SEM DIÁLOGO
O Brasil ficou fora do principal canal de diálogo entre China e América Latina. A terceira reunião ministerial do Foro Celac-China, realizada virtualmente na última sexta-feira (03), teve a participação de todos os países latino-americanos, menos do Brasil. Em janeiro do ano passado, o governo brasileiro decidiu suspender a participação do país na Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), por incompatibilidade ideológica. Tendo em vista que as relações do Brasil com seu principal parceiro comercial não vivem seu melhor momento, a interação no formato multilateral poderia contribuir para uma aproximação e acelerar a solução de problemas bilaterais como o embargo da China à carne bovina brasileira, que já dura mais de três meses. Cabe ao Itamaraty explicar quais os benefícios de rejeitar o convite para a reunião. A reportagem é do jornal O Globo.
O que o Brasil ganha ao ficar fora do diálogo China-América Latina?
Por Marcelo Ninio
06/12/2021 • 14:27
O Brasil ficou fora do principal canal de diálogo entre China e América Latina, em mais um sinal de encolhimento da diplomacia do país em instâncias multilaterais. A terceira reunião ministerial do Foro Celac-China, realizada virtualmente na última sexta-feira, teve a participação de todos os países latino-americanos, com exceção do Brasil. Em janeiro do ano passado, o governo brasileiro anunciou a decisão de suspender a participação do país na Celac, por incompatibilidade ideológica. O então chanceler, Ernesto Araújo, alegou que a organização "dava palco a regimes não democráticos como Venezuela, Cuba e Nicarágua".
A Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) foi criada em 2010 durante o governo Lula num momento de ascensão de governos de esquerda na América Latina, com uma agenda de integração regional e desenvolvimento. Foi a primeira vez que um órgão de articulação política reuniu todos os 33 países da região, sem a presença dos Estados Unidos e do Canadá. Quatro anos depois, por iniciativa de Pequim, foi criado o Foro Celac-China. A virada para a direita na região enfraqueceu a Celac, mas o Brasil foi o único país que formalizou sua saída do grupo.
Além da renúncia ao papel de líder regional com a saída de uma das principais entidades políticas latino-americanas, a decisão teve um efeito colateral para Brasília. O país ficou sem voz no diálogo da China com a América Latina, que ocorre por intermédio da Celac. Mesmo fora da organização, o Brasil foi chamado a participar da reunião ministerial da última sexta, mas recusou o convite. Em resposta, o governo brasileiro afirmou que está disposto a explorar outros formatos de diálogo.
Para Pequim, no entanto, o formato existente parece satisfatório: o governo chinês deixou clara a importância que dá à Celac. Houve várias sinalizações nesse sentido. A mídia chinesa deu destaque à reunião ministerial, com várias menções nos jornais e nos noticiários da TV estatal. A participação chinesa foi aberta com um pronunciamento do presidente Xi Jinping, que classificou a Celac como a plataforma mais importante de cooperação da China com a América Latina.
Em um balanço da reunião de ministros, o representante especial da China para a região, Qiu Xiaoqi, disse que o encontro mostra que seu país demonstrou ser "um bom amigo da América Latina". Ele lembrou que a América Latina é o segundo destino de investimentos chineses, só atrás da Ásia. Durante a reunião de chanceleres, o ministro do Exterior chinês, Wang Yi, anunciou o estabelecimento de dois fundos no total de US$ 2 bilhões (R$ 11,38 bilhões) para a cooperação com a região, com ênfase na economia digital.
Questionado sobre a ausência do Brasil, Qiu foi diplomático, deixando a porta aberta para o retorno do país à Celac. Ex-embaixador em Brasília, português fluente, ele afirmou que "a China respeita a decisão do Brasil" e "espera sinceramente trabalhar com o país para ampliar a novas áreas a cooperação conjunta da China com a América Latina".
Para Maurício Santoro, professor de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e um estudioso das relações entre Brasil e China, não é por acaso que Pequim tem olhado com atenção para a Celac e que considera a organização sua principal interlocutora no diálogo com a América Latina.
— É o único processo de integração da região que inclui todos os países latino-americanos e deixa de fora os Estados Unidos, em contraste, por exemplo, com a Organização de Estados Americanos (OEA), ou com processos sub-regionais como o Mercosul. Essa combinação torna a Celac muito atraente para os objetivos da China na região, seja levar adiante a Iniciativa do Cinturão e Rota (a chamada "nova rota da seda"), discutir cooperação em vacinas e outros temas, ou disputar o reconhecimento diplomático dos países da América Central. Ao que parece, Honduras será o próximo a romper com Taiwan.
Num momento em que as relações do Brasil com seu principal parceiro comercial não vivem o seu melhor momento, a interação no formato multilateral poderia contribuir para uma aproximação e acelerar a solução de problemas bilaterais como o embargo da China à carne bovina brasileira, que já dura mais de três meses. Enquanto há um prejuízo claro em ficar fora do diálogo regional com Pequim, cabe ao Itamaraty explicar quais os benefícios de rejeitar o convite para a reunião.
Além disso, o multilateralismo é um dos mantras da diplomacia chinesa, reforçado ainda mais como contraste à Presidência de Donald Trump nos EUA, quando o governo americano se retirou de vários tratados e organizações internacionais. Apesar do discurso apaziguador de Qiu em relação à ausência do Brasil na reunião Celac-China, o encolhimento da diplomacia brasileira nos últimos anos causa estranheza em Pequim.
Um exemplo é a recente conferência do clima em Glasgow, a COP 26, onde especialistas habituados a ver o Brasil como um dos países mais preparados e atuantes no assunto se surpreenderam com o papel secundário do país:
— O Brasil parecia invisível — disse Li Shuo, da organização Greenpeace em Pequim, um veterano de conferências climáticas.
Entrevistado com frequência por veículos de imprensa chineses, Maurício Santoro sentiu uma diferença de tom ao falar recentemente com a agência oficial Xinhua:
— Havia perguntas explicitamente críticas ao governo brasileiro, sobretudo pela não participação no fórum da Celac e pela pouca importância que Bolsonaro tem dado às organizações multilaterais. Essa perspectiva crítica por parte da Xinhua é algo raro. Em geral, as entrevistas que dei para a agência foram centradas em oportunidades de cooperação entre Brasil-China. Me pergunto se esse novo enfoque foi algo ocasional ou se sinaliza uma mudança da cobertura da mídia chinesa sobre o Brasil, depois de tantas tensões com Bolsonaro pela pandemia.
Em 2015, quando a China sediou a primeira reunião do Foro Celac-China, o presidente Xi Jinping recebeu os ministros latino-americanos para um banquete em grande estilo, entre eles o chanceler brasileiro, Mauro Vieira, que havia tomado posse dias antes. Quem representou o Brasil na segunda reunião ministerial do grupo, realizada no Chile em 2018, foi o então secretário-geral do Itamaraty, Marcos Galvão, ainda sob o governo Temer. Ouvido na ocasião pela agência Reuters, ele disse que a Celac era "mais um caminho para o Brasil trabalhar com a China". Galvão agora terá a missão de desbloquear caminhos e abrir novos nas relações com a China. Já aprovado pelo Senado, ele assume em breve o posto de embaixador do Brasil em Pequim.
https://blogs.oglobo.globo.com/marcelo-ninio/post/o-que-o-brasil-ganha-ao-ficar-fora-do-dialogo-china-america-latina.html
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