A nova divisão do mundo e a postura diplomática do Brasil
Paulo Roberto de Almeida, diplomata, professor.
Digressão sobre a segunda Guerra Fria e as escolhas da atual diplomacia brasileira
Está em curso, e isso já é bastante nítido, uma nova divisão do mundo, talvez muito pior e ainda mais ameaçadora para a sobrevivência do mundo civilizado do que aquela que ocorreu no “Norte Global” dos anos 1930, entre as democracias de mercado do mundo ocidental – com vários pacifistas no comando das principais potências – e as potências fascistas, expansionistas e belicistas que se opunham a esse poderio econômico e político e que pretendiam contestar essa hegemonia pela força das armas.
Assim o fizeram — aliás o Japão contra a China desde 1931 e 1937, e os dois fascismos europeus na Espanha desde 1936, em face da pusilanimidade das potências ocidentais em 1938, quando deveriam ter confrontado os agressores — e o mundo foi precipitado num conflito global que simplesmente dobrou o número de vitimas e o volume da destruição material da Grande Guerra, agregando a tudo isso um genocídio ainda pior do que o contra o povo armênio na Grande Guerra, que foi o Holocausto contra o povo judeu, por nenhum outro motivo que não o de ser judeu.
O Brasil, como na Grande Guerra, afirmou sua neutralidade na contenda de meados do século até onde isso foi possível, confrontando a postura Rui Barbosa que, desde o início, e expressamente em 1916, dizia que não se pode ser neutro entre a Justiça e o crime. Foi preciso um chanceler do caráter de um segundo Barão, Oswaldo Aranha, para nos colocar do lado certo quando as escolhas se tornaram inevitáveis, aliás relembrando, em 1942, a postura de Rui em 1916.
No segundo pós-guerra, o Brasil construiu, com hesitações ao início, uma postura diplomática de neutralidade e de real autonomia na política externa, em face da grande divisão do mundo na primeira Guerra Fria e das contendas interimperiais do período 1946-1989. Foi positivo para o seu grande objetivo prioritário, o desenvolvimento econômico e social.
O Brasil, por sua tradição de autonomia e de independência na política externa, não deveria agora tomar partido na nova contenda entre as grandes potências desta segunda Guerra Fria, que já se tornou parcialmente quente em alguns pontos o planeta, notadamente (e novamente) na Europa, em especial na Ucrânia (mas já tinha começado, inclusive por meios militares, na Georgia e na Moldova). A Rússia repete os descaminhos dos impérios centrais na Grande Guerra e doas potências fascistas agressivas dos anos 1930, e Putin é o mais próximo que temos de um novo Hitler. A China flexiona seus músculos na Ásia e o faz na direção de uma ilha que nunca pertenceu à República da China (ela estava sob dominação japonesa desde 1870, até 1945) e que tampouco pertenceu à RPC, instalada no continente, desde 1945 e até 1949, quando o PCC vence a guerra civil contra o Kuomintang no poder na RC, e nos anos seguintes até 1972, quando Taiwan deixa de representar o povo chinês no CSNU, e a RPC proclama suserania sobre esse antigo domínio do Império do Meio.
O Brasil rompeu relações diplomáticas com Taiwan em 1974, e passou a reconhecer a doutrina da RPC de soberania sobre Taiwan, mantendo um escritório comercial na ilha. Durante todo esse tempo, seja sob a ditadura militar, seja na redemocratização, o Brasil manteve sua postura de autonomia e independência nas diferenças entre as grandes potências.
Lula, mal assessorado, preconceituoso, já escolheu o seu campo, o das autocracias, e isso implicitamente desde o primeiro mandato. Ele o faz agora explicitamente no terceiro mandato, mas já tinha havido um grande erro estratégico, em nome do Brasil, quando da invasão e anexação ilegal da península ucraniana da crimeia em 2014 e o terceiro governo petista permaneceu completamente indiferente em face da grave violação da Carta da ONU perpetrada pela Rússia. O erro estratégico se repetiu desde a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022, sob o governo Bolsonaro, e assim permaneceu no governo lulopetista.
Por razões diferentes, mas com consequências similares, ambos os governos, se mostraram indiferentes à grave guerra de agressão contra um país soberano, se tornando, portanto, objetivamente favoráveis à posição do violador da Carta da ONU, que de resto passou a cometer crimes de guerra, contra a paz e a humanidade, numa série de atrocidades jamais denunciadas incisivamente por qualquer um dos dois governos brasileiros.
Lamentável que seja assim, e as lideranças democráticas do Brasil deveriam alertar Lula por essa escolha contra a natureza do Brasil democrático, contrária às cláusulas de relações internacionais da Constituição de 1988 e afrontosas a quaisquer normas do Direito Internacional, começando pela Carta da ONU, assim como em total contradição com princípios e valores de nossas tradições diplomáticas longamente estabelecidas.
Num momento em que o mundo se aproxima de um novo clima de tensão bélica entre grandes potências opostas, é preocupante que a postura diplomática do Brasil se mostre objetivamente favorável a um dos campos, o das autocracias, contra os sentimentos democráticos da maioria da nação brasileira. Mesmo o autocrático Estado Novo permaneceu fiel à doutrina jurídica consagrada do Itamaraty, quando, em 1939 e em 1940, os dois aliados totalitários unidos por um pacto de não agressão violaram a soberania e anexaram ilegalmente territórios da Polônia e dos três Estados bálticos, países com os quais mantínhamos relações diplomáticas regulares. A ditadura do Estado Novo não reconheceu a usurpação da soberania dessas nações, o que não ocorreu em relação à Crimeia em 2014 e não parece ocorrer em relação à Ucrânia desde 2022.
Momento extremamente baixo e contrário às nossas tradições diplomáticas de pleno respeito ao Direito Internacional e em defesa da paz e da segurança internacionais. O Brasil merece retornar à postura de autonomia e independência de sua política externa e de neutralidade de sua postura diplomática em face das contendas interimperiais. Não é o que se observa atualmente.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4645, 26 abril 2024, 3 p.
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