Valerio de Oliveira Mazzuoli
Professor-associado da Faculdade de Direito da UFMT. Pós-Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa. Doutor summa cum laude em Direito Internacional pela UFRGS. Mestre em Direito pela UNESP, campus de Franca. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (SBDI) e da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas (ABCD)
A pandemia do novo coronavírus (Covid-19) trouxe novamente à tona a questão da obrigatoriedade das decisões e recomendações de organizações internacionais no País. De fato, sabe-se que muitas organizações internacionais – como a Organização Mundial de Saúde (OMS) – expedem decisões ou recomendações aos seus Estados- membros, à luz de seu acordo ou tratado constitutivo. Tal é assim pelo fato de serem formadas por Estados, que consentem, quando da assunção do jogo obrigacional, aos ditames estabelecidos naqueles mesmos instrumentos.
O art. 2o, k, da Constituição da OMS – concluída em Nova York, em 22 de julho de 1946 – destaca que “[p]ara conseguir o seu objetivo, as funções da Organização serão: (...) k) Propor convenções, acordos e regulamentos e fazer recomendações respeitantes a assuntos internacionais de saúde e desempenhar as funções que neles sejam atribuídas à Organização, quando compatíveis com os seus fins”. No art. 23, por sua vez, o mesmo instrumento estabelece que “[a] Assembleia da Saúde terá autoridade para fazer recomendações aos Estados-membros com respeito a qualquer assunto dentro da competência da Organização”. Ademais, o art. 62 do tratado determina que “[c]ada Estado-membro apresentará anualmente um relatório sobre as medidas tomadas em relação às recomendações que lhe tenham sido feitas pela Organização e em relação às convenções, acordos e regulamentos”.
O Brasil é parte da OMS e, portanto, tem o compromisso de cumprir com as suas determinações ou recomendações, notadamente as de base convencional, como as acima referidas, decorrentes do próprio instrumento constitutivo da Organização. Todas as recomendações de higiene (p. ex.: limpeza das mãos com sabão ou álcool em gel 70%) e distanciamento de pessoas (p. ex.: período de isolamento e quarentena em casa) são importantes para evitar maiores contágios da pandemia em curso, sem o que o número de infecções crescerá em progressão geométrica, como têm experimentado países como a China e a Itália.
A Itália, no início da pandemia, não deu valor para a progressão de alastramento do vírus e agora se vê arrependida por não ter tomado medidas de contingenciamento no momento próprio. O prefeito de Milão, por exemplo, admitiu publicamente que a campanha #MilãoNãoPara foi um erro: “Ninguém ainda havia entendido a virulência do vírus” (Correio Braziliense, de 26.03.2020). O Brasil, por sua vez, está a repetir o mesmo equívoco, dadas as reiteradas declarações do Presidente da República de que “devemos, sim, voltar à normalidade”, e de que se deve “abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa” (pronunciamento em Rede Nacional de Televisão, no dia 24.03.2020).
A manifestação do Chefe de Estado brasileiro vai de encontro às medidas tomadas em todo o mundo e às recomendações da OMS para a contenção do novo coronavírus, especialmente relativas ao isolamento social. Sabe-se que a infecção atinge, em sua maioria, os idosos, e, por essa razão, é importante o isolamento dos que mantêm contatos com pessoas acima dos 60 anos. À vista desse fenômeno pernicioso é que volta à tona a questão da obrigatoriedade de acatamento das recomendações das organizações internacionais competentes, como é o caso da OMS. Além de medida de cooperação internacional, trata-se de obrigação jurídica decorrente da ordem internacional, que visa salvaguardar a saúde humana. Trata-se, em suma, de uma questão mundial de direitos humanos relativa à saúde.
O fato de desrespeitar as recomendações das organizações internacionais põe em xeque, objetivamente, a autoridade dos organismos de monitoramento e controle para a proteção da população mundial de pandemias como a que está em curso, uma vez que o mundo, de há muito, não conhece fronteiras e a propagação de pessoa a pessoa é quase que instantânea. Por isso, não faz qualquer sentido o Estado participar de uma organização internacional – que, por sua vez, cria e põe em marcha determinado mecanismo de monitoramento e controle – se não for para seguir as suas recomendações e deliberações. Além do respeito que os Estados devem ter para com as recomendações e deliberações da OMS, é também importante que não fique a imagem do Estado internacionalmente maculada, como não cumpridor de suas obrigações internacionais relativas a direitos humanos.
Seja como for, certo é que, na prática, os Estados – muitas vezes, sem qualquer justificativa plausível – mais desconsideram as decisões dos organismos internacionais competentes que efetivamente as aplicam. À evidência que a conduta estatal não deveria ser dessa forma, por ser a OMS organismo especializado e conhecedor técnico dos problemas sanitários mundiais. Daí a constatação de que o desrespeito às prescrições estabelecidas pela OMS é um ato falho e danoso, não somente para as relações internacionais do País, senão também para a sanidade de todo o planeta, vez que permite o alastramento de pandemia ainda sem cura em todo o mundo. Trata-se, tout court, de ato de irresponsabilidade executiva que está a merecer desobediência por outros agentes públicos – tais governadores dos Estados e prefeitos dos Municípios – que tenham um mínimo de consciência do que está a experimentar o mundo nestes tempos.
Disso decorre o entendimento de que a conduta do governo federal não desautoriza – ao contrário, impele – que os Estados-federados, o Distrito Federal e os Municípios imponham regras superiores aos padrões mínimos mundiais como medida necessária à contenção da Covid-19, visto que o direito internacional opera sempre como plataforma mínima, é dizer, plataforma básica e inicial – mínimo necessário – sobre determinado tema, incapaz de impedir medidas mais austeras de salvaguarda dos direitos humanos que as internacionalmente estabelecidas. A proibição de retroceder na garantia de direitos sociais é um princípio reconhecido no direito internacional dos direitos humanos, que deve ser levado sempre em consideração, vez que chancelado pelos tribunais regionais competentes, como, em nosso entorno geográfico, a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Esta, inclusive, reconheceu, no julgamento do caso Lagos del Campo Vs. Peru, a progressividade e justiciabilidade dos direitos sociais, com um tom protetivo inédito no sistema interamericano de proteção (cf. Corte IDH, sentença de 31.08.2017).
Por sua vez, andou bem a Constituição Federal de 1988 ao prever ser da competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios “cuidar da saúde e assistência pública” (art. 23, II), dizendo, ainda, competir à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre “...proteção e defesa da saúde” (art. 24, XII). Há, portanto, fundamento jurídico-constitucional para que governadores e prefeitos tomem medidas de contenção do vírus em desacordo com o que tem sugerido o governo federal, antes que se chegue à desobediência civil, a qual, por sua vez, também tem reconhecimento constitucional, se decorrente do regime (democrático) e dos princípios (republicanos e humanistas) adotados pela Constituição, nos termos do art. 5o, § 2o: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Se chegarmos a tal ponto, fico com a lição de Maria Garcia, para quem a desobediência civil é a “garantia das prerrogativas da cidadania”, pois “[c]orresponde ao status vicitatis e decorre do regime dos direitos fundamentais no qual se insere o próprio mandamento do § 2o do art. 5o” (Desobediência civil: direito fundamental. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2004, p. 291 e 297). Ainda mais, é de se relembrar a sempre precisa lição de Celso Lafer, para quem “se o legislador pode reivindicar o direito a ser obedecido, o cidadão pode igualmente reivindicar o direito a ser governado sabiamente e por leis justas” (A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 188).
Os milhares de mortes ocasionadas pela Covid-19 estão patentes em todo o mundo e, por isso, não é o momento de desconfiar da verdade notória, clara, constatável e informada minuto a minuto em todo o globo, bem assim de faltar com o dever de precaução necessário, dadas as incertezas científicas que ainda permeiam esta pandemia. Hoje – exatamente dia 27 de março de 2020, quando escrevo estas linhas – o mundo não sabe como a pandemia se comportará nos próximos dias e meses, mas já se tem o exemplo de vários países, como a Itália, que se arrependeram em não tomar medidas no tempo oportuno.
Certo é que num mundo cada vez mais cooperativo e integrado o Brasil não pode se postar acima de tudo, à custa de uma razão indolente e soberba; não há de fazer tábula rasa de importantes recomendações de organismos internacionais especializados, que buscam conter o avanço de uma pandemia mundial, em tempos de incertezas científicas. Posturas como tais somente intensificam o acirramento das relações internacionais e a propagação de doenças totalmente indesejáveis por todos.
Se Deus está acima de todos, o Brasil não está acima de tudo.
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