Moderados e apreensivos: o que pensam os generais que trabalham bem perto do presidente Jair Bolsonaro
Na cabeça dos generais que ajudam a sustentar o governo Bolsonaro — incluindo aqueles, já na reserva, que ocupam cargos de primeiro e segundo escalões — o temor de uma radicalização caminha ao lado da preocupação de que a responsabilidade por tropeços do presidente recaia nos ombros e nas insígnias das Forças Armadas.
Arriscar o processo que fez as Forças Armadas saírem de um período repressivo, de grande desgaste na opinião pública, para a virada das últimas três décadas, quando retomou respeito e reconhecimento por parcela expressiva da população, é uma angústia crucial.
Integrados ao governo em grau sem precedentes desde a redemocratização, militares de alta patente ouvidos pelo GLOBO procuram apresentar uma mentalidade distante dos tempos da ditadura militar, época em que muitos se tornaram oficiais do Exército, Marinha ou Aeronáutica. A preocupação em mapear “inimigos” internos ou externos, uma constante no início de suas carreiras, hoje é adormecida.
Generais do alto comando contam que, em sua formação, foram “muito impactados por valores democráticos”, uma vez que passaram pelo processo de distensão e abertura na fase final da ditadura militar.
Os oficiais do círculo próximo a Bolsonaro abraçam uma tentativa de livrar o Exército de “estereótipos negativos”, em suas palavras. Um general do Alto Comando que conversou com O GLOBO em condição de anonimato, por exemplo, foi taxativo: avaliou que a ditadura cometeu “barbaridades” na repressão aos opositores:
— Pagamos um preço muito alto com a ditadura. É uma palhaçada falar em intervenção militar, como ouvimos em alguns protestos. Chega a ser ofensivo.
As trocas de cargos no Ministério da Educação (MEC), que levaram à exoneração de diversos militares no seio do governo, não figuram sozinhos na lista de preocupações dos generais. Estão ombro a ombro com temores mais amplos, como a política armamentista do presidente — cabe ao Exército fiscalizar a venda de armas —, os riscos envolvendo a Amazônia, considerada uma reserva natural estratégica, e até a determinação de que os quartéis celebrassem os 55 anos do golpe militar.
Sobre as armas, a preocupação central está na flexibilização do porte, desejada — e decretada — pelo presidente.
— Para porte, aí sim, é preciso ser perito na coisa. Há preocupação sobre uma proliferação negativa de armas – diz um outro general ouvido pela reportagem, que também pediu anonimato.
Como ficariam as Forças Armadas se recebessem a pecha de instituição que autorizou e controlou a disseminação de armas de fogo se as consequências não saírem como o esperado nos planos do presidente? São questionamentos como esse que permeiam os mais graduados.
— A gente torce para dar certo — afirmou um general ao GLOBO. — Senão vamos ouvir: “Os militares não disseram sempre que são os salvadores da pátria?”
Dois assuntos neste primeiro semestre de governo incomodaram em cheio os militares de alta patente: o episódio do “golden shower”, quando Bolsonaro compartilhou em sua conta no Twitter uma prática sexual a céu aberto, gravada no carnaval de rua em São Paulo — algo impensável para um militar graduado —, e a dubiedade em relação ao ideólogo de direita Olavo de Carvalho, que atacou, com xingamentos, os militares do governo. O compromisso com a “arrumação da casa” de uma instituição que representa o Estado e voltou ao governo após seu período mais desgastante é prejudicado.
Em geral, um militar leva de 30 a 40 anos para ascender até o último grau da hierarquia. A maioria dos principais generais do atual governo e dos que compõem o Alto Comando do Exército se formou nas turmas do fim da década de 1970 e do início da década de 1980 da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), em Resende, no Sul Fluminense.
O próprio Bolsonaro, egresso da turma de 1977, conviveu com certo grau de intensidade com vários desses generais. O comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, é da mesma turma. O porta-voz Otávio Rêgo Barros é de 1981. Enquanto Bolsonaro deixou os quadros da ativa ainda na década de 1980, recém-alçado a capitão, alguns de seus contemporâneos seguiram em formação.
— Suas carreiras foram feitas em um ambiente crescente de profissionalização e de processo de “arrumação da casa”, quando houve de fato um esforço para reverter a politização anterior, do regime militar — afirma o antropólogo Piero Leirner, da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar).
Aprendizado com missões
Se a década de 1940 ficou marcada, para o Exército Brasileiro, pelo envio de tropas para a Segunda Guerra Mundial, a partir dos anos 1990 se tornou recorrente a participação brasileira em missões de paz da ONU. O Brasil tinha 1,3 mil oficiais no exterior há quatro anos, com atuação principalmente em países africanos e no Haiti, cuja missão foi comandada por três dos atuais ministros de Bolsonaro: Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), Carlos Alberto Santos Cruz (Secretaria de Governo) e Floriano Peixoto (Secretaria-Geral).— A maioria dos generais da atualidade já colocou a boina azul (usada em missões da ONU). É diferente do oficial que era general no regime militar. Era uma época de Guerra Fria, dos atos institucionais. Nem se pensava em mulher no Exército, por exemplo — analisa o general Eduardo José Barbosa, atual presidente do Clube Militar.
A experiência das missões de estabilização de países, que são diferentes de conflitos abertos que ocorrem guerras, é um aspecto que contribui para o perfil moderado dos oficiais que participam diretamente do governo.
Generais da atualidade têm formação 'híbrida' entre ditadura e democracia, diz cientista político
— O ministro Santos Cruz (Secretaria de Governo) é um exemplo raríssimo de oficial que comandou duas missões de paz, no Haiti e no Congo. Isso significa uma abertura de horizontes, de visão de mundo. O (vice-presidente, Hamilton) Mourão fala inglês e espanhol fluentemente, consegue se sentar com representantes estrangeiros. Isso é incomum no Brasil. Na nossa elite política, quantos têm uma formação tão cosmopolita quanto essa? — questiona Santoro.
Bagagem internacional
Atualmente, a Aman estimula o intercâmbio com militares estrangeiros e conta com 45 cadetes de 16 nações consideradas amigas, como Vietnã, Guatemala e Senegal.O caminho para se tornar um general quatro estrelas, mais alta patente militar, passa obrigatoriamente por instituições como a Aman e a Eceme, que aumentaram a abertura a professores civis nos últimos anos. O currículo atual da Aman, por exemplo, tem cadeiras como Filosofia, Direito Internacional, Cálculo e Estatística no início da formação. Em média, segundo Dutra, cada turma com cerca de 400 cadetes deve produzir quatro desses generais no futuro.
Santoro, professor da Uerj, foi um dos responsáveis pela criação da cadeira de Relações Internacionais na Aman, no fim da última década. Professores deste departamento na Universidade Federal Fluminense (UFF) também dão aulas nas Agulhas Negras.
Ao dissecar as etapas de formação militar, o comandante da Aman compara sua função à de um reitor universitário com foco na graduação. Cita cursos como o da Eceme, último passo antes do generalato, como níveis de uma carreira acadêmica. E afirma que a forma de educar os atuais cadetes mistura a tradição militar com as particularidades da geração Y, os millennials, jovens de até 25 anos mergulhados na internet.
Permissões na academia
Tatuagens tribais são cada vez mais comuns nas academias militares, assim como alguns brincos, maquiagem e esmalte de unhas para as mulheres, que tiveram em 2018 sua primeira turma na academia. A febre dos smartphones também é visível entre os cadetes, até nos momentos que antecedem a marcha diária no pátio.— As gerações atuais pensam no imediato, e nós precisamos criar uma identidade de longo prazo com a instituição militar. Esse é o desafio. Se nós não evoluirmos de acordo com a maneira que a sociedade evolui, vamos perder o bonde da história — afirma Dutra.
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