segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

A USP aos setenta anos: uma velha senhora? - Shozo Motoyama (review-article)

Uma venerável, mas ainda jovem, senhora: a USP aos 70 anos

Paulo Roberto de Almeida

Resenha de:
Shozo Motoyama (org.):
USP 70 anos: Imagens de uma história vivida
(São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006, 704 p.; ISBN: 85-314-0953-5; demais autores: Ana Maria Pinho Leite Gordon, Edson Emanuel Simões, Fernando Camelier, Marilda Nagamini, Pedro de Luna e Renato Teixeira Vargas)

A USP é, inquestionavelmente, a única universidade brasileira em condições de figurar em boa posição nas listas das melhores universidades do mundo. Segundo um tipo de classificação (da universidade Shanghai Jiao Tong, da China), ela ocupa o 71º lugar no ranking das universidades das Américas, mas duplica esse número quando inserida em uma lista mundial. Trata-se, sem dúvida, de um ótimo desempenho no plano regional e internacional, ainda que ela figure entre as universidades “médias” americanas. A USP é, em todo caso, responsável por pelo menos um quarto da produção científica brasileira, por mais de um quarto dos doutores formados anualmente e por quase um quinto do volume de mestrandos titulados.
Pode-se, em qualquer hipótese, considerar estes números como um resultado mais do que significativo para uma instituição universitária que recém completou setenta anos, se aproximando, portanto, da idade média do brasileiro. Sua “esperança de vida” era, porém, incerta, quando foi criada em 1934, na vaga de um notável esforço dispendido pelas elites paulistas para compensar o fato da derrota e da intervenção federal como conseqüência da derrota imposta na revolução constitucionalista de 1932. Naquela momento, a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras teve de se fazer com base na importação de cérebros (e braços), à falta de capital humano em volume suficiente para sustentar as atividades de ensino, de pesquisa e de disseminação do conhecimento na sociedade, como estipulavam os dispositivos do decreto que a criou. Como relatam alguns entrevistados, no início ela carecia dos mais simples equipamentos, devendo os alunos e professores trazer de casa, por exemplo, vidros e tubos para suas experiências. Com o surgimento das instituições de fomento e pesquisa, nos níveis federal e estadual, ela pôde se firmar e crescer ao que é, hoje, uma instituição exemplar.
Este livro, coordenado por Shozo Motoyama, incansável pesquisador e divulgador da história das ciências e da tecnologia no Brasil, publicado no momento em que essa venerável senhora completa 70 anos, apresenta-se, basicamente, como uma coletânea de entrevistas e depoimentos, colhidos entre 2004 e 2005. Trata-se da segunda e mais importante parte do volume: ela ocupa cerca de 500 páginas de entrevistas, em meio a dezenas de fotos, constituindo um pesado álbum, cuja “massa atômica” é provavelmente proporcional à contribuição da USP à formação do espírito científico no Brasil. São entrevistados oito ex-reitores (de Miguel Reale, no cargo duas vezes, em 1949-50 e 1969-73, a Adolpho José Melphi, que terminou sua gestão em novembro de 2005), vários vice-reitores e os pró-reitores de graduação, de pós-graduação, de pesquisa e de cultura e extensão nas últimas décadas, num total de 32 personalidades uspianas. O critério seletivo foi o desempenho de cargos depois da reforma dos Estatutos da USP, em 1989, estendendo-se, porém, as entrevistas com os reitores vivos antes desse período.
Das entrevistas e posterior organização do material para o livro participaram seis outros pesquisadores, a maior parte colaboradores veteranos de outros empreendimentos do Centro Interunidade de História da Ciência da USP. Esta parte interessará certamente aos pesquisadores e historiadores que retirarão desses depoimentos um precioso material para reconstituir a trajetória da mais bem sucedida instituição universitária brasileira. Mas, as entrevistas também podem ser lidas como uma história coletiva, com saborosas passagens sobre a vida pessoal de cada um dos professores e pesquisadores, grande parte deles filhos de imigrantes pobres, que tiveram sucesso graças a um extraordinário esforço pessoal e familiar, às oportunidades abertas pelo estado empreendedor que é São Paulo e, certamente, alguma sorte também. Os itinerários pessoais, relatados de viva voz (na maior parte dos casos pela primeira vez), são fascinantes e mereceriam, provavelmente, aprofundamentos em livros de memórias de cada um dos protagonistas. A leitura desses relatos confirma, se ainda preciso fosse, que a maior riqueza de uma nação está em seu próprio povo, que também faz a força de uma instituição de pesquisa e ensino de primeira qualidade como a USP.
A primeira parte trata da história da USP e esta vai muito além dos setenta anos de sua existência oficial, alcançando perto de 180 anos da vida nacional, desde a primeira faculdade de direito criada em São Paulo em 1827. A introdução, assinada por Shozo Motoyama, começa por um sobrevôo do papel da universidade na sociedade moderna, refaz sua difícil trajetória no Brasil, detendo-se, em seguida, sobre a inserção da USP na história econômica, científica e política nacional. A USP foi constituída a partir de escolas e faculdades isoladas, juntamente com a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, que deveria fazer a junção das entidades existentes: a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a Escola Politécnica (do final do século XIX), a Faculdade de Medicina, a Faculdade de Farmácia e Odontologia e a Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz”, de Piracicaba. Foram contratados, ainda em 1934, 13 professores estrangeiros e mais quatro brasileiros para a nova FFCL, cuja luta se deu, durante anos, pela sua integração com os institutos isolados, cuja perspectiva era bem mais profissionalizante do que propriamente acadêmica. Segundo um desses mestres estrangeiros, Lévy-Strauss, o papel mais importante deles não foi propriamente o ensino, mas a disciplina: os brasileiros já eram muito bons, mas indisciplinados cientificamente.
Criada em 1934, apenas dez anos depois ela se torna, de fato, um ente autônomo, sob a forma de autarquia, passando a receber do Estado uma dotação orçamentária global, que ela administrava livremente, à exceção dos vencimentos dos professores. Graças ao papel de Miguel Reale no Conselho Administrativo do Estado – órgão de intervenção do Estado Novo –, o Reitor da USP passou a ter status de secretário de Estado, passando a despachar diretamente com o chefe do executivo paulista. Como demonstra Motoyama, a USP foi internacionalizada desde o início, não apenas pela contribuição de professores e pesquisadores estrangeiros, mas também pelo envio precoce de seus melhores alunos para continuarem pesquisas no exterior, numa época em que eram inexistentes as instituições de fomento. O regime de tempo integral, criado em 1946 sob iniciativa de José Reis, foi essencial para a integração do ensino e da pesquisa.
A USP acompanhou todas as vissicitudes da história política nacional desde os anos de crescimento otimista, na era Vargas e Kubitschek, passando pelo cerceamento do pensamento contestador, nos anos da ditadura, até o renascimento democrático, em 1985, que trouxe outros problemas de ordem econômica e administrativa. Alguns dos cientistas expulsos durante a fase anterior voltaram e propuseram a criação do Instituto de Estudos Avançados, durante a reitoria de José Goldemberg. Paralelamente surgiu o Centro Interunidade de História da Ciência, que veio a ter importante papel na memória da produção científica e tecnológica brasileira, cujo trabalho está refletido neste mesmo volume de história. A nova constituição, em 1988, determinou a revisão das constituições estaduais e, no mesmo movimento, a elaboração de novos estatutos para a USP, já que o existentes, de 1969, refletiam o autoritarismo vigente na época. Data dessa época, a criação dos cargos de pró-reitores, que se por um lado burocratizaram os procedimentos, por outro descentralizaram as atividades, o que parece ter sido positivo. Mais recentemente, a USP caminhou no sentido de sua maior integração com a comunidade, tendo inaugurado, em 2005, um novo campus na cidade de São Paulo, a USP-Leste, com expansão das vagas e abertura de novos cursos, inovadores.
O núcleo da primeira parte é constituído por três capítulos, nos quais os autores tratam, sucessivamente, do “longo antecedente” (ou seja, o percurso de 1827 a 1934), da “construção da universidade” (dos anos trinta à repressão sob a ditadura, em 1969) e da “universidade resistente”, isto é, os vinte anos até 1989, quando são aprovados os novos estatutos. A história posterior está relativamente fragmentada e dispersa nos depoimentos recolhidos e deve constituir a base indispensável de uma história institucional a partir de 1989, talvez sob responsabilidade dos mesmos autores que tão bem conduziram a coleta do material primário. Esses três longos capítulos, apoiados em fontes documentais e em sólida bibliografia secundária, constituem um belo racconto storico sobre a emergência e afirmação da USP, no contexto mais amplo da história brasileira e da evolução científica e tecnológica mundial.
História institucional não quer necessariamente dizer desprovida de avaliações: ao lado do relato das ações e iniciativas dos reitores, a história politica e econômica do país é seguida com bastante detalhe. Alguns episódios são particularmente dolorosos na vida da USP, como as cassações de professores ocorridas depois do AI-5, de dezembro de 1968: ao todo, no decorrer de 1969, foram afastados 70 profesores de várias unidades da USP. A trajetória de resistência e de acomodação ao regime autoritário é relatada com minúcias, paralelamente ao relato da gestão de cada um dos reitores, até a administração de José Goldemberg (1986-1990), que preside a uma fase de intensas reformas, com mudanças substanciais no campo institucional, até hoje subsistentes. Sua maior vitória, com as demais universidades paulistas, foi a conquista da autonomia orçamentária, com a destinação vinculada de parte da arrecadação do imposto indireto estadual, o ICMS. Outra iniciativa sua, altamente controversa à época, foi a introdução da avaliação dos professores, objeto de grandes debates, hoje corriqueira e responsável, na verdade, pelo enorme salto alcançado na produção científica e tecnológica da USP.
No conjunto, os ensaios históricos dos sete autores, cobrindo praticamente toda a história educacional brasileira até 1989, bem como os depoimentos tomados das três dezenas de personalidades, sob a coordenação de Shozo Motoyama, e que alcançam os nossos dias, constituem o mais amplo relato que se conhece, no cenário universitário brasileiro, sobre uma instituição exemplar de ensino e pesquisa, verdadeiramente única em sua categoria pela qualidade da produção científica, dentre as melhores do mundo. O livro combina história oral com a reconstituição cuidadosa do processo histórico que explica as razões desse sucesso acadêmico e científico. Ele deveria servir de modelo a diversas outras histórias institucionais das grandes instituições de ensino no Brasil.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5 novembro 2006

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