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sábado, 8 de março de 2014

Diplomacia ideologica - Ruy Fabiano (O Globo)

Diplomacia ideológica
Ruy Fabiano
O Globo, 8/03/2014

A política externa brasileira, historicamente, foi sempre de Estado, não de governo, como é de hábito nos países que não baniram inteiramente o bom senso.
Sendo as relações com a comunidade internacional contínuas, reguladas por tratados de longa duração, não podem estar sujeitas à efemeridade dos governos. Nem mesmo a passagem da monarquia para a república, no final do século XIX, mudou isso.
Foram dois monarquistas confessos – o Barão do Rio Branco e Joaquim Nabuco – dois dos principais atores da cena diplomática brasileira no início do período republicano.
Mesmo as discussões doutrinárias no âmbito da diplomacia brasileira, eram discussões de Estado, sem vínculo partidário. Ao tempo do regime militar, por exemplo, havia a corrente terceiro-mundista, que postulava relações prioritárias com a África e América Latina, em oposição à corrente conservadora, que defendia que se mantivesse o status quo de alinhamento ao Primeiro Mundo, sobretudo aos Estados Unidos.
No período da Guerra Fria, prevaleceu essa corrente, sem embargo de inflexões eventuais ao terceiro-mundismo. Havia uma busca de equilíbrio, que os militares não alteraram (vide período Geisel, em que predominou a política de pragmatismo responsável, segundo a qual um país não tem amigos, mas interesses).
Com a redemocratização, o terceiro-mundismo passou a prevalecer, acentuando-se após a queda do Muro de Berlim. A política externa, no entanto, continuou sendo de Estado, discutida e aplicada sem vínculos ou sujeições aos partidos políticos. Não que eles fossem indiferentes à discussão, mas nela não tinham poder deliberativo.
A chegada do PT ao poder mudou tudo isso. A política externa tornou-se questão partidária. O Foro de São Paulo, entidade criada por Lula e Fidel Castro em 1990, com o objetivo de agregar as forças socialistas do continente, de modo a eleger governos de esquerda, tornou-se instância formuladora da política externa latino-americana.
Foi ali que despontou a figura de Hugo Chávez. Lula declarou mais de uma vez que “fomos nós, do Foro, que inventamos o Chávez”. E não só o Chávez, mas diversos outros governantes, como Evo Morales, da Bolívia, dando-lhes apoio logístico e financeiro nas campanhas eleitorais, intervindo em questões internas e estabelecendo políticas de aplicação geral, inclusive para o Brasil.
Não é de estranhar, nesses termos, que o Brasil tenha absorvido a tomada, manu militari, de uma refinaria da Petrobras na Bolívia; ou tenha intervindo na situação interna de Honduras, oferecendo sua embaixada para que o presidente constitucionalmente deposto, Manoel Zelaya, conspirasse por sua volta; ou ainda que se tenha empenhado pela inclusão da Venezuela no Mercosul, mesmo o país não atendendo a cláusula estatutária de ser uma democracia.
Exemplos não faltam e o mais expressivo tem sido a simpatia do país pelas Farc, organização responsável, entre outros crimes, por sequestros e pelo abastecimento de cocaína ao Brasil.
Marco Aurélio Garcia – espécie de chanceler prêt-a-porter, invenção da diplomacia ideológica em curso – recusou-se, na contramão do consenso internacional, a reconhecê-las como terroristas, mesmo tendo nos sequestros e no tráfico sua fonte de rendimentos. Convém lembrar que as Farc mantêm campos de concentração na Amazônia, com cerca de oito mil prisioneiros.
Mesmo assim, Lula sugeriu que se transformassem num partido político e disputassem eleições, tese que, por esse raciocínio, poderia ser encampada pelo Comando Vermelho e pelo PCC.
Com tal diplomacia, o Brasil desgastou-se perante parceiros tradicionais e envolveu-se em trapalhadas internacionais, como as caricatas intervenções de Lula no Oriente Médio, cujos dilemas pretendeu resolver com sua cultura sindicalista. Custou a entender que a Palestina não é São Bernardo.
Eis, porém, que a diplomacia mundial vê-se mais uma vez numa encruzilhada, em face da declaração de guerra da Rússia à Ucrânia. Que tem o Brasil com isso? Aparentemente, nada. Mas, considerando-se que o projeto imperial russo não se esgota na reconquista da Crimeia ou mesmo de toda a Ucrânia, tem algo a ver.
Informa-se que a Rússia está negociando a assinatura de acordos para a instalação de bases militares em Cuba, Venezuela, Nicarágua, entre outros países. O Brasil já deu sua contribuição, financiando o porto de Cuba e agora o da Venezuela.
Quem se der ao trabalho de buscar na internet, há um depoimento longo de Alexandre Duguin, conselheiro de Putin, falando da importância da América Latina – com destaque para o Brasil – no projeto geopolítico eurasiano, concebido para restabelecer a presença imperial russo-chinesa no planeta.
Por aí se vê que a diplomacia ideológica não se restringe apenas à América Latina. É parte de algo maior e mais perigoso: a ruptura com aliados tradicionais e o mergulho numa aventura ideológica, de consequências imprevisíveis. Para o Brasil e para o mundo.

Ruy Fabiano é jornalista.

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