hoje pode se tornar o inimigo de amanhã (o que é bem resumido na máxima autocrática: “os aliados lhe enfraquecem, os inimigos lhe fortalecem”).
Como não há democracia no plano internacional, não há lei (quer dizer, império da lei) ou critério ético-político a que um Estado deva se submeter. Logo, a única maneira de garantir a sobrevivência do Estado como entidade é organizar-se para se defender de um possível ataque de outros Estados.
Para garantir a paz (entendida como manutenção da integridade do Estado) é necessário se preparar para a guerra por meio da defesa (e por isso toda defesa é guerra preemptiva). E como o sistema é competitivo, a única maneira de evitar a guerra é alcançar um equilíbrio de forças que desestimule, por medo da retaliação, que um Estado faça guerra contra outro e o destrua.
Bem, trata-se de uma definição quase escolar, mas nem por isso incorreta. Pelo menos deixa claro que falar do realismo é falar de guerra. Não, não é falar de outra coisa. É o óbvio. Mas agora vem uma inferência não tão óbvia: toda guerra é interna. Este é o primeiro ponto a ser entendido. Para entendê-lo, porém, é preciso balançar algumas certezas.
Para começar, guerra não é o conflito. É um modo de regular o conflito. E guerra não é o conflito violento. Pode ser praticada sem violência (física), como guerra fria e como política adversarial (a política como continuação da guerra por outros meios).
Depois é preciso ver que guerra não é destruição de inimigos e sim, pelo contrário, construção e manutenção de inimigos (tanto faz se for a Eurásia ou a Lestásia, para lembrar o 1984 de Orwell).
Em seguida é necessário entender que a guerra não tem como objetivo principal derrotar um país estrangeiro a não ser na medida em que isso puder ser usado para instalar internamente um ‘estado de guerra’ (não adianta derrotar um inimigo externo se não se derrotar os inimigos internos, quer dizer, se a força política que está no poder de Estado não continuar estabelecendo sua supremacia). O objetivo da guerra – para quem a faz (e como dizia Maturana, “a guerra não acontece, nós a fazemos”) – é instalar um estado de guerra que enseje, permita e justifique a ereção de estruturas hierárquicas regidas por modos autocráticos. Ou seja, a guerra é um engendramento para possibilitar uma reorganização do cosmo social. Em outras palavras, para impor uma ordem preconcebida em vez de deixar que diversas ordens emerjam da interação, o que acontece toda vez que tomamos a liberdade como sentido da política (e não a ordem). Este ponto é fundamental, porque a democracia é apenas a política que não tem uma ordem pronta (preconcebida) para colocar no lugar de outra, mesmo que essa ordem seja avaliada como a mais perfeita e justa do universo.
Aqui é preciso entender, para resumir, que não é apenas que autocracias façam guerras: a guerra já é a autocracia. E toda autocracia é sempre uma guerra contra um inimigo interno (ainda que um inimigo externo possa existir objetivamente).
Voltemos agora aos pensadores realistas para corroborar essas primeiras impressões.
Schmitt
O jurista e estudioso político alemão Carl Schmitt, publicou, em 1932, um famoso livro intitulado O conceito do político, que provocou grande controvérsia sobre um suposto militarismo ou belicismo presente nas suas concepções. Sua posição foi encarada como realista, pelo fato de ele admitir (mesmo sem desejar, ou propor) que a guerra é o pressuposto sempre presente como possibilidade real em qualquer relação política. De qualquer modo, não há como negar que, para conceituar o político, Schmitt insiste demais nas noções de guerra e de inimigo, deixando de tratar, com a mesma atenção – e isso não pode ser por acaso –, dos conceitos de paz e de amigo.
Não cabe aqui entrar na controvérsia nos termos em que ela foi colocada. Talvez seja necessário dizer apenas que, para Carl Schmitt, “a diferença especificamente política… é a diferença entre amigo e inimigo”. Ainda que ele tente fazer uma distinção entre inimicus em seu sentido lato (o concorrente comercial, “o adversário particular que odiamos por sentimentos de antipatia”) e hostis (o inimigo público, o combatente que usa armas para destruir meu contexto vital, enfim, o inimigo político), parece claro que Schmitt não via diferença de natureza entre guerra e política. Tanto é assim que ele afirma que “a guerra, enquanto o meio político mais extremo, revela a possibilidade subjacente a toda concepção política, desta distinção entre amigo e inimigo” (3). Quer dizer que, para ele, conquanto seja um “meio extremo”, a guerra é um meio político. Do contrário ele deveria ter afirmado que a política pode levar à guerra, deixando de ser o que é (mudando, portanto, sua natureza) e não que a guerra é um meio político, pois que, assim, ao fazer guerra, ainda estamos fazendo política.
Pode-se perceber em Carl Schmitt um viés realista da chamada realpolitik. Contrapondo-se ao idealismo, o realismo político é uma política baseada no “equilíbrio do poder”, na linha do pensamento e da prática do Cardeal Richelieu – com sua “razão de Estado” (“raison d’état”) colocada acima de qualquer princípio moral – e dos chamados “políticos do poder”, como os já citados Metternich, Bismarck e, mais recentemente, Kissinger (1994), segundo a qual – e ele escreveu isso interpretando o pensamento do presidente Theodore Roosevelt, o seu admirado “estadista-guerreiro” – “a teoria de Darwin sobre a sobrevivência do mais forte… [é] um melhor guia para a compreensão da história do que a moralidade pessoal” (4).
O ponto da discussão é o seguinte: se pode haver guerra como meio político, então devemos ser realistas o suficiente para praticar a política como quem conta com tal possibilidade (e se prepara para isso, o que acaba, quase sempre, sendo a mesma coisa que praticar a política como “arte da guerra”). Ao proceder desse modo, separando os amigos políticos dos inimigos políticos (os que podem nos combater), cristalizamos aquela relação de inimizade que pode levar à guerra (e que, de qualquer modo, leva à prática da política como uma “arte da guerra”).
O problema é que isso não vale apenas para a relação entre Estados soberanos, mas acaba deslizando – inevitavelmente – para todas as relações políticas (Richelieu usava a “lógica” da tal “razão de Estado” para manter o seu poder internamente e não apenas nas relações internacionais da França). Amigo, então, passa a ser todo aquele que está de acordo com nosso projeto e inimigo todo aquele que discorda do nosso projeto. Ora, se quero afirmar o meu projeto, então devo derrotar ou destruir (na verdade, incapacitar) aqueles que podem inviabilizar a sua realização e isso deve ser feito, inclusive, preventivamente, antes que eles (os outros, os inimigos) consigam inviabilizar meu projeto ou substituí-lo pelos projetos deles. Preempção.
Há uma linha divisória muito fina entre derrotar e destruir o projeto do outro e derrotar e destruir o outro como ator político, quer dizer, como alguém que pode apresentar um projeto diferente (que não é o meu). Assim, basta alguém não estar de acordo com meu projeto (político), para poder ser classificado como inimigo (político), pelo menos em potencial.
Esse ponto de vista, portanto, não cogita muito da possibilidade de transformar o inimigo político em amigo político, convencendo-o, ganhando-o para o nosso projeto ou adotando outro projeto, um terceiro projeto, que contemple ambos os projetos (o nosso e o dele). O realismo indica que isso não ocorrerá, pelo simples fato de ele (o outro), para usar o pensamento de Carl Schmitt, não ser um eu-mesmo – o que significa, paradoxalmente, convenhamos, uma construção ideal do inimigo, aquele que deve ser desconstituído como ser político enquanto ameaçar a realização do meu projeto. Não podendo ser destruído de pronto, tal inimigo, pelo menos, deverá ficar em seu canto, respeitando meu espaço, caso contrário será destruído mais tarde ou a qualquer momento: a isso se chama “equilíbrio de poder”. Configura-se assim uma situação de luta permanente, levando a uma política adversarial ou geradora de inimizade. Porque o outro, em vez de ser considerado como um possível parceiro, um aliado ou colaborador, é visto, antes de qualquer coisa, como um potencial inimigo.
Na verdade, o inimigo como construção ideal passa a ser uma peça funcional do nosso esquema de poder, quer dizer, da nossa política (ou antipolítica). Sem o inimigo, desconstitui-se a realpolitik e o tipo de poder que ela visa sustentar, em geral baseado na necessidade de preservação de uma determinada ordem que precisa ser mantida contra o perigo representado pelo inimigo. É para manter essa ordem que se instaura então, internamente, o “estado de guerra” que consiste em uma preparação para a guerra externa (que pode vir ou não, pouco importa) mas sempre em nome da paz (pois que só alguém preparado para a guerra pode manter a paz). E o mais grave é que esse “estado de guerra” interna pode se referir tanto ao âmbito de um país diante de outros países, como ao de uma organização em conflito real ou potencial com outras organizações, como, por exemplo, ao de um governo confrontado por partidos de oposição. O raciocínio, como se vê, é uma perversão, mas o fato de ele ser aceito tão amplamente indica que as tendências de autocratização da democracia ainda estão na ofensiva em relação às tendências de democratização da democracia.
Toda política que admite a guerra como um de seus meios acaba sendo uma política adversarial, baseada na luta constante para destruir o inimigo ou para manter o “equilíbrio de forças” (e deve-se notar que, aqui, a política já começa a se constituir sob o signo da força e não do poder – uma distinção tão cara à Johanna Arendt). Para a realpolitik, a única realidade política – inexorável – é a da interação de forças e, assim, o único critério político deve ser o da correlação de forças. Devo, sempre, fazer tudo o que for possível para alterar a correlação de forças a favor do meu projeto (ou a meu favor, quando se trata de um projeto pessoal, de uma agenda própria – como, aliás, sempre acontece). A política passa a ser uma luta constante para atingir tal objetivo, quando não deveria ser; ou seja, como escreveu Michelangelo Bovero (1988) em Ética e política: entre maquiavelismo e kantismo, a política não deveria ser luta e sim impedir a luta: não combater por si próprio, mas resolver e superar o conflito antagônico e impedir que volte a surgir (5).
Não são apenas as teorias políticas que estão, em sua maioria, contaminadas pela visão perversa do clausewitzianismo invertido (a fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin). A chamada sabedoria política tradicional também se baseia, totalmente, nas regras da luta política como “arte da guerra” ou na prática da ‘política como uma continuação da guerra por outros meios’, pois parece claro que, na maioria dos casos, essa sabedoria não se refere à guerra propriamente dita, aquela em que ocorre a violência física: aqui estamos tratando do ânimo adversarial, que tanto está por trás da guerra quanto da política adversarial ou competitiva.
De Hobbes a Clausewitz
Thomas Hobbes (1651) – que era autocrático, mas não desprovido de inteligência – já havia percebido que “a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida… [já que] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal…” (6).
Conquanto acumule uma grande dose de sabedoria, a tradição política é autocrática, não democrática. Essa sabedoria dos grandes chefes e articuladores políticos, tão admirada pelos políticos tradicionais e pelas almas impressionáveis, tem pouco a ver com a democracia.
Sabedoria não significa democracia nem constitui um requisito para a boa prática democrática. A democracia não é uma tradição: é um acaso; é um erro no script da Matrix, uma falha no software dos sistemas autocráticos.
O conjunto dos ensinamentos oriundos da sabedoria política tradicional induz a um comportamento que gera inimizade e que, consequentemente, exige a prática da política como “arte da guerra”. Tudo está baseado, no fundo, em vencer o adversário, desarmar seu projeto político, ou seja: desorganizar suas forças e, sobretudo, impedir que se reúnam os meios necessários à sua existência como ator político.
Do ponto de vista da democracia – não há como negar – isso tudo é uma perversão. Se existe uma ética da política e essa ética é – ou só pode ser – a democratização, então o recurso da guerra (no sentido da prática da política como “arte da guerra”) deve ser visto como violador dessa ética e, assim, como o comportamento a ser evitado.
Em política, a guerra (quer dizer, a política pervertida como “arte da guerra”) não acontece em função da existência objetiva do inimigo, mas em função de nossas opções de encarar o outro como inimigo e de tentar destruí-lo (mas, na verdade, mantê-lo como impotente para nos destruir). Tais opções só são feitas se estivermos montando ou mantendo um sistema autocrático de poder, que exige o inimigo para a sua ereção ou para o seu funcionamento como tal (quer dizer, como um sistema não-democrático de organização e resolução de conflitos).
Clausewitz (1832) tinha razão, segundo certo ponto de vista, quando dizia que a guerra é uma continuação da política por outros meios: se ficar claro que essa continuação não é mais política e que a política capaz de ter tal continuação é uma política praticada como “arte da guerra”. A chamada “fórmula inversa” (a ‘política como continuação da guerra por outros meios’) é que é perversa, pois a guerra não pode levar à política a menos que queiramos estabelecer a impossibilidade da democracia. Políticas que conduzem à guerra são autocráticas. Coletividades que praticam a democracia não guerreiam entre si (na exata medida em que a praticam).
Há um fundamento hobbesiano na visão da política como continuação da guerra por outros meios. No famoso capítulo XIII do Leviatã, Hobbes (1651) decreta que “os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de intimidar a todos”. É claro que ele não está falando apenas de política, mas também revelando os pressupostos antropológico-sociais que condicionam sua maneira de ver a política. Segundo ele, “na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” – ou seja, essas manifestações de egoísmo não seriam culturais, não emanariam da forma como a sociedade se organiza, mas intrínsecas. Essa inclinação “genética” para o mal explicaria por que, “durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida… [já que] a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo tempo restante é de paz” (7).
Mas, segundo Hobbes, “tudo aquilo que se infere de um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo homem, infere-se também do tempo durante o qual os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida pela sua própria força e pela sua própria invenção. Em uma tal condição [de falta de um poder que domestique ou apazigue os homens]… não há sociedade; e o que é pior do que tudo, um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta” (8).
O mesmo fundamento hobbesiano para a visão da política como continuação da guerra por outros meios – ao assumir que não pode haver sociedade (civil) sem Estado – conspira contra os pressupostos da democracia.
Enfim, a luta política como “arte da guerra”, cria a guerra e obstrui a democracia. Lembrando novamente do que disse certa vez Maturana, a guerra não acontece: nós a fazemos (9). E como a fazemos? Ora, praticando a “arte” de operar as relações sociais com base no critério amigo x inimigo. Toda vez que fazemos isso estamos, caso se possa falar assim, armando ou fazendo guerra. Não necessariamente a guerra tradicional, “quente” e declarada, entre países ou grupos dentro de um país, a guerra com derramamento de sangue, mas também aquelas formas de guerra “fria” e não instalada: a “guerra sem derramamento de sangue” (como Mao definia a política), a “guerra sem mortes” (como George Orwell definia o esporte competitivo), a paz dos impérios (lato sensu, quer dizer, a paz estabelecida pelo domínio) e a paz como preparação para a guerra, o “estado de guerra” (interno) instalado em função da guerra (externa) ou de sua ameaça (ou, ainda, da avaliação, subjetiva, da sua possibilidade); enfim, a prática da política como “arte da guerra” que compreende: os modos de regulação de conflitos em que a produção permanente de vencedores e vencidos gera inimizade política, os padrões de organização compatíveis com esses modos de regulação de conflitos e o clima adversarial que se instala consequentemente nos coletivos humanos que os praticam.
Para captar os conceitos (na verdade os preconceitos) fundantes é ocioso passear pelos demais realistas. Aí acima estão os principais fundamentos do realismo político e por que eles são incompatíveis com os fundamentos da democracia (um modo pazeante – não-guerreante – de regulação de conflitos). Mas é preciso dizer algo a mais para chegar à conclusões aplicáveis aos tempos que correm.
O que aprendemos sobre o realismo político
São três os principais aprendizados decorrentes da análise democrática do realismo político:
1 – O realismo político é uma ideologia.
2 – O realismo político é um culto ao Estado.
3 – O contrário do realismo político é a democracia.
Examinemos cada um desses aprendizados.
O credo realista. O realismo é uma ideologia que se escuda em uma suposta ciência (às vezes chamada de geopolítica) para não se reconhecer como tal (como uma ideologia). Da constatação de que o mundo está assim, ele passa de contrabando a ideia que o mundo é assim. Como disse John Mearsheimer, respondendo a um jornalista do New Yorker que lhe perguntava se não devemos pensar em tentar criar um mundo onde nem os EUA nem a Rússia se comportem de maneira intervencionista: “Não é assim que o mundo funciona” (10).
As crenças em que se baseia a ideologia realista são, basicamente, as seguintes: a) o ser humano é inerentemente (ou por natureza) competitivo; b) as pessoas sempre fazem escolhas tentando maximizar a satisfação de seus próprios interesses ou preferências (ao fim e ao cabo egotistas); c) sem líderes destacados não é possível mobilizar e organizar a ação coletiva; e d) nada pode funcionar sem hierarquia. Infelizmente extravasa o escopo deste capítulo mostrar que essas crenças estão presentes no subsolo das concepções realistas da política. Mas talvez nem seja tão necessário fazer isso (para os propósitos do presente escrito): estes são fundamentos hobbesianos ou decorrentes do hobbesianismo, como o darwinismo social.
O culto ao Estado. O protótipo de qualquer hierarquia (stricto sensu, como poder sacerdotal) é o Estado (e sua forma histórica inaugural, que é o Estado-Templo mesopotâmico).
O realismo é um culto ao Estado. Poder é poder de Estado (degenerado como força). Os Estados são os únicos atores que contam. Para quem adota o realismo político (como uma espécie de religião laica, pois é isso que ele é) não faz nenhum sentido continuar defendendo a democracia. A democracia não se baseia nos interesses dos Estados e sim nos desejos das pessoas. Desejos? Pessoas? Tudo isso é irrelevante para a realpolitik, para a política do poder (como exercício ou ameaça do exercício da força – o que é, a rigor, uma antipolítica).
Não existe a sociedade como forma de agenciamento autônoma. Como já foi dito anteriormente, a sociedade é um dominium do Estado (na acepção feudal mesmo do termo).
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