O sul da política externa lulista
'Sul global' é fantasia acadêmica, tardia flor ideológica do terceiro-mundismo
Demétrio Magnoli
Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Putin e Zelenski são igualmente responsáveis pela invasão russa da Ucrânia. O diagnóstico neutralista de Lula encontra sua teorização na réplica à minha última coluna, assinada por um grupo de professores universitários (Folha, 2/8).
O "conflito é multicausal", explicam, atribuindo-o em partes iguais ao "expansionismo da Otan" e à "deriva nacionalista do regime de Vladimir Putin". A ordem dos fatores não é casual: fazendo eco a Lula, e ignorando as evidências factuais, o primeiro surge como raiz da tragédia e, implicitamente, como fonte do segundo. O conjunto do texto desdobra o argumento inicial e, nesse passo, descortina os fundamentos da política externa do provável futuro governo. Por isso, merece exame.
O Brasil deve "trabalhar pelo multilateralismo", dizem os autores, enquanto criticam as ações multilaterais destinadas a enfrentar a agressão russa. A ONU, principal instituição multilateral, votou duas resoluções de condenação à invasão, uma no Conselho de Segurança (vetada por Moscou) e outra na Assembleia-Geral. As sanções à Rússia assentam-se nessas resoluções —e são, elas mesmas, iniciativas multilaterais adotadas por dezenas de países.
As sanções não atingiram "o objetivo de acabar com a guerra", escrevem os professores, inventando uma meta maximalista impossível. De fato, embora as exportações da Rússia tenham sido pouco afetadas, suas importações sofreram golpes profundos, o que provocou recuo generalizado na produção industrial russa, como explica Paul Krugman. As sanções reduzem, a longo prazo, as capacidades militares de Putin. Mas o governo Bolsonaro as condena --e Lula também.
O fornecimento de armas à Ucrânia ampara-se no princípio multilateralista da autodefesa coletiva, consagrado na Carta da ONU. Os autores dizem que "a sobrevivência de Kiev será um abalo para a visão do mundo de Putin", como se tal "sobrevivência" fosse uma dádiva da natureza, não um fruto do auxílio militar. Bolsonaro e Lula pedem, juntos, o fim desse suporte bélico. Não é preciso excessiva perspicácia para concluir que a "visão do mundo de Putin" prevaleceria e a Ucrânia deixaria de existir caso imperasse a posição compartilhada pelos dois.
No texto de réplica, curiosamente, sanções e ajuda militar são excluídas do conceito de multilateralismo. Para os autores, multilateralismo parece só se aplicar a iniciativas de um certo "sul global", que faria contraponto à "posição ocidental". Aí, emerge uma noção organizadora da concepção de política externa lulista.
"Sul global" é um herdeiro imaginário do antigo Terceiro Mundo e, mais nitidamente, do Movimento dos Países Não Alinhados (NAM). Nascido da Carta de Bandung (1955), o NAM adotou posições coletivas que refletiam o ciclo da descolonização afro-asiática. Depois, tornou-se um campo de concorrência diplomática entre China e Índia, até perder relevância. Já o "Sul global" não passa de uma fantasia acadêmica.
Quem estrutura o "Sul global"? A China, engajada no jogo de poder mundial com os EUA? A Índia, cuja rivalidade com a China produz alinhamentos duais, com os EUA e a Rússia? A Turquia, integrante da Otan que, para preservar sua influência geopolítica regional, mantém uma parceria limitada com a Rússia?
A autonomia brasileira no sistema internacional exige a rejeição da Guerra Fria 2.0 entre EUA e China e solicita a edificação de parcerias flexíveis baseadas no interesse nacional. Nossa política externa certamente não deve buscar "alinhamentos automáticos com grandes potências" –mas a condenação efetiva da guerra imperial russa não equivale a nenhum "alinhamento automático".
"Sul global" é uma tardia flor ideológica do terceiro-mundismo. No atual discurso lulista, funciona como pretexto sofisticado para a reiteração da política bolsonarista de solidariedade com Putin.
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