Uma venerável, mas ainda jovem, senhora: a USP aos 70 anos
Paulo Roberto de
Almeida
Resenha de:
Shozo Motoyama (org.):
USP 70 anos: Imagens
de uma história vivida
(São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, 704
p.; ISBN: 85-314-0953-5; demais autores: Ana Maria Pinho Leite Gordon, Edson
Emanuel Simões, Fernando Camelier, Marilda Nagamini, Pedro de Luna e Renato
Teixeira Vargas)
A USP é, inquestionavelmente, a única universidade brasileira em
condições de figurar em boa posição nas listas das melhores universidades do
mundo. Segundo um tipo de classificação (da universidade Shanghai Jiao Tong, da China), ela ocupa o 71º lugar
no ranking das universidades das Américas, mas duplica esse número quando
inserida em uma lista mundial. Trata-se, sem dúvida, de um ótimo desempenho no
plano regional e internacional, ainda que ela figure entre as universidades
“médias” americanas. A USP é, em todo caso, responsável por pelo menos um
quarto da produção científica brasileira, por mais de um quarto dos doutores
formados anualmente e por quase um quinto do volume de mestrandos titulados.
Pode-se, em qualquer hipótese, considerar estes números como um resultado
mais do que significativo para uma instituição universitária que recém
completou setenta anos, se aproximando, portanto, da idade média do brasileiro.
Sua “esperança de vida” era, porém, incerta, quando foi criada em 1934, na vaga
de um notável esforço dispendido pelas elites paulistas para compensar o fato
da derrota e da intervenção federal como conseqüência da derrota imposta na
revolução constitucionalista de 1932. Naquela momento, a criação da Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras teve de se fazer com base na importação de
cérebros (e braços), à falta de capital humano em volume suficiente para
sustentar as atividades de ensino, de pesquisa e de disseminação do
conhecimento na sociedade, como estipulavam os dispositivos do decreto que a
criou. Como relatam alguns entrevistados, no início ela carecia dos mais
simples equipamentos, devendo os alunos e professores trazer de casa, por
exemplo, vidros e tubos para suas experiências. Com o surgimento das
instituições de fomento e pesquisa, nos níveis federal e estadual, ela pôde se
firmar e crescer ao que é, hoje, uma instituição exemplar.
Este livro, coordenado por Shozo Motoyama, incansável pesquisador e
divulgador da história das ciências e da tecnologia no Brasil, publicado no momento
em que essa venerável senhora completa 70 anos, apresenta-se, basicamente, como
uma coletânea de entrevistas e depoimentos, colhidos entre 2004 e 2005.
Trata-se da segunda e mais importante parte do volume: ela ocupa cerca de 500
páginas de entrevistas, em meio a dezenas de fotos, constituindo um pesado
álbum, cuja “massa atômica” é provavelmente proporcional à contribuição da USP
à formação do espírito científico no Brasil. São entrevistados oito ex-reitores
(de Miguel Reale, no cargo duas vezes, em 1949-50 e 1969-73, a Adolpho José
Melphi, que terminou sua gestão em novembro de 2005), vários vice-reitores e os
pró-reitores de graduação, de pós-graduação, de pesquisa e de cultura e
extensão nas últimas décadas, num total de 32 personalidades uspianas. O
critério seletivo foi o desempenho de cargos depois da reforma dos Estatutos da
USP, em 1989, estendendo-se, porém, as entrevistas com os reitores vivos antes
desse período.
Das entrevistas e posterior organização do material para o livro
participaram seis outros pesquisadores, a maior parte colaboradores veteranos
de outros empreendimentos do Centro Interunidade de História da Ciência da USP.
Esta parte interessará certamente aos pesquisadores e historiadores que
retirarão desses depoimentos um precioso material para reconstituir a
trajetória da mais bem sucedida instituição universitária brasileira. Mas, as
entrevistas também podem ser lidas como uma história coletiva, com saborosas
passagens sobre a vida pessoal de cada um dos professores e pesquisadores,
grande parte deles filhos de imigrantes pobres, que tiveram sucesso graças a um
extraordinário esforço pessoal e familiar, às oportunidades abertas pelo estado
empreendedor que é São Paulo e, certamente, alguma sorte também. Os itinerários
pessoais, relatados de viva voz (na maior parte dos casos pela primeira vez),
são fascinantes e mereceriam, provavelmente, aprofundamentos em livros de
memórias de cada um dos protagonistas. A leitura desses relatos confirma, se
ainda preciso fosse, que a maior riqueza de uma nação está em seu próprio povo,
que também faz a força de uma instituição de pesquisa e ensino de primeira
qualidade como a USP.
A primeira parte trata da história da USP e esta vai muito além dos
setenta anos de sua existência oficial, alcançando perto de 180 anos da vida
nacional, desde a primeira faculdade de direito criada em São Paulo em 1827. A
introdução, assinada por Shozo Motoyama, começa por um sobrevôo do papel da
universidade na sociedade moderna, refaz sua difícil trajetória no Brasil,
detendo-se, em seguida, sobre a inserção da USP na história econômica,
científica e política nacional. A USP foi constituída a partir de escolas e
faculdades isoladas, juntamente com a criação da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, que deveria fazer a junção das entidades existentes: a
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a Escola Politécnica (do final
do século XIX), a Faculdade de Medicina, a Faculdade de Farmácia e Odontologia
e a Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, de Piracicaba. Foram
contratados, ainda em 1934, 13 professores estrangeiros e mais quatro
brasileiros para a nova FFCL, cuja luta se deu, durante anos, pela sua
integração com os institutos isolados, cuja perspectiva era bem mais
profissionalizante do que propriamente acadêmica. Segundo um desses mestres
estrangeiros, Lévy-Strauss, o papel mais importante deles não foi propriamente
o ensino, mas a disciplina: os brasileiros já eram muito bons, mas
indisciplinados cientificamente.
Criada em 1934, apenas dez anos depois ela se torna, de fato, um ente
autônomo, sob a forma de autarquia, passando a receber do Estado uma dotação
orçamentária global, que ela administrava livremente, à exceção dos vencimentos
dos professores. Graças ao papel de Miguel Reale no Conselho Administrativo do
Estado – órgão de intervenção do Estado Novo –, o Reitor da USP passou a ter status de secretário de Estado, passando
a despachar diretamente com o chefe do executivo paulista. Como demonstra
Motoyama, a USP foi internacionalizada desde o início, não apenas pela
contribuição de professores e pesquisadores estrangeiros, mas também pelo envio
precoce de seus melhores alunos para continuarem pesquisas no exterior, numa
época em que eram inexistentes as instituições de fomento. O regime de tempo
integral, criado em 1946 sob iniciativa de José Reis, foi essencial para a
integração do ensino e da pesquisa.
A USP acompanhou todas as vissicitudes da história política nacional
desde os anos de crescimento otimista, na era Vargas e Kubitschek, passando
pelo cerceamento do pensamento contestador, nos anos da ditadura, até o
renascimento democrático, em 1985, que trouxe outros problemas de ordem
econômica e administrativa. Alguns dos cientistas expulsos durante a fase
anterior voltaram e propuseram a criação do Instituto de Estudos Avançados,
durante a reitoria de José Goldemberg. Paralelamente surgiu o Centro
Interunidade de História da Ciência, que veio a ter importante papel na memória
da produção científica e tecnológica brasileira, cujo trabalho está refletido
neste mesmo volume de história. A nova constituição, em 1988, determinou a
revisão das constituições estaduais e, no mesmo movimento, a elaboração de
novos estatutos para a USP, já que o existentes, de 1969, refletiam o
autoritarismo vigente na época. Data dessa época, a criação dos cargos de
pró-reitores, que se por um lado burocratizaram os procedimentos, por outro
descentralizaram as atividades, o que parece ter sido positivo. Mais
recentemente, a USP caminhou no sentido de sua maior integração com a
comunidade, tendo inaugurado, em 2005, um novo campus na cidade de São Paulo, a
USP-Leste, com expansão das vagas e abertura de novos cursos, inovadores.
O núcleo da primeira parte é constituído por três capítulos, nos quais os
autores tratam, sucessivamente, do “longo antecedente” (ou seja, o percurso de
1827 a 1934), da “construção da universidade” (dos anos trinta à repressão sob
a ditadura, em 1969) e da “universidade resistente”, isto é, os vinte anos até
1989, quando são aprovados os novos estatutos. A história posterior está
relativamente fragmentada e dispersa nos depoimentos recolhidos e deve
constituir a base indispensável de uma história institucional a partir de 1989,
talvez sob responsabilidade dos mesmos autores que tão bem conduziram a coleta
do material primário. Esses três longos capítulos, apoiados em fontes
documentais e em sólida bibliografia secundária, constituem um belo racconto storico sobre a emergência e
afirmação da USP, no contexto mais amplo da história brasileira e da evolução
científica e tecnológica mundial.
História institucional não quer necessariamente dizer desprovida de
avaliações: ao lado do relato das ações e iniciativas dos reitores, a história
politica e econômica do país é seguida com bastante detalhe. Alguns episódios
são particularmente dolorosos na vida da USP, como as cassações de professores
ocorridas depois do AI-5, de dezembro de 1968: ao todo, no decorrer de 1969,
foram afastados 70 profesores de várias unidades da USP. A trajetória de
resistência e de acomodação ao regime autoritário é relatada com minúcias,
paralelamente ao relato da gestão de cada um dos reitores, até a administração
de José Goldemberg (1986-1990), que preside a uma fase de intensas reformas,
com mudanças substanciais no campo institucional, até hoje subsistentes. Sua
maior vitória, com as demais universidades paulistas, foi a conquista da
autonomia orçamentária, com a destinação vinculada de parte da arrecadação do
imposto indireto estadual, o ICMS. Outra iniciativa sua, altamente controversa
à época, foi a introdução da avaliação dos professores, objeto de grandes
debates, hoje corriqueira e responsável, na verdade, pelo enorme salto
alcançado na produção científica e tecnológica da USP.
No conjunto, os ensaios históricos dos sete autores, cobrindo
praticamente toda a história educacional brasileira até 1989, bem como os
depoimentos tomados das três dezenas de personalidades, sob a coordenação de
Shozo Motoyama, e que alcançam os nossos dias, constituem o mais amplo relato
que se conhece, no cenário universitário brasileiro, sobre uma instituição
exemplar de ensino e pesquisa, verdadeiramente única em sua categoria pela
qualidade da produção científica, dentre as melhores do mundo. O livro combina
história oral com a reconstituição cuidadosa do processo histórico que explica
as razões desse sucesso acadêmico e científico. Ele deveria servir de modelo a
diversas outras histórias institucionais das grandes instituições de ensino no
Brasil.
Paulo Roberto de
Almeida
Brasília, 5 novembro
2006
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