Quando os homens, criados por Prometeu, obtêm dele o fogo, põem em perigo o domínio dos deuses. Pandora, a mulher, é então criada e recebe, dentre outros presentes, a famosa caixa (na verdade uma ânfora) que não poderia ser aberta, mas que, obviamente, o foi, libertando todos os males que afligem a humanidade e a deixam à mercê dos deuses, permanecendo presa no fundo apenas a esperança. Tentação, queda e outros arquétipos fazem desta narrativa parte central da mitologia grega, ecoando, não por acaso, outras histórias de perdição.
E por que falo disto? Porque me parece claro que outra caixa de Pandora está para ser aberta, no caso com a renegociação das dívidas de estados e municípios, cujas consequências – se não tão severas quanto a queda da humanidade do seu estado de graça – ainda são graves o suficiente para preocupar qualquer analista minimamente atento.
Na segunda metade dos anos 90, como parte do esforço de estabilizar as finanças públicas, o governo federal reestruturou as dívidas de alguns estados e municípios. Estes se tornaram devedores da União pagando taxas bastante inferiores às que tomariam recursos no mercado. Em contrapartida, se viram obrigados a destinar parcela de suas receitas ao pagamento destas dívidas, o que os acabou forçando a gerar superávits primários, colaborando para o esforço fiscal do setor público como um todo.
(Se alguém notou o paralelo com a questão europeia, parabéns! É precisamente este tipo de arranjo que se tem em mente quando se fala de federalização das dívidas nacionais em troca de uma centralização da política fiscal na Zona do Euro).
Isto dito, a camisa de força resultante da reestruturação das dívidas subnacionais sempre foi um fator de desconforto para governadores e prefeitos, que, praticamente em seguida à assinatura dos contratos, buscaram formas de rever os acordos para obter espaço adicional para novos gastos. No entanto, sob pena de perderem as transferências federais, acabavam por se conformar, pelo menos por algum tempo.
Mais recentemente, porém, voltaram à carga, argumentando que a dívida seria “impagável”, já que teria continuado a crescer mesmo depois de todos os pagamentos efetuados até agora. Isto parece fazer sentido, pois a dívida de estados e municípios com a União renegociada sob a Lei 9496/97, que era R$ 154 bilhões no final de 2000, atingiu pouco mais de R$ 468 bilhões em agosto deste ano.
Apenas não se menciona que no mesmo período o PIB aumentou de R$ 1,236 trilhão para R$ 4,638 trilhões, ou seja, a dívida, que equivalia a pouco mais de 11% do PIB em 2000, agora corresponde a 8,6% do PIB. No caso específico dos estados, a dívida, correspondente a 15 meses de arrecadação em 2000, se reduziu para cerca de 10 meses em 2012. Por qualquer ângulo (correto) que se avalie o assunto, as dívidas são mais sustentáveis hoje do que eram no momento de sua reestruturação.
Apesar disto, o governo federal anunciou a intenção de rever os seus valores, aplicando retroativamente regras de correção mais favoráveis a estados e municípios, o que deve implicar forte redução do endividamento destes à custa de perdas para a União.
À parte a injustiça de transferir recursos dos brasileiros que não moram nos estados e municípios beneficiados pela reestruturação para aqueles que lá residem, a redução da dívida deve aliviar consideravelmente os respectivos tesouros, permitindo aquilo que sempre almejaram, isto é, voltar aos bons tempos em que não havia limites à gastança.
O superávit primário de estados e municípios, que já caiu de uma média próxima a 1% do PIB entre 2001 e 2008 para modestos 0,4% do PIB nos 12 meses até agosto deste ano, deve se reduzir ainda mais, acentuando o atual quadro de piora fiscal.
Saem da caixa estados e muncípios; fica presa a esperança de algum dia pormos em ordem as contas públicas.
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