quinta-feira, 4 de abril de 2024

Amigos, amigos, criminosos à parte: Editorial sobre um criminoso, mas amigo de Lula (O Estado de S. Paulo)

 Amigos, amigos, criminosos à parte

O Estado de S. Paulo (editorial 04 abr 2024)

Lula tenta burlar a Constituição para bajular o companheiro Putin, apertando um pouco mais o torniquete que mantém o Itamaraty refém da política externa ativista e pusilânime do PT

O governo do presidente Lula da Silva está tentando burlar tratados de Estado para bajular Vladimir Putin. O tirano russo é alvo de um mandado de prisão do Tribunal Penal Internacional (TPI) por crimes de guerra na Ucrânia, entre eles a deportação forçada de crianças. O Brasil é membro do Tribunal, e se Putin puser os pés em solo nacional, tem de ser imediatamente detido. O País é signatário do documento fundador do TPI, o Estatuto de Roma, que, portanto, está incorporado à Constituição. Mas para Lula esse é só um detalhe inconveniente. Ele já disse que “o conceito de democracia é relativo”, donde se conclui que sua base de sustentação, o Estado de Direito, também deve ser.

O cortejo a Putin não é de hoje. No ano passado, Lula afirmou que, “se eu for presidente do Brasil, e se ele vier ao Brasil, não tem como ele ser preso”. Advertido por algum assessor de que ele não tinha essa discricionariedade, refugou e reconheceu que a decisão caberia à Justiça. Mas aproveitou para tripudiar do TPI: “Eu nem sabia da existência desse tribunal”, acrescentando que iria rever a participação do Brasil.

Sem a carta da ignorância na manga, restou a da má-fé. Em um documento enviado à ONU coalhado de casuísmos, o governo tenta emplacar a tese da imunidade para chefes de Estado. Lula adora se queixar da inoperância da ONU para impor a “paz”, mas quando um órgão com jurisdição ratificada pelo Brasil faz a sua parte, sua reação é acusá-lo de tendências ao exercício “abusivo, arbitrário e politicamente motivado” da jurisdição penal contra representantes de Estado, e propor como remédio a imunidade – quer dizer, a impunidade.

Não é a primeira tramoia para salvaguardar criminosos companheiros. Em 2010, valendo-se de uma decisão esdrúxula do Supremo Tribunal Federal que lavou as mãos ante sua obrigação de extraditar o terrorista Cesare Battisti, condenado pela Justiça italiana por quatro assassinatos, Lula declarou que Battisti era “perseguido político” e lhe conferiu refúgio.

O que rebaixa ainda mais a política externa brasileira nesse tour de force para forjar um salvo-conduto para Putin é que provavelmente o ditador russo nem sequer o usaria. Desde a invasão da Ucrânia, Putin está enfurnado em Moscou. Com exceção de seus suseranos na China e um punhado de ditaduras amigas, não fez mais visitas internacionais. Ele faltou às cúpulas do G-20 na Indonésia e na Índia e foi gentilmente desconvidado a ir à cúpula dos Brics na África do Sul, precisamente porque o país também é membro do TPI.

Se é difícil compreender qual seria o ganho para o Brasil nesse garantismo ad hoc, é porque não há nenhum. É só mais uma manobra da cruzada de Lula contra o “Ocidente”, o “Norte”, o “Grande Capital” ou seja lá como ele chame os “opressores” do “Sul Global”. É só essa doutrina de grêmio estudantil que explica, por exemplo, as contemporizações das atrocidades cometidas por ditaduras esquerdistas na América Latina, ou o endosso ao projeto chinês de transformar o Brics num clube de autocracias antiocidentais, ou o papel que Lula vem protagonizando de uma espécie de porta-voz do Hamas.

O PT chancelou e comemorou a eleição fajuta de Putin. Pouco antes, celebrou um acordo de cooperação com o Partido Comunista chinês e, pouco depois, com o Partido Comunista de Cuba. Pouco importa que Putin seja um ídolo da direita reacionária global, basta que atue como um porrete contra o “imperialismo estadunidense”. Foi o que Lula disse com todas as letras ao canal russo RT, em 2019: “Uma coisa que me deixa orgulhoso é o papel desempenhado por Putin na história mundial, o que significa que o mundo não pode ser tomado como refém pela política dos EUA”.

Para satisfazer o orgulho de Lula, o Itamaraty se tornou refém da política petista ativista e subserviente a potentados autoritários, que nem todo palavrório sobre uma diplomacia “ativa e altiva” consegue disfarçar. Mas sabujice tem limites. Até onde se sabe, ainda há juízes no Brasil. Se Lula insistir em estender o tapete vermelho a mais um déspota criminoso, cabe a eles conduzi-lo à sua cela.


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