domingo, 5 de janeiro de 2020

Em defesa do Itamaraty: um novo empreendimento intelectual - Paulo Roberto de Almeida

Desafios da diplomacia no Brasil, do lulopetismo ao bolsonarismo: em defesa do Itamaraty

Paulo Roberto de Almeida
  
Acompanho a política internacional e as relações exteriores do Brasil desde quando fui precocemente apresentado aos grandes problemas mundiais por ocasião de uma palestra do grande professor e jornalista Oliveiros da Silva Ferreira aos jovens ginasianos que éramos, no Colégio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha, em São Paulo, algum tempo depois da crise dos mísseis soviéticos em Cuba e o dramático prenúncio de uma possível e devastadora guerra nuclear entre as duas grandes potências. Ainda adolescente, portanto, passei a ler as edições dominicais do jornal O Estado de S. Paulo, onde aquele especialista era um dos mais reputados editorialistas, sobretudo porque aos domingos o jornal trazia um suplemento de artigos e resenhas de livros traduzidos dos mais importantes órgãos da imprensa internacional (dos Estados Unidos e da Europa, predominantemente). Foi assim que travei conhecimento com brilhantes ensaios de Raymond Aron, Stanley Hoffman, Irving Kristol, Karl Deutsch e outros eminentes scholars das grandes universidades de países avançados. 
O processo político brasileiro – início do regime militar e a aguda polarização entre “direitistas”, ou aliados do governo, e “esquerdistas”, logo catalogados de “subversivos” – também contribuiu para uma precoce politização, e uma inclusão quase imediata no campo dos esquerdistas, o que acentuou a busca pelo conhecimento das experiências alternativas ao capitalismo periférico, naquele momento não tanto no modelo soviético, mas mais próximo da experiência cubana, que parecia refletir a situação continental de “países dominados pelo imperialismo americano”, e necessitados de adotar a via nacionalista e, mais precisamente, a construção do socialismo, se possível num modelo autogestionário, como parecia prometer o caminho adotado pela Iugoslávia, aparentemente um socialismo não totalitário e até aliado de outros países em desenvolvimento, como as “iniciativas não-alinhadas” sugeriam. 
Uma longa estada na Europa, a partir dos anos de chumbo da ditadura militar, no início dos anos 1970, sedimentaram um grande conhecimento, mediante o estudo aplicado de todas essas experiências nacionais, com viagens a diversos países do socialismo real (em alguns casos surreal) e do capitalismo ideal, o que arrefeceu a proposta de um planejamento estatal centralizado em favor de um modelo mais identificado com o socialismo democrático ao estilo da II Internacional. Poucos meses após a volta ao Brasil, no primeiro trimestre de 1977, o ingresso na carreira diplomática abriu e consolidou de vez o estudo especializado nas relações internacionais, na política externa e na diplomacia brasileira, com diversos trabalhos que começaram a ser publicados em revistas da área: Política e Estratégia, na qual colaborou Oliveiros da Silva Ferreira (hoje desaparecida), a Revista Brasileira de Política Internacional (que tive o privilégio de salvar de um desaparecimento quase certo, e de transferi-la para a capital federal, onde existe até hoje) e, mais adiante, a Contexto Internacional e a Política Externa (hoje igualmente desaparecida, infelizmente). 
Fui acumulando, ao longo dos anos, uma visão própria, tanto da política internacional, quanto da economia mundial – fruto de um mestrado em economia do desenvolvimento –, assim como das relações internacionais do Brasil e de sua política externa, tanto é que essa minha visão nunca se subordinou, e jamais coincidiu, exatamente, com a política externa oficial do Itamaraty, ou com as principais orientações acadêmicas na área internacionalista. Minhas concepções sobre essas diferentes temáticas, campos de análise e de propostas de políticas sempre guardaram uma saudável distância da política externa governamental ou de certas concepções acadêmicas sobre os mesmos temas e políticas, por força de um ecletismo de leituras e de reflexões próprias sobre as realidades do mundo e do Brasil. 
Daí a minha permanente opção de preservação de uma atitude que eu, desde a juventude, acostumei-me a chamar de ceticismo sadio, ou seja, uma indagação crítica sobre qualquer análise ou proposta de políticas – não só a externa, mas também as econômicas, por exemplo – apresentadas como as melhores do ponto de vista do interesse nacional, ou alegadamente expressando a melhor racionalidade possível. Sempre procurei penetrar na realidade dos números e dos dados disponíveis, indagar sobre as melhores alternativas de políticas, assim como questionar as verdades oficiais, quaisquer que fossem as orientações dos governos de plantão. Numa fase posterior, passe a identificar essa atitude como sendo a de um contrarianista, ou seja, a de um contestador do senso comum, ou da versão consagrada. 
Tanto é assim que um dos meus livros mais recentes, entre uma dúzia e meia daqueles especificamente dedicados aos temas internacionalistas, se chama Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil (2014-2018). Como vários outros publicados nas últimas três décadas e meia, ele consolida aquele diálogo entre a diplomacia e a academia – como já preconizou, ainda nos quadros do regime militar, um diplomata dos mais conhecidos nessa vertente, Gelson Fonseca – que reputo indispensável ao trabalho bem conduzido dos diplomatas profissionais, como também exemplificado na trajetória de dois outros intelectuais – Rubens Ricupero e Celso Lafer – que constituem brilhantes exemplos de vocações duais, que se situam nessa interface simbiótica entre a pesquisa acadêmica e a ação prática. Sem exibir a reputação desses grandes intelectuais e profissionais da diplomacia, acredito ter contribuído para o estudo e a reflexão das interfaces externas do Brasil, no contexto da economia mundial e da política internacional e regional. 
Tendo já exercido uma trajetória profissional na diplomacia por quatro décadas, e acumulado um pouco mais do que isso no estudo e na produção de ensaios e livros nessas vastas áreas de interesse para a projeção externa do Brasil, creio poder oferecer mais uma contribuição ao conhecimento e reflexão sobre nossa trajetória internacional nas duas primeiras décadas deste século, quando passamos de uma diplomacia claramente identificada com e embasada no Itamaraty para uma diplomacia partidária situada naquele mesmo universo mental no qual eu me situava na primeira metade dos anos 1960, chegando na atualidade a uma diplomacia bizarra, que pode até ser chamada de “antidiplomacia”, tal o número de incongruências em relação aos padrões tradicionais da diplomacia profissional do Itamaraty tal como o conhecemos desde longas décadas. 
As análises que pretendo conduzir na presente conjuntura se dedicarão a um exame sintético das características principais da diplomacia brasileira, com destaque para as orientações enviesadas de que foi acometida sob os três mandados e meio de duração do “lulopetismo diplomático”, a volta temporária a uma diplomacia quase “normal” durante um curto período de transição (2016-18), e o ingresso, desde o início de 2019, no desafio mais relevante ao Itamaraty enquanto instituição, com a inauguração de uma mal definida “Bolsodiplomacia”, aliás indefinida por definição, se cabe a redundância no reconhecimento de uma ausência completa de exposição clara sobre as metas, diretrizes e métodos de uma política externa bizarra e destruidora de algumas boas tradições de nossa diplomacia tradicional. Este é o meu próprio desafio intelectual, uma espécie de síntese de muito do que já escrevi ao longo das últimas décadas, e que ainda pode oferecer um testemunho válido dessa ponte que considero benéfica que junta o melhor da pesquisa acadêmica com o trabalho prático na diplomacia profissional. 
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5 de janeiro de 2020

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