O trabalho, disponível em bibliotecas de Brasília (Itamaraty, Câmara e Senado), é este aqui:
“O sistema internacional e a Europa Ocidental” (Bonn, janeiro-fevereiro de 1973). [Brasília:] Ministério das Relações Exteriores, 1973 (separata).
O trabalho pode ser lido ou descarregado na plataforma Academia.edu:
Efetuei uma breve análise num trabalho mais longo sobre o pensamento político de Merquior, do qual destaco esses trechos:
Merquior diplomata: o sistema internacional e a Europa ocidental
(...)
... um exemplo de seu trabalho meticuloso de análise do mundo da política internacional sobreviveu à crítica destrutiva das traças, ao ter sido mimeografado e distribuído como “folheto” pelo próprio Itamaraty. Encontrei-o no catálogo da biblioteca do Itamaraty – e também nos das bibliotecas do Congresso – sob o seguinte título: “O sistema internacional e a Europa Ocidental”, datado de “Bonn, janeiro-fevereiro de 1973” (seu segundo posto na carreira, depois da embaixada em Paris), em 27 páginas cuidadosamente datilografadas, cujo estatuto preciso – se anexo a algum ofício de rotina, depois transformado em separata, ou se já um trabalho extra em meio aos expedientes de rotina – ainda precisa ser identificado.
O fato é que se trata de um curto, sintético, mas erudito ensaio – nada menos do que treze obras na bibliografia, entre eles a famosa conferência do embaixador, ex-chanceler de João Goulart, João Augusto de Araujo Castro, sobre o “congelamento do poder mundial”, e um artigo de Roberto Campos no Globo, no próprio mês de janeiro de 1973 – discutindo o panorama internacional no início daquela década, com uma atenção especial para o papel da Europa ocidental, ou mais especificamente da Comunidade Econômica Europeia, acrescida recentemente do ingresso do Reino Unido, no difícil equilíbrio de poderes no mundo bipolar da Guerra Fria, mas já marcando o retorno da China ao cenário geopolítico internacional. O trabalho está dividido em quatro partes bem identificadas: (a) “a dinâmica do sistema internacional nos anos 70”, com um pouco de prospectiva, portanto; (b) “o pentarca hipotético: a posição da Europa Ocidental”, entre os dois gigantes adversários; (c) “Détente, congelamento do poder mundial e impasse europeu”, com suas observações sobre os interesses contraditórios dos três grandes atores da CEE, França, Alemanha e Reino Unido; (d) “as negociações europeias de 1973”, sobre o começo do processo que seria depois conhecido como “acordos de Helsinque”, de 1975, e novas negociações em torno das armas nucleares entre os EUA e a URSS; mais a conclusão e a bibliografia.
Não é o caso de retomar aqui cada um dos seus argumentos sobre o cenário mundial e seus desenvolvimentos prováveis numa conjuntura em que os EUA procuravam se desengajar da terrível guerra do Vietnã, ao mesmo tempo em que a URSS brejnevista se dedicava a novos ensaios de projeção internacional em outros continentes, e quando a China buscava, justamente, uma aproximação ao Ocidente, ao ter na União Soviética a sua principal ameaça e favorecendo – este um ponto central – uma maior integração europeia, inclusive na área de defesa, como forma de diluir o imenso poderio convencional e nuclear da antiga aliada no sonho comunista. Merquior faz vários retrospectos ao período mais crucial da Guerra Fria e à doutrina da “mútua destruição” de Foster Dulles, mencionando en passant que “o Prof. Henry Kissinger é um renomado especialista em Metternich e Bismarck” (p. 1). Mesmo reconhecendo a oposição EUA-URSS, Merquior enfatiza que não se trata de um antagonismo “inspirado por reivindicações territoriais, mas sim por divergências ideológicas”, ao passo que “o antagonismo URSS-China, ao contrário, parte de motivos ideológicos, mas encerra uma divergência geográfica de enorme peso histórico” (pp. 2-3; ênfase no original). A partir desse cenário, Merquior observa que:
De todas as combinações possíveis no interior do triângulo, a mais improvável é, de longe, uma conjunção sino-soviética contra os USA, sendo muito mais verossímil que os soviéticos se sintam obrigados a se aproximar de Washington, quando e se a China aumentar substancialmente seu capital estratégico e sua penetração nas zonas de influência soviética (p. ex., o Oriente Médio). (p. 4; ênfase no original)
Mais interessante, na perspectiva dos longos desenvolvimentos em direção ao final do século, são suas observações sobre a “pentarquia hipotética” da Europa Ocidental, e o papel dos três grandes países – duas potências nucleares, França e Grã-Bretanha, e uma potência econômica, a Alemanha – no complexo jogo com aqueles outros três grandes atores, no momento em que “o sistema internacional emprestou novas perspectivas de uma efetiva multipolarização do poder” (p. 7). Esse “pentarca” permanecia “hipotético”, uma vez “que prevalecem dúvidas fundadas sobre a efetivação, em futuro próximo, da unidade política da CEE” (idem). Essa é a questão crucial ainda hoje, como se pode verificar num relatório do Egmont Institute, de 2020, sobre as “escolhas estratégicas” da Europa para o resto da década, ainda centradas, justamente, sobre as possibilidades de que a UE possa se “reposicionar na política internacional”, adotando uma “Grande Estratégia” consensual entre seus membros mais importantes, sem alienar a cooperação com os EUA em face dos grandes contendores, mas sem continuar a ser dependente submisso das escolhas estratégicas americanas (Sven Biscop, “Strategic choices for the 2020s”, Security Policy Brief n. 122, February 2020, Bruxelas: Egmont-Royal Institute for International Relations). Merquior vai inclusive muito mais além do que simplesmente expressar a necessidade de maior integração e cooperação entre os países membros da CEE – apenas nove, naquela conjuntura – nos terrenos político e de defesa, penetrando no desenvolvimento institucional desse quinto membro hipotética da pentarquia do poder internacional, junto com os dois grandes nucleares, a China emergente e o Japão. Seu parágrafo, sem ênfases, é o seguinte:
Não há dúvida de que, para desempenhar o papel que a evolução do sistema internacional lhe reserva, ocupando o seu lugar na pentarquia em formação, a Europa Ocidental se depara hoje com a necessidade de realizar com urgência uma inédita operação de química histórica: a fusão dos estados nacionais europeus numa federação. Numa federação de 250 milhões de almas, econômica e tecnologicamente superior à URSS, ao Japão e à China. (pp. 7-8)
Merquior reconhece imediatamente a dificuldade e o ineditismo dessa metamorfose, devido à circunstância
... de que foi precisamente na Europa Ocidental que se originaram e mais se desenvolveram as entidades históricas denominadas Estados nacionais. A história do mundo registra muitas federações; mas desconhece, até aqui, uma federação feita de unidades tão ciosas e ciumentas de sua personalidade cultural e de sua soberania política quanto as grandes nações europeias. (p. 8)
Merquior continua enfatizando a relativa perda de poder pela Europa “desde os últimos decênios do séc. XIX”, inclusive em função da retração demográfica:
Em consequência, a posição internacional da Europa Ocidental encerra, atualmente, um verdadeiro desafio – um “challenge”no sentido de Toynbee. Ou o Ocidente europeu se unifica, ou não usufruirá, senão em mui pequena escala, das perspectivas de poder e influência oferecidas pela evolução inscrita na dinâmica do sistema internacional. (p. 9)
Depois de tecer considerações sobre as contradições e ambiguidades nas relações entre os três grandes europeus, sobretudo no posicionamento em face da arrogância e do unilateralismo americano – conceitos que ele não usa –, Merquior vem às suas conclusões que parecem válidas ainda para a atualidade, bastando substituir soviéticos por russos:
O que os soviéticos mais receiam, além do robustecimento da China, é a unificação política da Europa Ocidental, porque é grande o seu temor de que, unida, a Europa Ocidental se converta em fator de desagregação do bloco socialista, na medida em que sua vitalidade econômica econômica e cultural, reforçada pela união, atrairia, mais do que já atrai, a maior parte dos atuais países satélites. Tudo o que se conhece dos trabalhos soviéticos de planejamento diplomático confirma essa impressão, ratificada pelos melhores kremlinólogos. (p. 24; ênfase no original)
Pois foi exatamente o que ocorreu menos de duas décadas depois, e não apenas em relação aos satélites da Europa central e oriental, mas também no tocante aos próprios membros da federação russo-soviética, como revelado mais adiante pelo caso da Ucrânia. Não se trata exatamente de uma presciência, ou profetismo, da parte de Merquior, mas de aguda observação dos dados da realidade internacional e regional, com base nas leituras que fazia de grandes especialistas ocidentais. O Brasil não aparece nessa análise de Merquior, a não ser pela adesão do autor às teses de Araujo Castro sobre o “congelamento do poder mundial” e por uma menção aprobatória à não adesão do Brasil ao Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP): “Bem andou o Brasil ao não assinar convênio tão estranhamente ‘altruístico’.” (p. 11), quando se sabe que seu amigo e mentor Roberto Campos desdenhava dessas posturas e recomendava a adesão do Brasil ao TNP desde a sua finalização.
Finalmente, ao apoiar em sua conclusão, a ideia da “constituição de uma Europa Ocidental militarmente emancipada e politicamente coesa”, Merquior menciona um aspecto do balé diplomático ainda em voga na atualidade e totalmente pertinente para os dias que correm, com Brexit ou sem ele:
Nada comprova melhor a veracidade disso do que a constância com que Pequim aconselha a unificação política da CEE e o reforço militar da OTAN às personalidades europeias em visita à China... (p. 25)
No conjunto, esse ensaio de análise prospectiva sobre o cenário internacional, a partir de seu posto de observação em Bonn, tendo vindo de Paris na oportunidade em que se negociou o ingresso do Reino Unido na então CEE, oferece a oportunidade de penetrar na argumentação de planejamento diplomático de Merquior, em complemento ao seu interesse básico num momento de transição de sua própria trajetória intelectual: o distanciamento dos temas de crítica literária e cultural da primeira fase e um engajamento mais decidido nos grandes temas da ciência política e da realidade da política internacional. Poucos anos depois, em 1977, Merquior elaboraria seu curto mas denso trabalho sobre a legitimidade em política internacional.
(...)
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