Inquisição tropical: estudo
derruba ideia de que perseguição foi pequena no Brasil
· Tese de doutorado revela que Santo
Ofício criou ‘elite’ de delatores
MARCELLE RIBEIRO
O Estado de s.paulo,18.01.2014
Fotomontagem. Edital
que ficava afixado nas igrejas para incitar denúncias contra os que eram
considerados hereges se mistura às imagens do Brasil da época Editoria de arte
SÃO PAULO - Havia
apenas dois anos que Antonio Gonçalves Pereira, mercador de secos e molhados de
Minas Gerais, tinha começado a usar casaca, peruca e espadim, quando tentou
fazer parte do quadro de “funcionários” da Inquisição no Brasil. Filho de
lavradores do Norte de Portugal, ele conseguiu mudar de vida em terras
brasileiras com o comércio em Minas e tinha, em 1755, “boas casas”. Mas
faltava-lhe destaque na sociedade e prestígio. Em busca de status,
candidatou-se a um cargo civil no Santo Ofício, conquistado depois de três anos
de um processo de apuração sobre suas origens. Com o título de “Familiar do
Santo Ofício”, estava apto a investigar o passado de quem queria um cargo na
Inquisição e a prender os suspeitos de “heresia”, acusados de fazer pacto com o
demônio e ter outra fé que não a cristã.
Pereira foi um dos
1.907 civis - não clérigos - que foram empossados no cargo de “familiar” da
Inquisição entre 1713 e 1785 no Brasil, atraídos principalmente pelo status que
a função proporcionava, segundo o pós-doutorando em História da Universidade de
Campinas (Unicamp) Aldair Carlos Rodrigues.
Em sua premiada
tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP), intitulada “Poder
eclesiástico e Inquisição no século XVIII luso-brasileiro: agentes, carreiras e
mecanismos de promoção social”, Rodrigues revela um lado menos conhecido da
Inquisição: o dos brasileiros que queriam trabalhar para o Santo Ofício. E
mostra que, diferentemente do que muitos livros didáticos ensinam, a Inquisição
esteve, sim, muito presente no Brasil.
- A Inquisição foi
muito importante para a formação da elite colonial no Brasil. Os novos ricos
pressionavam para entrar na Inquisição, pois era uma forma de ascender
socialmente - diz Rodrigues, cuja tese recebeu os prêmios Capes 2013 e Grande
Prêmio Capes Tese Darcy Ribeiro, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação.
Atestado de “sangue puro"
Ter um cargo na
Inquisição significava ter um dos atributos mais desejados na época: um
atestado de que seu sangue era “puro”, ou seja, que a pessoa não pertencia a
raças consideradas “infectas” pelo Santo Ofício, como judeus (inclusive os
recém-convertidos), muçulmanos, negros e indígenas.
A perseguição da
Inquisição na Península Ibérica a pessoas de outras religiões tem relação com a
ocupação histórica da região. Em Portugal, a Inquisição foi estabelecida em
1536 e na Espanha no final do século XV, num contexto em que a Península
Ibérica, durante boa parte da Idade Média, foi ocupada pela população islâmica,
oriunda do Norte da África e do Oriente Médio. Também havia no local muitos
judeus, devido à diáspora judaica.
No final da Idade
Média, os Estados foram criados profundamente identificados com a fé cristã,
expulsando a população islâmica. O judaísmo também passou a ser considerado um
grande “problema” na Península Ibérica. Muitos judeus foram expulsos da Espanha
e de Portugal. Outros foram convertidos à força ao catolicismo: eram os
chamados “cristãos-novos”. Mas mesmo quem se convertia era considerado suspeito
de praticar o judaísmo em segredo.
- A “limpeza de
sangue” começa a ser uma questão de honra nessa sociedade, num contexto de
ortodoxia (da fé católica) e da eliminação do islamismo e do judaísmo. Os
Estatutos de Limpeza de Sangue, em todas as instituições, principalmente as que
tinham maior prestígio, impediam a entrada de descendentes de judeus,
muçulmanos e mulatos - conta Rodrigues.
Antes de permitir
que civis integrassem seus quadros, o Santo Ofício fazia uma grande
investigação sobre o passado do candidato ao cargo de “familiar”, que durava
entre um e seis anos em sua maioria. Eram ouvidas testemunhas e analisados
documentos até de gerações anteriores dos candidatos. Tanto rigor na apuração
fazia com que a sociedade não ousasse questionar a “limpeza de sangue” dos
quadros da Inquisição. Os próprios civis pagavam os processos, que eram caros.
- Através dos
“familiares” é que a Inquisição se enraizou no Brasil. A sociedade da época
aderiu à Inquisição - afirma Rodrigues.
Segundo o
pesquisador, uma vez empossados no cargo de familiar, os “familiares” recebiam
uma medalha para provar sua função, que eles usavam todos os dias (apesar de
isso não ser o recomendado).
- Havia vários
“familiares” corruptos. Alguns prendiam pessoas sem que a Inquisição tivesse
ordenado ou usavam seus cargos para perseguir inimigos e suas famílias - revela
Rodrigues conta
ainda que os “familiares” recebiam um pequeno salário por dia de trabalho, de
valor inexpressivo, mas além do status, tinham vários outros benefícios:
ganhavam direito a foro privilegiado para crimes como agressões físicas e não
pagamento de dívidas, podiam usar armas de defesa e de ataque e roupas especiais
e eram isentos de alguns impostos.
Os “familiares”
ajudavam os funcionários eclesiásticos do Santo Ofício - os chamados
comissários, que chegavam a 198 no século XVIII no Brasil. Além de prenderem
acusados de delitos pela Inquisição, eram os “familiares” que, quando algum
civil se candidatava a um cargo no Santo Ofício, ouviam testemunhas e os
próprios candidatos no processo.
Ação sob o controle de Portugal
A pesquisa de
Rodrigues, que será publicada em forma de livro em fevereiro, mostra que, de
Portugal, a Inquisição tinha total controle sobre os suspeitos de delitos e o
trabalho de seus funcionários no Brasil: a troca de correspondência era
intensa. Da Europa, o Santo Ofício sabia até sobre os comunicados que eram
pendurados nas portas das igrejas brasileiras.
Segundo a
professora Anita Waingort Novinsky, do Departamento de História da USP, nos 300
anos de atuação da Inquisição no Brasil a instituição prendeu mais de mil
pessoas. Como não havia tribunal do Santo Ofício no país, elas eram levadas
para serem julgadas em Portugal.
- A Inquisição
matou e queimou 21 brasileiros. Alguns eram estrangulados e depois queimados.
Nos casos mais severos, eles eram queimados vivos. De oito pessoas que foram
condenadas mas não foram encontradas, o Santo Ofício fez bonecos de pano, que
foram queimados - lembra Anita.
A professora conta
que os condenados que não eram mortos perdiam os seus bens (tomados pela
Inquisição e muitas vezes pelos próprios “familiares”) e tinham a família
amaldiçoada.
- Homens com
dinheiro eram reduzidos à miséria e acabavam mendigando. Miguel Teles da Costa,
que era capitão-mor de Paraty, Itanhaém e Ilha Grande, ou seja, era dono dessas
terras, acabou mendigando - relata a historiadora.
Na opinião de Anita
e Rodrigues, os livros didáticos brasileiros deveriam ser alterados, para
eliminar a falsa ideia de que a Inquisição praticamente não esteve presente no
Brasil.
- Como é que pode
estar correta uma História do Brasil que omite um dos fenômenos mais fortes que
existiu na vida econômica, politica e cultural do pais? - questiona Anita.
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