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terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Stefan Zweig e o Brasil: exílio e integração, Kristina Michahelles - livro da Casa Stefan Zweig, 2020


 

Stefan Zweig e o Brasil: exílio e integração

Livro da Casa Stefan Zweig, 2020

A Casa Stefan Zweig recebe o apoio da KAS para publicar a cartilha Stefan Zweig e o Brasil: exílio e integração. A publicação apresenta e estimula o debate sobre várias das questões mais em evidência na atualidade, como migração, refúgio e exílio. A obra é dedicada a um amplo público, incluindo jovens, alunos de nível médio e estudantes universitários.

Coordenação editorial: 

Kristina Michahelles

Projeto gráfico: Ruth Freihof, Passaredo Design


Sumário: 


Apresentação, 6 

O viajante, de Luiz Aquila, 8

Artigo: Exílios - Renato Lessa, 11

Exposição | Legado do exílio, 15

Livro: Dicionário dos refugiados do nazifascismo no Brasil, 28

Perfil: Lore Koch, única discípula de Volpi, 35

Grupo de Estudos: Stefan Zweig no país do futuro, 40

Download: 

https://www.kas.de/documents/265553/265602/Stefan+Zweig+-+Ex%C3%ADlio+e+Integra%C3%A7%C3%A3o.pdf/69c28c71-5df3-efd1-cb7f-f2a08d3d9a6f?version=1.1&t=1607529230018


Grupo de estudos

Stefan Zweig no país do futuro


O Grupo de Estudos Stefan Zweig foi criado em junho de 2020 com o objetivo de ampliar a rede de especialistas na obra e a vida do autor austríaco nas universidades brasileiras. Coordenado por Kristina Michahelles, o encontro inicial contou com a presença de Larissa Fumis, Marina de Brito e Carlos Eduardo do Prado. 

Mariana Holms acaba de se juntar ao grupo.

Larissa Fumis é de São José do Rio Preto, SP. Fez mestrado em Literatura com uma tese dissertação sobre Stefan Zweig e seu livro Brasil, um país do futuroNo doutorado, fará uma análise contrapondo o mesmo livro ao Romanceiro Brasileiro, do também exilado Ulrich Becher. 

Marina Brito mora em Viena. Em sua tese de mestrado, fez um estudo comparativo das traduções para o português - em um intervalo de sete décadas - das duas obras icônicas de Zweig, Brasil, um país do futuro e a autobiografia O mundo de ontem.

Carlos Eduardo do Prado é professor de francês da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e se doutorou em Estudos de Literatura – Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense com um estudo comparativo entre as biografias de Balzac e Zweig, com base na obra Balzac, eine Biographiede Zweig.

Mariana Holms é doutoranda em Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo. Depois de focar em Stefan Zweig no mestrado, atualmente concentra sua atenção na vida e obra da escritora e pintora austríaca Paula Ludwig, exilada no Brasil entre 1940 e 1953. 

As reuniões serão trimestrais. O site da CSZ (www.casastefanzweig.org) criou uma nova seção para abrigar trabalhos acadêmicos sobre Stefan Zweig no Brasil. 




sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

As montadoras sob pressão e os royalties do petróleo - Celso Ming

 As montadoras sob pressão e os royalties do petróleo


Celso Ming
O Estado de S. Paulo. 11/12/2020

Ninguém sabe quando a era do petróleo chegará ao fim. Mas esse limite está cada vez mais próximo, bem antes de se esgotarem as reservas de hidrocarbonetos no subsolo. E isso produz importantes consequências para o Brasil.

Como aponta matéria publicada no Estadão de domingo, 6 de dezembro, assinada pela jornalista Cleide Silva, aumentam em todo o mundo as restrições à produção de carros novos movidos a gasolina ou diesel. Inglaterra, Alemanha, países da Escandinávia, Japão, China e até mesmo o Estado da Califórnia, nos Estados Unidos, vêm antecipando o início dessa proibição, para 2030 ou 2035. São prazos que inevitavelmente serão adotados por outros países, se não por imposição legal, pelo menos por simples lógica de mercado.

Explicando melhor, por questão de escala de produção ou por necessidade de atender a exportações sob novos padrões, a indústria automobilística global não poderá produzir carros a gasolina para alguns países e, ao mesmo tempo, carros movidos a energia elétrica para outros; terão de unificar os modelos. Isso é mais ou menos como aconteceu com as aeronaves a jato. Quando alguns governos impuseram restrições aos ruídos produzidos pelas turbinas de aviões a jato, essa condição se estendeu a todo o mercado, porque todo avião tinha de estar pronto para operar em qualquer aeroporto ao redor do mundo. Ou seja, a indústria automobilística brasileira tem de tirar também o atraso em relação a esse item porque tem de pensar nas exportações.

Os veículos elétricos ou híbridos representam atualmente 10% das vendas globais de automóveis. Em 2030, a estimativa é de que as vendas desses modelos sejam cerca de 50%, apontam os relatórios de grandes consultorias.

A pressão cresce também sobre a indústria global do petróleo. Mesmo levando-se em conta que a partir de 2030 ainda haverá grande demanda por derivados, não só para atender à frota de veículos a gasolina ou a diesel, mas, também, para queima nas usinas termoelétricas que continuarão funcionando a despeito do aumento da energia limpa, o petróleo vai acabar por micar onde ele se mantiver inexplorado - independentemente do tamanho e da qualidade dessas jazidas.

Daí, também, a urgência em concentrar esforços e capitais para extrair o que o pré-sal brasileiro e outros campos de hidrocarbonetos puderem proporcionar. Os governos do PT cometeram o grave erro de retardar o processo de exploração de petróleo no Brasil, mais para impedir a entrada de empresas privadas estrangeiras e nacionais nesse mercado do que para preservar o futuro das próximas gerações - quando elas não precisarão mais desse recurso natural. É o mesmo erro que cometem agora as corporações ligadas aos sindicatos dos petroleiros. Não moveram uma palha em defesa da Petrobrás enquanto foi dilapidada pela corrupção e agora protestam quando a empresa se dedica a se desfazer de atividades secundárias para se concentrar na sua atividade principal, que é a produção de petróleo.

Mas há outro fator, desta vez de natureza fiscal, que exige urgência na exploração do petróleo brasileiro antes que ele perca a condição de produto estratégico, como ainda é hoje. Trata-se da geração de receitas com royalties e participações especiais, que hoje geram R$ 45 bilhões por ano. (Veja o gráfico.) O Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, está praticamente falido e não pode abrir mão de nenhuma oportunidade para atender às necessidades orçamentárias. Petróleo que deixa de ser produzido é royalty que deixa de chegar. Igual necessidade se aplica a outros Estados e municípios do País, tão castigados pela perda de arrecadação nestes últimos anos de crise.

Atrasar a exploração desse recurso implica irrecuperável punição fiscal a esses entes da Federação. Em alguns casos, grandes petroleiras vêm desistindo da exploração de áreas obtidas por leilão, por atrasos inexplicáveis (ou pura falta de empenho) na concessão de licenciamentos ambientais, como aconteceu no Amapá. E esse é outro fator de irracionalidade e de perda fiscal que atinge o setor do petróleo.

O tempo não espera que o País acorde da falta de noção de urgência e de sua omissão irresponsável.

COMENTARISTA DE ECONOMIA

sábado, 5 de dezembro de 2020

Por uma nova política externa - Philip Yang (Valor)

Por uma nova política externa 

Na consolidação do “século asiático”, precisamos indagar qual direção deve ser dada à nossa diplomacia

Philip Yang 

Valor Econômico, 04/12/2020

 “O que é o mais difícil de tudo? Ver com seus olhos o que seus olhos colocam diante de você.” 

(Goethe)

 Introdução: a necessária mudança de rumos 

Grandes transformações da ordem mundial requerem grandes ajustes de política externa. Foi assim nas primeiras décadas do século XX. 

Deverá ser assim também nas primeiras décadas do século XXI. Com o deslocamento do eixo de poder da Europa para os EUA, o Brasil de Rodrigues Alves (1902-1906) mudava a orientação de sua diplomacia, construindo uma aproximação a Washington. Hoje, neste momento em que assistimos à emergência e consolidação do “século asiático”, precisamos (i) indagar qual direção deve ser dada à diplomacia brasileira e (ii) buscar entender — à luz do declínio econômico relativo do Ocidente — qual tipo de inserção internacional desejamos construir para o país. 

Enfatizo o verbo construir, pois o desenho de novas políticas demanda um ato volitivo, que nos arranque das forças inerciais, das rotinas do cotidiano, de determinismos vários, das tradições e molduras analíticas que inadvertidamente tomam conta de nossas visões de mundo. 

No início do século XX, a aproximação com os EUA derivou de ação voluntária e proativa de nossa chancelaria (1). Tivéssemos adotado postura burocrática, presa ao hábito ou à tradição, a guinada não teria ocorrido. O governo americano não tinha grande entusiasmo por qualquer vinculação especial com o Brasil, e o condutor do estreitamento de laços com os Estados Unidos pelo lado brasileiro, o Barão do Rio Branco (1845-1912), precisou romper com sua visão de mundo tradicional de inclinação europeísta para de fato forjar uma política afinada com os novos tempos e condizente com nossos interesses nacionais permanentes (2). Ou seja, o deslocamento de foco externo do Brasil, da Europa para os EUA, foi algo construído. 

Recorro a esse evento ocorrido há mais de cem anos, dado que a profundidade das transformações que ocorrem hoje no mundo — políticas, geoeconômicas e tecnológicas — demandam mudanças de rumo e força de decisão na área externa que não encontram paralelo no nosso passado recente. Na passagem do século XIX para o século XX, assistíamos, no plano externo, à emergência de uma nova potência hegemônica e, internamente, conduzíamos tardiamente o país para um novo paradigma produtivo, industrial e assalariado. A política externa de Rio Branco visionariamente refletia o conjunto de anseios e demandas que derivavam dessa dupla transição — de poder internacional e no modo de produção. 

Hoje, um século depois, uma dupla transição, de natureza semelhante, se desenrola a olhos vistos. A China — nova expoente da Quarta Revolução Industrial — emergiu e se consolida como nova superpotência global, numa nova economia que tem as tecnologias digitais nos campos de automação, controle e informação como pilares estruturantes. Nós, no Brasil, de novo tardiamente, buscamos conduzir o país para esse paradigma produtivo da Indústria 4.0. 

Terá o Brasil, nas últimas décadas, desenvolvido política externa condizente com essa nova realidade internacional e tecnológica? Em outras palavras, terá a diplomacia brasileira desenvolvido ação externa que, a exemplo do que aconteceu no começo do século passado, promoveu a inserção internacional do país em sintonia com as evoluções no campo político e tecnológico? 

Certamente não. 

Antecedentes e diagnóstico do que fizemos: uma política externa “insuficiente”

 Começo de frente para trás, da administração atual para as anteriores. Vivemos hoje uma postura política externa que sistematicamente agride a China. Qual seria a lógica de interesse nacional de ofender a superpotência política, geoeconômica e tecnológica emergente, que, ademais disso, é nosso principal parceiro comercial? Tal postura constitui contrassenso óbvio e erro primário de estratégia, além de grotesco em sua forma. O primarismo fica mais evidente quando se registra que a atual política ostensivamente antichinesa é feita de modo personalista, como forma de demonstração de lealdade pessoal (e de subordinação) ao presidente americano, que, como acabamos de ver, não foi reconduzido à Casa Branca. 

Nos governos anteriores — Temer, Dilma, Lula, FHC, Itamar, Collor e Sarney — que mais ou menos coincidem com as décadas de início e florescimento do notável crescimento da China derivado das reformas econômicas da era Deng —, nossa diplomacia atuou de forma correta no relacionamento com o país asiático, dentro dos valores e princípios que norteavam a política externa brasileira. Como pano de fundo para debate, podemos dizer que o diálogo do Brasil com a China e com a Ásia nesse arco temporal que vai de Sarney a Temer foi construtivo, mas insuficiente. Sim, insuficiente no sentido de que não antecipou o deslocamento de poder para a Ásia, de tal forma a gerar ações relevantes, estratégicas e concretas. Também insuficiente no sentido de que o diálogo não alterou substancial e estruturalmente, pela via diplomática bilateral, o curso natural de nossa realidade econômica, social e de desenvolvimento tecnológico. 

Se concordamos com essa tese da insuficiência, cabe indagar qual seria então, no plano da diplomacia geográfica, uma política externa suficiente e adequada para o contexto atual. Critério mais óbvio: a melhor política externa é aquela que alavanca o processo de desenvolvimento econômico e social dos países envolvidos, a partir de processos de trocas que sejam complementares, mutuamente benéficas e sustentáveis no tempo. Qual seria então essa política? 

Hipóteses 

No abstrato, as alternativas não são muitas. No contexto da rivalidade sino-americana que se aprofunda, caberia em primeiro lugar uma escolha simplista “por um dos lados” no contexto de uma suposta nova bipolaridade. Para os que enxergam uma geometria de poder menos bipolar e mais tripolar, a Europa como pilar de poder mundial — fortalecida pelo processo de integração da União Europeia e detentora de economia com grau superior de complementaridade ao Brasil em relação aos EUA — constitui opção de prioridade relacional. 

Aos que entendem o agrupamento Brics como alternativa de coligação viável, uma política calcada no fortalecimento do bloco emerge também como vetor de peso importante. Variante dessa perspectiva seria uma aposta em parceria mais estruturante que priorize fortemente a Índia, país visto por muitos como “a próxima China”, em termos de tamanho de mercado, desempenho econômico e inovação tecnológica. A Rússia, reerguida depois do colapso de 1991, permanece como ator relevante, no plano militar, energético e tecnológico, domínio em que o país se reinventou como potência (3). 

Aos autonomistas, restariam alternativas voltadas para conjunto de políticas que privilegiassem as relações no Sul global ou, ainda, iniciativas de corte sub-regional na América do Sul. E, claro, aos mais indecisos, aqueles adeptos do “somos amigos de todos”, teríamos mesclas difusas desses vetores, que se misturariam com todos os temas importantes da agenda multilateral que, por razão de espaço, serão deixados de lado neste texto: meio ambiente, comércio internacional, não proliferação e desarmamento etc. 

Ao refletirmos mais concretamente, nossas escolhas devem estar condicionadas à realidade interna brasileira — nossas aflições, angústias, limitações, premências e necessidades coletivas cronicamente não atendidas. Do lado positivo, o que temos a oferecer, competitivamente no plano material, como realidade presente e promessa de futuro. 

Num patamar de ainda maior realismo, temos de lembrar do velho ditado: “it takes two to tango”. De nada nos adianta idealizar novas associações e geometrias de poder se, numa parceria imaginada, não pudermos contar com a conjunção de duas vontades. Portanto, encontrar parceiros que nos enxerguem como nação e Estado de valor é condição essencial para qualquer diplomacia estruturante. 

Critérios para uma nova política 

No momento histórico em que nos encontramos, um ponto de partida inevitável para pensarmos nossa ação externa é o risco da irrelevância. Esse Brasil que apresenta há quatro décadas curva de produtividade do trabalho basicamente horizontal, taxas anêmicas de crescimento, baixa contribuição aos processos de inovação, desempenho educacional medíocre, reduzida poupança interna e incapacidade sistêmica de conceber e executar grandes projetos de infraestrutura tende inexoravelmente à insignificância e marginalização sistêmica. 

Diante de um contexto calamitoso como esse, não temos outro remédio que não seja tomar o fator tempo como variável fundamental para as nossas decisões diplomáticas. Em outras palavras, o sentido de urgência deve ser elemento central na construção de nossa política externa. Claro que há um enorme dever de casa no plano doméstico a ser realizado, mas não podemos deixar de perguntar qual política externa que — em prazos mais curtos — pode nos ajudar a sair desse pântano em que nos metemos (4).

 Um segundo fator que deve ser levado em consideração é o estágio tecnológico em que o Brasil se encontra, no contexto da transição de paradigma produtivo pela qual o mundo atravessa. Os núcleos dinâmicos da economia mundial caminham irremissivelmente para um quadro de ubiquidade digital, caracterizado pela constituição de novos ecossistemas nos quais a arquitetura de redes de alta velocidade, robótica, big data, internet das coisas e inteligência artificial dominam as infraestruturas urbanas, o ambiente de trabalho e de convívio social. A realização tardia desse ambiente digital nos condena a atraso ainda maior. Portanto, nossas escolhas devem buscar parcerias que nos alavanquem para um “leapfrog” em direção à Indústria 4.0. 

Entre outros tantos aspectos que merecem ser suscitados, limito-me a sublinhar por fim um terceiro fator importante que deriva da necessidade brasileira urgente por investimentos, notadamente nos segmentos de infraestrutura geral e urbana, das novas indústrias e de energia limpa, que configuram o ambiente virtual e a logística física da nova economia. Como mencionado antes, o Brasil apresenta taxas internas de poupança baixas e declinantes, o que compromete nossa capacidade de inversão, limita o potencial de crescimento e nos coloca numa posição de demanda por investimentos estrangeiros diretos (5). Assim, no esforço de inserção internacional, a capacidade de investimento de potenciais parceiros — notadamente em segmentos de infraestrutura digital e física multimodal, pilares da nova economia — deve ser avaliada como requisito central. 

Cenários plausíveis 

Entre os diferentes cenários delineados acima, destaco dois. Talvez sejam esses que se afiguram mais plausíveis e apresentam maior interesse para nós. Talvez seja possível, nesses dois cenários, que tenhamos chances de buscar, pela via da negociação, com boa dose de pragmatismo e à luz das lições da história, a melhor alternativa de inserção do Brasil no mundo. Talvez seja num desses dois cenários que a configuração de poder mundial possibilite uma inserção internacional do Brasil que efetivamente nos conduza para o ambiente da nova economia. 

Claro, trata-se de exercício de inegável simplificação de realidades complexas. As relações internacionais não se situam no campo das ciências naturais, domínio em que podemos realizar experimentos controlados. Trato aqui de trazer para primeiro plano esses dois caminhos possíveis, deixando em plano secundário diversos outros cenários e variáveis que deliberadamente permanecerão na sombra, para que possamos examinar, explorar e, quem sabe, induzir hipótese específica de inserção do Brasil na ordem internacional que se consolida. 

A opção convencional 

O primeiro cenário conta com o peso da história e a força do determinismo geográfico. Nele, buscaríamos uma aliança com os EUA, em contexto marcado pelo regionalismo crescente e/ou pelo acirramento do confronto sino-americano. Nesse cenário cada vez mais enrijecido pela polarização, os contendores principais admitiriam, tal como na Guerra Fria, que potências médias e secundárias se alinhassem exclusivamente a uma ou outra superpotência. Em tal cenário, caso radicalizado, seríamos instados a participar de bloco regional de natureza política e econômica e a aderir a regimes regulatórios que, de um lado, serviriam para integrar as duas economias (e outras da região) e, de outro, dificultariam e discriminariam, de forma mais ou menos velada, direta ou indireta, o relacionamento econômico/tecnológico/comercial com o polo oposto de poder principal. 

Se adotássemos esse caminho, aceitaríamos tacitamente (decerto de forma mais pragmática e inteligente do que se faz na presente administração) o ressurgimento das duas faces da Doutrina Monroe — hegemônico/ofensiva e paternalista/defensiva —, implícita no seu bordão definidor, “A América para os americanos”. Em certa medida, esse caminho poderia configurar uma resposta das Américas à recente iniciativa do Regional Comprehensive Economic Partnership — a RCEP, que reúne 15 países da Ásia. Num eventual cenário em que a presença americana no regionalismo do Pacífico se enfraqueça, dada a retirada dos EUA da Parceria Transpacífica (TPP), a integração interamericana pode ganhar relevância. 

Vale aqui sublinhar que uma tal opção pró-EUA não guardaria qualquer semelhança com a política próTrump hoje em vigor e agora transformada em cadáver insepulto. Se quisermos manter uma relação forte e produtiva com os EUA, teremos imperativamente, de construir elevado diálogo com a China. A necessidade de competir com os chineses será a única maneira de fazer com que os EUA estendam concessões reais ao Brasil. Se queimamos nossas pontes com a China, como quer o chamado “bolsotrumpismo”, Washington nos tomaria por certos, “for granted”, sem atribuir valor ao nosso peso específico. 

Pesaria em favor dessa escolha (até onde tivermos a capacidade e a possibilidade de escolher nossos caminhos): (i) visões de mundo nos dois países que, apesar de diferentes, são derivadas de uma mesma matriz ocidental judaico-cristã grego-romana, (ii) proximidade geográfica relativa, (iii) parentesco dos idiomas que falamos, ambos de origem indo-europeia e baseados na escrita em alfabeto romano, (iv) volume de comércio substancial, (v) histórico significativo de trocas no plano das sociedades, (vi) “establishment” estadunidense no campo estratégico-militar-tecnológico que enxerga no Brasil, embora de forma não unânime, algum valor geoestratégico no ordenamento mundial, mesmo que secundário, (vii) o valor dos EUA como polo de inovação tecnológico e de produção de conhecimento.

 Em contrário a essas vantagens presumidas, contrapõem-se (a) a baixa taxa de poupança interna que historicamente prevalece nos EUA, o que em tese impossibilita o fluxo de investimento na escala que necessitamos, (b) pauta exportadora frontalmente concorrente, (c) remotas possibilidades de abertura comercial nos EUA que pudesse nos beneficiar, (d) a baixa prioridade tradicionalmente atribuída ao Brasil como parceiro estratégico ou, talvez em outros termos, o papel calibradamente limitado que os americanos conferem ao Brasil (6). 

Outro caminho 

A alternativa seria a construção de parceria estratégica com a China, em patamar de relacionamento diferenciado e sem precedentes. Em desfavor desse cenário, incidiriam fatores críticos como (A) o desconhecimento recíproco que prevalece nas duas sociedades, agravado pela distância históricocultural, linguística, geográfica e político-jurídico-normativa que nos separa; (B) a ausência no Brasil de massa crítica sobre a China no mundo empresarial, acadêmico e na sociedade em geral; (C) a inexistência nos quadros diplomáticos do Itamaraty de um corpo estável e especializado em Ásia em geral e em China em particular, com formação específica em língua, cultura e economia política. A propósito, como indicador desse panorama, basta lembrar que a cada ano cerca de 20 mil estudantes brasileiros ingressam em instituições de ensino dos EUA, enquanto que o fluxo anual estudantil brasileiro na China não passa de dois dígitos (7). 

Entre os fatores favoráveis a parceria com a China vale citar (1) a capacidade política chinesa de mobilização de agentes econômicos na direção de políticas estratégicas (dentro e fora do país), (2) o poder governamental chinês de direcionar investimento externo em setores de infraestrutura, (3) a consolidação da China como polo de inovação e de provimento de soluções tecnológicas de interesse estratégico para o Brasil, (4) taxas elevadas de poupança, (5) a grande e crescente demanda chinesa por produtos de nossa pauta exportadora, notadamente produtos agropecuários, (6) o interesse da China no setor energético brasileiro, (7) a condição de país que mais investe em sustentabilidade, energias renováveis, que incluiu em sua constituição o desafio de se tornar “uma civilização ecológica”. 

Uma nova diplomacia triangular? 

A partir das variáveis acima listadas, e entre tantas outras que o leitor certamente poderá acrescentar, podemos especular livremente sobre qual cenário melhor nos atende. No entanto, de nada nos valerá esse esforço especulativo se não nos lembrarmos que parcela decisiva dessa escolha não se encontra nas nossas mãos. Voltando para o argumento do início do texto, nossa escolha precisa ser construída. Parte considerável das vantagens que podemos auferir em um ou outro cenário deriva do valor que cada um dos potenciais parceiros atribui ao Brasil. E o valor com o qual desejamos ser vistos depende também da capacidade interna de articular nossas vantagens materiais como elementos de negociação com cada um dos interlocutores.

 Não nos adianta deter grande mercado consumidor e riquezas dispersas nos diversos setores da economia se essas vantagens não constituírem uma pauta de negociação articulada pelas forças da sociedade, de mercado e do governo. E tal habilidade não é algo dado; trata-se de ação que depende de uma construção, de uma vontade coletiva que precisa ser ordenada. Nesse sentido, vale lembrar, a negociação diplomática não se limita a negociações no front externo; ela implica, necessariamente, a arregimentação e coordenação de forças internas. A chancelaria brasileira precisa, portanto, se esse for o nosso desígnio, fortalecer competência nesse domínio. 

Na década de 1970, no contexto da confrontação Leste-Oeste, EUA-URSS, Washington vislumbrou o valor estratégico que a China poderia desempenhar no equilíbrio de poder daquela velha ordem bipolar. Iniciava-se ali, sob as lideranças de Mao Tsé-tung (1893-1976) e Richard Nixon (1913-1994), a chamada diplomacia triangular. Pequim distanciava-se de Moscou e alterava assim a geometria de poder da era bipolar, abrindo as portas para cooperação com os Estados Unidos que trouxe consequências profundas para o desenvolvimento econômico da China. 

Tal recuo no tempo nos é útil como referência histórica, dado que a aliança sino-americana, no contexto da antiga rivalidade bipolar EUA x URSS, desencadeia a profunda, complexa e sofisticada interdependência econômico-financeira e comercial bilateral hoje em vigor. Nessa janela de oportunidade, derivada das tensões da Guerra Fria, a China encontra as portas para o seu ingresso na Terceira Revolução Industrial e abre o caminho da prosperidade econômica que conhecemos. 

Tomando esse evento histórico e decisivo, no qual um país continental como a China — que se encontrava em situação de ruína, fome e depauperamento — resgata, em poucas décadas, o seu lugar no Olimpo das grandes potências, cabe nos perguntarmos se, ante o acirramento da confrontação sinoamericana, teríamos também, no jogo de nova diplomacia triangular, condições de possibilidade para construir parceria internacional que alavanque nosso processo de desenvolvimento, acelerando a transição do Brasil para o ambiente da Indústria 4.0. 

Como sabemos, a fórmula do extraordinário caminho da China envolveu cinco ingredientes principais. Relaciono-os abaixo como marco de referência para a construção de possível “entente” com o mesmo nível de alcance e profundidade.

 Primeiro: um conjunto de decisões estratégicas de alto nível. No caso da reaproximação EUA-China, as iniciativas foram corroboradas pelos encontros secretos entre Henry Kissinger e Zhou Enlai (1898-1976), seguidos pelas conversações Nixon-Mao no início dos anos 1970 e a adoção, na sequência, da política de portas abertas por Deng Xiaoping (1904-1997) em 1978 (8). 

À luz dessas decisões de alto nível, o segundo ingrediente da trajetória chinesa é representado pela capacidade notável da China de assegurar ambiente propício para a realização de investimentos maciços e de atividades de transferência tecnológica dos EUA, demais países do Ocidente e do Japão (9). 

Terceiro: a existência na China de fatores competitivos que eram interessantes para os EUA — enorme força de trabalho e imenso mercado consumidor. 

Em mesmo nível de importância dos anteriores, o quarto ingrediente é dado pelo incentivo sistêmico aos EUA para a reaproximação com a China, que apontava para um reequilíbrio de forças em favor de Washington no contexto da rivalidade da Guerra Fria. Dado o seu peso específico, a China passava a ser vista pelos EUA como “the Chinese card”, ator capaz de alterar fundamentalmente a geometria do poder mundial. 

E, finalmente, constitui o quinto ingrediente a consciência, junto à elite dirigente da RPC, de que a aproximação aos EUA não deveria implicar qualquer forma de exclusivismo ou de subordinação política, consciência essa que conferiu à China ampla liberdade de ação junto a diversos outros países. 

Em termos muito simplificados, esses foram os elementos do salto da China para a Terceira Revolução Industrial, processo que veio como enorme benefício mútuo para a China e os EUA — e também para o sistema internacional. 

Conclusão 

Seria plausível imaginar que o Brasil poderia tornar-se vértice de uma nova diplomacia triangular no contexto da confrontação sino-americana em curso? Poderíamos ser alçados à condição de “carta brasileira”, como ator fundamental no tabuleiro da confrontação China-EUA? Hipótese central deste texto, esta será talvez a nossa única chance de construirmos uma “grand strategy” na cena internacional que nos apoie estruturalmente no plano doméstico, em escala de transformação semelhante à que a China experimentou nas últimas quatro décadas. Mas a construção de parceria dessa envergadura envolvendo o Brasil — que fosse capaz a um só tempo de nos ajustar de forma altiva à geometria de poder mundial e alavancar a transição tecnológica de país com nossa dimensão territorial e populacional — encontra dois obstáculos. 

Em primeiro lugar, tomando de empréstimo uma clássica expressão “schopenhaueriana”, não há no Brasil, uma “vontade e representação” coletiva de um mundo que desejamos alcançar. Falta-nos, por razões que não cabem neste texto, uma visão e um desígnio, um destino manifesto. Carecemos não só de uma política externa, mas também de condições internas — no Estado e na sociedade — que constituiriam o substrato para sua implementação no âmbito internacional. Ambas precisam ainda ser construídas. Os componentes materiais para a construção estão presentes: somos uma superpotência agrícola, superpotência ambiental, superpotência energética e um mercado consumidor de 220 milhões de pessoas, 87% das quais habitantes de espaços urbanos, campos abertos para a experimentação e a construção da ubiquidade digital da nova economia. Falta-nos, talvez, “simplesmente”, a determinação coletiva, política, uma visão estratégica de fazer desse patrimônio um ativo interno que nos articule com força na ordem internacional. 

Em segundo lugar, neste cenário bipolar, nem os EUA nem a China, até o momento, enxergam qualquer valor estratégico que o Brasil possa apresentar como parceiro sério e confiável, com potencial de alavancagem de interesses geopolíticos e geoeconômicos. Certamente por nossa própria culpa, pela falta de compromisso coletivo transformador, pela mesquinhez e pela ausência de massa crítica e iluminada em nossa elite, pelo baixo nível educacional da população em geral, fomos incapazes de articular ativos que, na ausência de uma vontade coletiva, atendem exclusivamente interesses particularistas situados à margem da sociedade e dos governos. 

Caminhando para o fim, volto a sublinhar que esses dois cenários são aqui tomados como principais, tanto por uma questão metodológica quanto pela inconfessável angústia do autor, que de alguma forma busca enxergar na complexa dinâmica internacional alguma clareza que nos abrisse a oportunidade, em horizonte temporal mais próximo, de enfrentar, com o apoio da diplomacia, as tantas mazelas sociais que nos cercam e o nosso subdesempenho econômico. Evidentemente, as tais hipóteses não são excludentes de outros arranjos que a dinâmica internacional venha nos propiciar em prazos eventualmente mais longos. 

A cautela sempre dirá que, mesmo diante de reflexões que nos apontem para cenários mais circunscritos, a ação diplomática deve sempre se pautar por política externa de arquitetura aberta, pragmática e ecumênica, tendo como fundamento os interesses nacionais permanentes. Por exemplo, a Índia já é hoje a terceira maior economia do mundo pelo critério de paridade de compra e certamente poderia ser objeto de parceria estratégica para o Brasil, conforme indicado anteriormente, em função da promessa que representa no plano do desenvolvimento econômico e tecnológico, além de seu imenso e crescente mercado consumidor. O Japão, país com que manteve relação migratória importante e que no passado foi relevante financiador de projetos de infraestrutura brasileiro, poderia resgatar com vigor o seu interesse pelo país. Da mesma forma, não podemos esquecer Euclides da Cunha (1866-1909), para quem a geografia pré-configura a história. Nesse quadro, não poderemos abrir mão das nossas possibilidades de articulação de arranjo político na América do Sul e na África Ocidental, regiões que perfazem uma população de mais de 1 bilhão de pessoas. 

Mas ao mesmo tempo não podemos descurar da hipótese de que, em função do nosso peso específico e das atratividades nos domínios acima citados (agropecuária, bioeconomia, energético e infraestrutura urbana), possamos construir uma alta estratégia, com dinâmica favorável aos nossos interesses, a partir de nova diplomacia triangular derivada, desta feita, da rivalidade entre China e EUA. 

O que fazer? Que expectativa realista podemos ter? No plano externo, cabe a nós, sistematicamente, sondar e provocar pelos canais institucionais, em Washington e em Pequim, as condições de possibilidade para a construção da parceria que melhor nos atenda no desafio de encontrar com urgência, a partir de salto tecnológico, o nosso caminho de prosperidade e equidade. Com habilidade, devemos seguir uma coreografia inteligente, navegando entre as duas potências, sem jamais nos aproximarmos ou distanciarmos excessivamente de um e de outro potencial parceiro, ao menos num primeiro momento, até que uma fórmula mais profunda de enlaçamento e intercâmbio reais sejam vislumbrados (10). 

Entre as possibilidades indicadas, minha preferência analítica pessoal transpira nos parágrafos acima. Mas os contornos de parcerias de tal estatura não podem ser derivados apenas de uma vontade analítico-especulativa. Dependem, sobretudo, de trabalho e articulação político-diplomática que, tristemente, estão ausentes em nosso horizonte. Se nenhuma delas for viável agora, que ao menos sejamos capazes de, internamente, construir as condições de contorno para um futuro melhor. Como nos lembra Rubens Ricupero, referência sempre central do pensamento brasileiro, não há exemplo histórico de país que tenha se desenvolvido apenas ou principalmente por meio da política externa. Esta, por mais brilhante que seja, é sempre necessariamente ancilar. O impulso decisivo tem sempre de vir de dentro. 


Philip Yang é fundador do Instituto Urbem e Senior Fellow do Cebri - Centro Brasileiro de Relações Internacionais 

P.S. No contexto pós-Trump, marcado pela exacerbada animosidade entre Biden e Bolsonaro, podemos assistir a uma inflexão dada pelas indicações de aproximação pessoal do atual presidente brasileiro ao presidente Putin. Tal movimento apresenta potencial de provocar importantes implicações na nossa política externa e introduzir complexidade ainda maior. Cabe lembrar que o atual sistema russo não é nem socialista nem capitalista, apresenta visão militarista e forte presença do Estado, tanto ao gosto do dirigente brasileiro. Nesse cenário, a Índia, sob o populismo nacionalista e conservador de Modi, também entraria como saída para minimizar o isolamento do Brasil, que hoje se confronta de maneira veemente tanto com os EUA quanto com a China. Não teríamos mais os Brics, mas sim o RIB, criando uma nova costela nas relações internacionais. 

1. À época, a chancelaria brasileira encontrava-se em período formativo como órgão de Estado. A mudança de orientação da política externa foi concebida e implementada pelo Barão do Rio Branco, com apoio de Joaquim Nabuco (1849-1910) e Rui Barbosa (1849-1923). 

2. Vale resgatar a contribuição de Joaquim Nabuco para a mudança do centro de gravidade da política externa brasileira no texto de Leslie Bethell, intitulado “Nabuco e o Brasil entre Europa, EUA e América Latina” (Novos Estudos - Cebrap nº 88 São Paulo Dec. 2010) 

3. Tal tendência precisa sempre ser examinada à luz das perspectivas de crescimento econômico do país, que não se mostram exatamente alvissareiras, dado o seu elevado grau de dependência ao petróleo. 

4. O sentido de urgência se agrava quando lembramos que a janela do nosso bônus demográfico se fecha. Não há registro na história de casos de desenvolvimento econômico após o término dessa transição. 

5. Claro que eventual flexibilização do teto de gastos para aumento de investimento e a utilização de ferramentas de política monetária como os mecanismos de “quantitative easing” poderiam reduzir dependência a investimentos externos, mas dada a escala da demanda infraestrutural brasileira parece certo afirmar que a entrada de investimentos estrangeiros será sempre fator importante para a retomada do crescimento. 

6. A esse respeito vale a leitura do livro “The Americanization of Brazil: A Study of U.S. Cold War Diplomacy in the Third World, 1945-1954”, de Gerald K. Haines. 

7. Temos fundações privadas dedicadas ao envio de estudantes brasileiros a instituições de ensino nos EUA e à Europa, mas nenhuma homóloga voltada para universidades da China ou Cingapura, por exemplo. 

8. O arco da aproximação sino-americana se inicia com a chamada Diplomacia do Ping Pong, em abril de 1971 e culmina com o reconhecimento formal da RPC pelos EUA em 1979. 

9. O livro “Unlikely Partners – Chinese Reformers, Western Economists, and the Making of Global China”, de Julian Gewirtz, retrata a construção do pensamento econômico chinês e a formação doutrinária do “socialismo de mercado”. 

10. Os mecanismos da diplomacia pendular não são desconhecidos da tradição diplomática brasileira. Durante o período Vargas, o Brasil foi cortejado pelos aliados e pela potências do Eixo e soube extrair dessa concorrência o financiamento para a construção da Companhia Siderúrgica Nacional. 

Esse artigo foi publicado originalmente em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/12/04/philipyang-por-uma-nova-politica-externa.ghtml

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O "buraco negro" fiscal do Brasil em 2021 (ou já está ocorrendo) - Os números, por Ricardo Bergamini

 Ricardo Bergamini é um crítico IMPLACÁVEL da má condução da política econômica no Brasil, e eu me permito sublinhar tanto implacável quanto má política econômica, pois é disso que se trata.

Praticamente todas as crises brasileiras, mesmo aquelas causadas por indução externa (petróleo, dívida externa, estrangulamento cambial) foram causadas por má condução da política econômica, mesmo quando têm essa causa externa mais profunda, pois uma boa condução de seus principais vetores – fiscal, monetário, cambial, setoriais – não teria deixado os problemas se acumularem até o estrangulamento final.

A frase de Keynes é muito espirituosa, mas não serve de ajuda, pois o longo prazo um dia chega, e em algum momento seremos alcançados por ele. Aliás, Keynes é responsável por muitos dos problemas de MÁ CONDUÇÃO da política econômica, pois vivia insistindo em esticar a corda do emissionismo, do endividamento público, da inflação, do estímulo ao consumo, supostamente para incitar os "espíritos animais" dos capitalistas. Ele adorava frases de efeito, mas tem erros muito graves.

No caso do Brasil, não tenho nenhuma hesitação em já apontar que estamos caminhando para, se já não estamos num "buraco negro" fiscal, que está se formando agora, e que deverá nos tragar em 2021, se o Congresso não colocar em ordem as contas públicas. Digo o Congresso, pois já não confio na capacidade do Executivo de operar os ajustes necessários. 

Mas, como parlamentar adora gastar, não tenho muita confiança em que o dever de casa seja feito. Daí a minha antecipação: estamos indo para um buraco negro.

Paulo Roberto de Almeida


"No longo prazo estamos todos mortos" (John Maynard Keynes).

Prezados Senhores

No acumulado em doze meses até dezembro de 2018, registrou-se déficit fiscal  primário de R$ 108,3 bilhões (1,57% do PIB), No acumulado em doze meses até  outubro de 2020 registrou-se déficit fiscal primário da ordem de R$ 661,8 bilhões (9,13% do PIB). Aumento real em relação ao PIB de 481,53%, comparativamente ao acumulado em doze meses até dezembro de 2018. 

No acumulado em doze meses até dezembro de 2018, os juros nominais alcançaram R$ 379,2 bilhões (5,52% do PIB). No acumulado em doze meses até outubro de 2020 os juros nominais alcançaram R$ 349,2 bilhões (4,82% do PIB). Redução real em relação ao PIB de 12,68%, comparativamente ao acumulado em doze meses até dezembro de 2018.

No acumulado em doze meses até dezembro de 2018, o déficit fiscal nominal
alcançou R$ 487,5 bilhões (7,09% do PIB). No acumulado em doze meses até outubro de 2020 o déficit fiscal nominal alcançou R$ 1.011,0 bilhões (13,95% do PIB). Aumento real em relação ao PIB de 96,75%, comparativamente ao
acumulado em doze meses até dezembro de 2018.

Estatísticas Fiscais - Fonte BCB
Base: Outubro de 2020

1. Resultados fiscais

O setor público consolidado registrou superávit primário de R$ 3,0 bilhões em outubro. No Governo Central houve déficit de R$ 3,2 bilhões, e nos governos regionais e nas empresas estatais, superávits, na ordem, de R$ 5,2 bilhões e de R$ 998,0 milhões. No ano, até outubro, o déficit primário acumulado do setor público consolidado atingiu R$ 633,0 bilhões, ante déficit de R$ 33,0 bilhões no mesmo período de 2019. No acumulado em doze meses, o déficit primário atingiu R$ 661,8 bilhões (9,13% do PIB).

Os juros nominais do setor público consolidado, apropriados por competência, somaram R$ 33,9 bilhões em outubro, comparativamente a R$ 20,3 bilhões no mesmo mês de 2019, elevação influenciada pela evolução desfavorável do resultado das operações de swap cambial (perda de R$ 7,0 bilhões em outubro de 2020, ante ganho de R$ 7,7 bilhões em outubro de 2019). Nos últimos doze meses, os juros nominais atingiram R$ 349,2 bilhões (4,82% do PIB), comparativamente a R$ 366,5 bilhões (5,10% do PIB) no acumulado até outubro do ano anterior.

O resultado nominal do setor público consolidado, que inclui o resultado
primário e os juros nominais apropriados, foi deficitário em R$ 30,9 bilhões
em outubro. No acumulado em doze meses, o déficit nominal alcançou R$
1.011,0 bilhões (13,95% do PIB), elevando-se 0,22 p.p. do PIB em relação ao
déficit acumulado até setembro.

2. Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) e Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG)

A DLSP alcançou R$ 4.435,6 bilhões (61,2% do PIB) em outubro, reduzindo-se de 0,2 p.p. do PIB em relação ao mês anterior. Esse resultado refletiu, sobretudo, os impactos da desvalorização cambial de 2,3% (redução de 0,5 p.p.), do efeito da variação do PIB nominal (redução de 0,2 p.p.) e dos juros nominais apropriados (aumento de 0,5 p.p.). No ano, a relação DLSP/PIB elevou-se 5,5 p.p., evolução decorrente, em especial, do déficit primário acumulado (aumento de 8,7 p.p.), dos juros nominais apropriados (aumento de 4,0 p.p.), do efeito da desvalorização cambial acumulada de 43,2% (redução de 6,5 p.p.), e do ajuste da paridade da cesta de moedas da dívida externa líquida (redução de 0,7 p.p.).

A DBGG - que compreende Governo Federal, INSS e governos estaduais e municipais - alcançou R$ 6.574,7 bilhões em outubro, equivalente a 90,7% do PIB, aumento de 0,2 p.p. do PIB em relação ao mês anterior. Essa evolução decorreu principalmente da incorporação de juros nominais (aumento de 0,5 p.p.), do efeito da desvalorização cambial (aumento de 0,2 p.p.), e do efeito da variação do PIB nominal (redução de 0,4 p.p.). No ano, o aumento de 15,0 p.p. na relação DBGG/PIB resultou, em especial, das emissões líquidas de dívida (aumento de 9,0 p.p.), da incorporação de juros nominais
(aumento de 3,8 p.p.), e da desvalorização cambial acumulada (aumento de 2,1 p.p.).

Arquivos oficiais do governo estão disponíveis aos leitores.
Ricardo Bergamini

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Clima e Segurança no Brasil - International Military Council on Climate and Security (Novembro 2020)

 

Trechos do relatório: 

 

CLIMA E SEGURANÇA NO BRASIL

PARTE DA SÉRIE “WORLD CLIMATE AND SECURITY REPORT 2020”

Um Produto do Grupo de Especialistas do INTERNATIONAL MILITARY COUNCIL ON CLIMATE AND SECURITY (Novembro de 2020)

https://imccs.org/wp-content/uploads/2020/11/CLIMA-E-SEGURANCA-NO-BRASIL.pdf

 

Este relatório deve ser citado como: “Climate and Security in Brazil.” Produto da Expert Group of the International Military Council on Climate and SecurityAutores: Oliver-Leighton Barrett (CCS), Andrea Rezzonico (CCS), Vanessa Pinney (CCS), e Francesco Femia (CCS). Editado por Francesco Femia e Shiloh Fetzek. Publicado pela Center for Climate and Security, um instituto do Council on Strategic Risks. Novembro 2020. 

© 2020 The Center for Climate and Security (CCS), um instituto do The Council on Strategic Risks 

 

(…)

 

A Política Nacional de Defesa e Estratégia Nacional de Defesa de 2020 reconhece que os impactos causados pelas mudanças climáticas podem ter sérias consequências “sociais, econômicas e políticas”, exigindo “pronta resposta do Estado.”94 No entanto, esta apreciação ainda não informa totalmente os processos de planejamento estratégico, inclusive como as mudanças climáticas afetarão o planejamento das missões, a prontidão militar e a operacionalidade.95

Além disso, todas as implicações do reconhecimento da ameaça que as mudanças climáticas representam para a segurança interna do Brasil não foram refletidas na tomada de decisões em outras áreas do governo, particularmente em torno do uso da terra, desenvolvimento econômico e proteção do patrimônio nacional mais importante do Brasil, a Floresta Amazônica. 

Entre 2005 e 2010, o Brasil esteve perto de cumprir todas as suas metas de desmatamento 10 anos antes do previsto. Essa conquista resultou em uma redução nas emissões de carbono comparável às reduções da União Europeia e dos Estados Unidos. No entanto, esta posição de liderança na mitigação das mudanças climáticas está em risco devido às recentes decisões tomadas pela atual administração.96

O Brasil continua signatário do Acordo Climático de Paris, mas o governo Bolsonaro irritou os estados que subscrevem grande parte dos esforços de contra-desmatamento da América do Sul, devido a um aumento acentuado no desmatamento. Isso pode ter repercussões para os interesses estratégicos do Brasil em avançar como potência média. 

Com relação à sua campanha de contra-desmatamento, o Governo brasileiro está trabalhando com objetivos cruzados: direcionar os militares participar no que deveria ser uma ação civil, criando ativamente ao mesmo tempo, um ambiente legal e regulatório permissivo que cria impunidade e incentiva atores ilícitos que estão prejudicando irreversivelmente a Floresta Tropical. Essa ação concomitante de agravar o problema e de dificultar a solução aumentou significativamente as taxas de desmatamento. 

Há um papel importante para os militares nas campanhas de proteção ambiental e no apoio às agências civis. No entanto, é melhor deixar a liderança dos esforços de contra-desmatamento para as agências autorizadas pela legislatura e treinadas especificamente para essas missões, até porque são mais eficazes nisso. O governo brasileiro deve melhor equipar, equipar e financiar as entidades mais responsáveis pelo combate aos crimes ambientais, para que essas agências possam voltar a liderar a campanha, continuando a ter os militares num valioso papel de apoio.

A Política Nacional de Defesa e Estratégia Nacional de Defesa de 2020 reconhecem que as mudanças climáticas têm “consequências ambientais, sociais, econômicas e políticas, exigindo que o Estado responda prontamente,97 um reconhecimento de que as mudanças climáticas terão consequências em vários domínios. Dados os riscos para a segurança pública do Brasil e o papel da Floresta Amazônica no sistema climático global, é do interesse brasileiro conter o desmatamento e, ao mesmo tempo, abordar outras consequências ambientais, sociais, econômicas e políticas das mudanças climáticas para sua a segurança. Também é fundamental que o governo revigore totalmente os departamentos e agências tradicionalmente responsáveis pela campanha anti-desmatamento do país (por exemplo, IBAMA). Essas ações seriam um passo importante para restabelecer o controle do desmatamento ilegal e outros crimes para os quais o desmatamento é um passo fundamental. 

Antes do Presidente Bolsonaro, sucessivos governos apoiaram uma agenda global de redução de emissões, incluindo a adesão aos compromissos do Brasil com o Acordo de Paris sobre o Clima. Embora o presidente Bolsonaro tenha ameaçado deixar o acordo durante sua campanha presidencial, o Brasil continua signatário do marco do pacto climático global. No entanto, por causa da condição atual dos esforços de contra-desmatamento do Brasil, as metas estabelecidas pelos governos anteriores para o país provavelmente serão perdidas. Esses compromissos incluem uma meta de desmatamento ilegal zero na Amazônia até 2030 e um compromisso para 2020 de reduzir as taxas de desmatamento em 80% entre os níveis de 1996-2005.98 

A estratégia contra-desmatamento incluiu restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de florestas; e fortalecer o cumprimento do Código Florestal nos níveis federal, estadual e municipal.99 Mais importante, a estratégia incluiu o fortalecimento de leis e políticas para atingir o desmatamento ilegal zero na Amazônia brasileira até 2030 e a restauração e reflorestamento de 12 milhões de hectares de florestas até 2030.100 Estudos sugerem que o esforço para atingir essas metas ficará aquém, uma vez que o desmatamento está aumentando.

 

Decisões recentes do governo Bolsonaro vão contra o legado do Brasil de planejamento e disciplina no que diz respeito à custódia ambiental, energia renovável e cortes de emissão de carbono. Em 2019, como parte de um amplo congelamento de gastos, o governo Bolsonaro cortou orçamentos que financiam programas de proteção ambiental, ao mesmo tempo em que cortou fundos para o Plano Nacional de Mudança Climática do Brasil em mais de quarenta por cento.102 Na esteira do retrocesso nas políticas de combate ao desmatamento e fiscalização, as Nações Unidas observaram que o louvável histórico do Brasil pós-2004 na redução da destruição e emissões florestais “parou” em algumas regiões e os aumentos de emissões resultantes aceleraram recentemente “com a estação seca de 2019 quebrando recordes de desmatamento e incêndios florestais.”103

Para sinalizar que levou a sério a questão do desmatamento, em setembro de 2019, depois que incêndios destruíram mais de 7.604 quilômetros quadrados (2.970 milhas quadradas) da Floresta Tropical brasileira (representando um aumento de 85% em relação ao mesmo período do ano anterior), o Brasil e seis de seus vizinhos mais próximos (Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru e Suriname) assinaram um pacto estabelecendo uma rede de resposta a desastres de incêndios florestais e serviço de monitoramento por satélite para aumentar a consciência situacional de incêndios florestais em toda a bacia. De acordo com o presidente colombiano Iván Duque, que sediou a cúpula de Letícia que tratou desses temas, “esta reunião viverá como um mecanismo de coordenação para os presidentes que compartilham esse tesouro – a Amazônia."104

No mesmo mês, os EUA e o Brasil concordaram em promover o desenvolvimento do setor privado na Amazônia, um fundo de conservação da biodiversidade de US $ 100 milhões para a Amazônia liderado pelo setor privado.105 Na época, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Ernesto Araújo, disse que “abrir a floresta para o desenvolvimento econômico era a única forma de protegê-la”. Grupos ambientalistas criticaram este plano, alegando que o acordo é um esquema para explorar a Amazônia para mineração, extração de madeira e exploração agrícola, e que viola a autodeterminação dos povos indígenas que residem na Amazônia.106

Além de aberturas diplomáticas e pactos de desenvolvimento do setor privado, os esforços do Brasil para conter o desmatamento incluem cada vez mais a força e o alcance de seus 300 mil militares, o maior efetivo da região. O Exército, a Marinha e a Força Aérea combatem regularmente as atividades extrativas ilegais (exploração madeireira, mineração etc.) em todo o Brasil, em parceria com órgãos civis.107 Um exemplo relativamente novo dessa cooperação é o Projeto Patrulha da Amazônia, uma operação multinacional que visa posicionar as marinhas participantes para proteger as florestas, por meio do intercâmbio de tecnologia militar e colaboração.108 A característica definidora deste acordo transnacional será a construção de um navio projetado para patrulhar as hidrovias amazônicas compartilhadas do Brasil, Colômbia e Peru contra traficantes de drogas e outras ameaças criminosas.109 

Mais notavelmente, em 2019, a administração Bolsonaro lançou várias campanhas de defesa ambiental de alta visibilidade e dependentes de militares110 — embora, somente após considerável pressão nacional e internacional – para achatar a curva de desmatamento.111 No entanto, esses esforços contínuos estão falhando em atingir a redução desejada em incêndios ilegais e desmatamento, em grande parte devido a políticas e estruturas legislativas sem apoio, agências ambientais deliberadamente enfraquecidas e a retórica contraproducente do presidente, que os críticos argumentam apenas encoraja o desmatamento112 e outras atividades ilegais.

DESMATAMENTO: UM GOVERNO TRABALHANDO COM OBJETIVOS OPOSTOS 

O governo Bolsonaro está trabalhando com objetivos opostos em sua atual resposta ao desmatamento, tanto direcionando os militares para liderar o que seria mais eficaz com uma ação civil, mas também criando ativamente um ambiente legal e regulatório permissivo que apenas cria impunidade e incentiva os atores ilícitos. Este agravamento do problema concomitante ao impedimento de solução é prejudicial aos compromissos do Brasil para conter o desmatamento (de acordo com seus compromissos do NDC113) e resultará em um ambiente muito mais permissivo para os infratores. Isso, por sua vez, pode ter repercussões para os interesses estratégicos do Brasil em avançar como potência média. 

O enfraquecimento de organizações de fiscalização como o IBAMA e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, ambos vinculados ao Ministério do Meio Ambiente, tem causado grande aborrecimento entre os atores da sociedade civil e outras entidades comprometidas com a conservação da Amazônia.114 Críticos temem que outras proteções, como Código Florestal, Lei de Terras Indígenas, Lei de Licenças Ambientais e Medidas de Destinação de Terras Públicas sejam as próximas na fila a serem desmanteladas.115 

A redução do número de escritórios regionais que administram as 334 unidades de conservação do país de onze para cinco é outro exemplo da desconfiança do governo Bolsonaro em relação aos especialistas ambientais ou um esforço intencional para descarrilar os mecanismos contra-desmatamento e de conservação de longa data do país.116 Um relatório recente constatou que “nenhum grande ataque contra atividades ilegais por parte dos militares foi realizado” e que a pena emitida por violações ambientais foi reduzida em quase 50% em relação às multas de 2016.117 O efeito final de mudanças drásticas nas instituições e processos mais responsáveis pela campanha de contra-desmatamento do Brasil é criar um caminho aberto para o desmatamento ilegal e outros crimes. 

Para avaliar mais plenamente a extensão do recente retrocesso nas proteções florestais, considere que em 2000, o Brasil estabeleceu a maior rede mundial de áreas protegidas, a maioria das quais estavam localizadas na região amazônica. Entre 2004 e 2012, o Brasil reduziu as taxas de desmatamento na Amazônia em mais de dois terços, ao mesmo tempo em que voltou a crescer muitos milhões de hectares de florestas que haviam sido derrubadas anteriormente.118 Esta campanha incluiu melhores colaborações internacionais, monitoramento por satélite, aplicação da lei e incentivos financeiros para respeitar as leis ambientais. 

Além disso, o Ministério da Defesa utilizou tecnologia do Centro de Operações e Gestão do Sistema de Proteção da Amazônia (CENSIPAM), que possui três núcleos regionais em Manaus, Belém e Porto Velho, para identificar focos de incêndios e apreender os responsáveis pelo desmatamento ilegal.119 Durante este período, a Pan-Amazônia também recebeu proteções substanciais de várias iniciativas de conservação europeias, incluindo os projetos de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD +) sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), e compensações baseadas no desempenho da Noruega para reduzir o desmatamento, que contribuiu com mais de $ 1 bilhão de dólares entre 2008 e 2017.120

No entanto, no final de 2019, os benfeitores do fundo, Alemanha e Noruega, ameaçaram suspender o programa por causa de políticas aprovadas pelo presidente Bolsonaro, que segundo a unidade do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (INPE), levaram à destruição de 9.762 quadrados quilômetros (3.769 milhas quadradas) de floresta antiga, aproximadamente uma área do tamanho da Ilha Grande do Havaí.121

Esses desenvolvimentos tiveram consequências diplomáticas e econômicas para o Brasil e colocam em risco não apenas a porção brasileira do bioma Amazônico, mas também a dinâmica climática regional e global. No auge da crise de 2019, o presidente Bolsonaro enfrentou duras críticas domésticas e internacionais por essas políticas. Para acalmar seus críticos (e também para garantir que bilhões em financiamento para os esforços de desmatamento continuem a fluir para o Brasil de doadores internacionais), o presidente Bolsonaro encarregou os militares de liderar a campanha nacional de contra-desmatamento. No entanto, apesar dos melhores esforços dos militares, essa estratégia não reduziu efetivamente a taxa de desmatamento e suscitou sérias preocupações sobre o papel desproporcional que os militares assumiram nos esforços de preservação da floresta. 

 

CONTRA-DESMATAMENTO COMANDADO POR MILITARES: MENOS EFETIVO 

O trabalho militar brasileiro em conjunto com agências civis de aplicação da lei ambiental não é novidade. No passado, organizações militares e policiais participaram de operações de contra-desmatamento em todo o Brasil em conjunto com autoridades ambientais como o IBAMA e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). No governo do presidente Bolsonaro, os papéis parecem ter se invertido, com o pessoal militar liderando essas operações. O número crescente de militares ativos e reservistas designados não apenas para órgãos ambientais, mas para cargos-chave em todo o governo federal, levantou preocupações em alguns círculos desde que Bolsonaro assumiu a presidência no início de 2019.122 

Críticos apontam que o número de militares nomeados para cargos importantes do governo superou a proporção militar/civil que existia durante a ditadura militar brasileira (1964-1985).123 Uma preocupação é que o pessoal militar pode não ter as credenciais (ou seja, experiência, educação ou habilidades técnicas) para ocupar cargos dentro das organizações responsáveis pelo planejamento e gestão das operações de contra-desmatamento.

Outras preocupações dizem respeito à transparência que pode ser perdida se uma instituição que, por sua natureza é insular, realiza uma campanha que exige o compartilhamento sustentado de informações com partes interessadas externas, especialmente porque as tendências de desmatamento no Brasil são de interesse global.124 Embora haja um papel para a participação dos militares nas campanhas de proteção ambiental, é melhor deixar a liderança da campanha de contra-desmatamento no Brasil a cargo dos departamentos e agências autorizadas pela legislatura e treinadas para tais missões. 

No entanto, a administração Bolsonaro não foi influenciada por essas preocupações. No final de 2019, o presidente Bolsonaro anunciou a criação de um Conselho da Amazônia, presidido pelo vice-presidente Hamilton Mourão, General da reserva do Exército. O Conselho atualmente supervisiona “as 33 www.imccs.org 

atividades de todos os ministérios envolvidos na proteção, defesa e desenvolvimento, e desenvolvimento sustentável da Amazônia.”125 A criação desse Conselho, liderado pelo vice-presidente, demonstrou que o governo Bolsonaro julgou necessário sinalizar para os cidadãos brasileiros, e para o mundo, que levava o desmatamento a sério e que cuidaria da questão em seu próprio caminho.

Também demonstrou o favorecimento do presidente e a confiança nos militares. Em fevereiro de 2020, havia sete militares da ativa ou militares da reserva no gabinete de 20 membros, sem incluir o vice-presidente Mourão. O fato de o presidente ter escolhido seu vice-presidente para liderar a campanha altamente visível contra-desmatamento do país sinalizou que ele tinha fé na liderança militar para conter o aumento do desmatamento. Em maio de 2020, o presidente aprovou a Operação Verde Brasil 2, uma continuação da campanha do final de 2019 com o mesmo nome.126 

O último desdobramento da operação contou com mais de 3.800 militares e com a Polícia Federal, IBAMA, ICMBio e secretarias estaduais de meio ambiente. O trabalho interagências realizou “fiscalizações e apreensões em madeireiras, serrarias e minas em cinco estados, incluindo o estado do Pará, região com maiores taxas de desmatamento.”127 No início de junho de 2020, a Operação Verde Brasil 2 apreendeu 2.811 metros cúbicos de madeira, 46 tratores, 43 caminhões e 16 embarcações e aplicou um valor total de 66.000.000 milhões de reais (ou aproximadamente $ 11.800.000 USD) em multas ambientais.128 

A campanha contra o desmatamento foi estendida até 15 de julho de 2020 e, devido a um aumento nos incêndios florestais, o vice-presidente Mourão sugeriu que a operação pode ser repetida várias vezes. Embora a incerteza permaneça sobre por quanto tempo esse General da reserva estará liderando o esforço de contra-desmatamento, está claro que mesmo depois de duas operações altamente visíveis e bem financiadas de um esforço militar de fato liderado, os números do desmatamento em 2020 na região do Pantanal (a maior área úmida tropical do mundo) ultrapassaram os números de 2019 em quase 30%, e a região experimentou um aumento de 192% nas queimadas. A tendência é ainda mais alarmante porque em 2019 o Pantanal teve um aumento de seis vezes nos incêndios ao longo do ano.129 

De forma mais ampla, julho de 2020 registrou um aumento de 30% em incêndios em comparação com o mesmo mês de 2019. Como uma indicação adicional, os incêndios aumentaram quase 80% em terras indígenas e 50% em reservas naturais protegidas em comparação com o mesmo mês do ano anterior. Essas tendências são um claro indicador de que muitos esforços e ações são necessários para recuperar o controle das queimadas ilegais e do desmatamento.130 O fato dos militares brasileiros serem a face da campanha contra-desmatamento de maior risco do mundo apresenta um paradoxo interessante. Por um lado, é percebido nacional e internacionalmente como líder do esforço de contra-desmatamento, mas, por outro lado, sua incapacidade de conter o desmatamento ilegal cria uma percepção de que não está à altura da tarefa.

 

FORÇAS ARMADAS: UMA FERRAMENTA AFIADA, MAS NÃO A PRINCIPAL 

É de se esperar que governos com recursos cada vez mais limitados possam recorrer a seus militares para apoiar funções domésticas não relacionadas ao combate, como a resposta a desastres naturais. No entanto, o fato de os militares brasileiros assumirem múltiplas e cada vez mais domésticas operações de Garantia da Lei e da Ordem (incluindo conservação florestal e policiamento), em uma sociedade com uma história recente de tomada de controle extra-democrática, é perturbador para muitos brasileiros. 

No contexto do desafio do desmatamento do país, as Forças Armadas brasileiras são um componente da promoção do Estado de Direito e da presença do Estado, mas não se pode esperar que resolvam o que é em grande parte um desafio legal, político e de policiamento civil. O próprio vice-presidente Mourão expressou reservas sobre os militares terem um papel tão importante na campanha de contra-desmatamento do país, especialmente na ausência de uma legislação de apoio, explicando em um comunicado de imprensa de 25 de maio de 2020 que embora os “produtos do desmatamento e os meios que o permitem possam ser capturados”, esta abordagem “tem eficácia limitada se não for possível identificar os infratores.” 

O vice-presidente também expressou frustração com o que descreveu como “a falta de recursos operacionais e humanos dos órgãos de fiscalização ambiental” para lidar com o desmatamento – um reconhecimento de que os órgãos mais responsáveis pelo policiamento da Amazônia carecem de pessoal. É interessante notar que o vice-presidente expressou o compromisso do governo Bolsonaro em dar continuidade a essas ações contra-desmatamento até o final de seu primeiro mandato – um momento em que ele espera que, o por ele chamado de “processo de revigoramento dos órgãos ambientais”, seja completado. 

Seu desejo expresso é que a Força Nacional do Meio Ambiente, uma agência civil, mantenha as taxas de desmatamento em níveis aceitáveis sem o uso das Forças Armadas (não se sabe se a declaração do vice-presidente é uma reafirmação do compromisso do governo com as NDCs – Contribuições Nacionalmente Determinadas – do Brasil com Acordo de Paris). No entanto, no momento da redação do presente documento, não havia evidências claras de que o governo tivesse vontade política para fazer as reformas necessárias; especificamente no que diz respeito ao fornecimento às agências civis tradicionalmente responsáveis pela ação de fiscalização os recursos e o apoio legal e regulatório necessário para o sucesso.

Isso significa que retornar ao esquema que restringiu o desmatamento ilegal por mais de uma década é improvável no curto prazo. Como consequência, as altas taxas de incêndios florestais e desmatamento (e todos os riscos à segurança que eles trazem) provavelmente continuarão, com resultados potencialmente devastadores para o Brasil e para a agenda de ação climática mundial. Isso provavelmente levará a mais aspereza entre o governo Bolsonaro e as potências ocidentais, perda de fé no Brasil como campeão das prioridades do mundo em desenvolvimento e prejudicará o potencial do Brasil de ser um ator influente no cenário global. Em um momento em que os países estão mostrando liderança ao fazer anúncios importantes sobre os compromissos climáticos nacionais, deixar de proteger a Floresta Amazônica de forma eficaz e democraticamente legítima diminui a posição internacional do Brasil. 36 

 

RECOMENDAÇÕES PARA O BRASIL 

PRINCIPAIS CONSIDERAÇÕES 

                  As decisões de ação climática tomadas nos próximos anos determinarão se os impactos climáticos das próximas décadas serão mais administráveis ou potencialmente catastróficos. Dada a importância da Amazônia para o sistema climático global, é do interesse estratégico e de segurança do Brasil retornar à sua política de liderança mundial de combate ao desmatamento. 

Ao impulsionar rupturas econômicas significativas, estressando as capacidades do Estado e sobrecarregando o contrato social entre governos e cidadãos, as mudanças climáticas terão consequências sociais, políticas e de segurança significativas, bem como impactos ambientais. Para contribuir com uma postura preventiva de todo o governo, as Forças Armadas deveriam avaliar os impactos diretos e indiretos das mudanças climáticas em suas operações e prontidão e na segurança do Brasil de forma mais ampla. 

Dadas as ameaças que as mudanças climáticas representam para o quadro de segurança humana e nacional do Brasil, a comunidade de segurança brasileira deve se comprometer a trabalhar com suas contrapartes civis para reduzir a escala e o escopo das mudanças climáticas, se adaptar a impactos inevitáveis, como o aumento do nível do mar, e fazê-lo em uma maneira que é sensível às preocupações humanitárias e que respeita as normas democráticas. 

A incorporação da escassez de recursos climáticos e das considerações do impacto da prontidão militar nos processos de planejamento estratégico e nos currículos profissionais de educação militar é um investimento importante não apenas para tornar a infraestrutura, a prontidão e as operações das Forças Armadas do Brasil resistentes às mudanças climáticas, mas também garantir que os líderes estejam preparados para melhor servir um público que será cada vez mais estressado pela escassez de recursos relacionados com o clima.131 

Altos funcionários militares (incluindo veteranos) devem defender que os líderes dos mais altos níveis dos governos federal, estadual e municipal adotem respostas adequadas a curto prazo aos riscos de segurança climática. Esta defesa deve promover uma infraestrutura do setor público (incluindo o militar) e instituições resistente às mudanças climáticas. Deve também tornar os órgãos e processos ecológicos, dos quais a segurança humana e a segurança interna dependem, resistente às mudanças climáticas.132 

As Forças Armadas brasileiras deveriam promover a discussão sobre as dimensões mais amplas de segurança das mudanças climáticas e se tornar um ponto focal para discussões e desenvolvimento de políticas no combate aos crimes ambientais da Pan-Amazônia que colocam em risco o sistema climático global, bem como a segurança pública no Brasil. O Brasil está em uma posição única para liderar tal esforço, não apenas na América do Sul, mas em toda a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), onde já possui fortes laços culturais, de defesa e diplomáticos. 

 

Com sua segurança e interesses nacionais em jogo, é vital que o governo brasileiro retorne a uma estratégia de longo prazo para conter o desmatamento. As críticas internacionais à postura do Brasil em relação à proteção florestal podem muito bem se intensificar, caso o Brasil não volte a uma trajetória que cumpra seus compromissos com o NDC. A comunidade internacional também pode exercer pressão sobre o Brasil nesses assuntos, aumentando as consequências diplomáticas e comerciais da inação. Diante disso, também é do interesse do Brasil se engajar positivamente com os organismos nacionais e multilaterais que têm parceria com o Brasil nos esforços de preservação florestal; esses acordos forneceram centenas de milhões de dólares para uma série de esforços de preservação e serão necessários para sustentar uma campanha de contra-desmatamento de longo prazo 

O desenvolvimento de uma estratégia abrangente que aborde os outros riscos à segurança climática, discutidos nesta publicação, incluindo segurança hídrica, alimentar e energética, seria do interesse do Brasil. Abaixo estão várias recomendações de políticas oferecidas ao Ministério da Defesa do Brasil e a outros órgãos do governo de formulação de políticas para consideração.

 

1. Avaliação de Riscos de Segurança Climática para o Brasil: O Ministério da Defesa deveria conduzir uma avaliação completa de segurança e inteligência dos principais riscos para a segurança climática do Brasil. Esta avaliação deveria explorar essas ligações de vários ângulos. Deveria incluir impactos relacionados ao clima na infraestrutura nacional crítica do Brasil (incluindo infraestrutura militar atual e planejada); no abastecimento de alimentos, água e energia; e avaliar como essas mudanças podem interagir com os impulsionadores dos principais desafios de segurança pública do Brasil, incluindo crime organizado grave, atividade criminosa transnacional, altos níveis de violência e fragilidade em estados vizinhos. Com base neste estudo, o governo brasileiro deveria explorar mais como o Brasil pode perseguir seus interesses nacionais em um futuro com mudanças climáticas, considerando seu potencial de liderança em questões críticas de conservação, bem como combustíveis alternativos e a transição energética. 

Muitas comunidades de segurança de outros países realizaram estudos semelhantes. Na última década, o Departamento de Defesa dos EUA encomendou vários estudos e avaliações que indicam a variedade de maneiras pelas quais o clima pode impactar a segurança pública. Por exemplo, avaliações estratégicas como o Relatório Sobre os Efeitos de um Clima em Mudança para o Departamento de Defesa(2019)133 reconheceu que os “efeitos de uma mudança climática são uma questão de segurança nacional com impactos potenciais para o Departamento de Defesa (DoD)” e reconheceu que os militares dos EUA devem ser “capazes de adaptar as operações atuais e futuras”, incluindo aquelas moldados por ameaças relacionadas ao clima. Uma avaliação detalhada das vulnerabilidades do Brasil forneceria uma base para o planejamento de defesa e segurança em um ambiente cada vez mais moldado pelas mudanças climáticas. 

2. Demonstrar Liderança Climática Regional: A política externa brasileira tradicionalmente prioriza o diálogo e a cooperação como instrumentos essenciais para a construção de confiança e, fundamentalmente, a promoção da paz. No espírito dessa abordagem, o governo brasileiro (incluindo o Ministério da Defesa e o Ministério das Relações Exteriores) deveria considerar liderar a elaboração e implementação de um Plano de Segurança Climática regional para a América do Sul – baseado no exemplo do “Clima Plano de Segurança para a América ”, desenvolvido pelo apartidário Grupo Consultivo de Segurança Climática do Center for Climate and Security.134 A colaboração para enfrentar as ameaças relacionadas ao clima melhorará a interoperabilidade transfronteiriça e tornará os esforços regionais para combater os riscos à segurança climática e os crimes ambientais mais eficazes. O Brasil já tem relacionamentos e interação robustos com a maioria dos países da região (principalmente as nações que compartilham as bacias do Amazonas e do Rio da Prata) e historicamente promove o discurso sobre o meio ambiente. Deixar de assumir um papel de liderança nos assuntos da Pan-Amazônia cria o risco de que outros estados ou instituições multinacionais preencham o vácuo, deixando o Brasil como um espectador em sua própria vizinhança.

3. Demonstrar Valorização dos Riscos Climáticos: Os militares brasileiros deveriam demonstrar em retórica e ações seu compromisso com o combate à ameaça das mudanças climáticas, pois o fenômeno representa um risco claro para a segurança pública do Brasil. Os principais líderes militares, incluindo membros do Conselho de Defesa Nacional do Brasil (a referência para segurança interna mais importante do presidente) e o conselho consultivo de política externa, deveriam promover discussões e ações para compreender e abordar o impacto das mudanças climáticas na segurança interna. Posteriormente, as implicações desta questão para a segurança pública deveriam ser legitimadas ao serem abordadas na Política de Defesa Nacional, Estratégia de Defesa Nacional e no Livro Branco de Defesa Nacional. 

As instituições acadêmicas de defesa, em particular, deveriam desempenhar um papel central na promoção e informar o discurso de segurança climática e também podem contribuir para avaliações militares e estratégias de mitigação destinadas a enfrentar a ameaça. Incorporar a escassez de recursos impulsionada pelo clima e considerações sobre o impacto da prontidão militar em programas de desenvolvimento profissional nas instituições educacionais militares também seria um investimento importante não apenas para tornar a infraestrutura das Forças Armadas brasileiras “impermeváveis” ou seja, preparadas para as intempéries das mudanças climáticas, mas também para garantir que os líderes estejam preparados para melhor servir um público que será cada vez mais estressado pela escassez de recursos relacionados ao clima. 

4. Renovar a Liderança no Combate ao Desmatamento: A segurança do Brasil, assim como a segurança de sua vizinhança e do globo, está inextricavelmente ligada à saúde da Amazônia. A posição internacional do Brasil e os interesses estratégicos em todo o mundo também estão inextricavelmente ligados ao fato de ele desempenhar ou não um papel de liderança na proteção da Amazônia e cumprir e superar as metas de mudança climática estabelecidas em Paris. O Brasil deveria, portanto, renovar sua liderança no combate ao desmatamento e se comprometer a reduzir as emissões de gases de efeito estufa na escala necessária para evitar consequências imprevisíveis de segurança relacionadas ao clima para o Brasil e seus vizinhos. 

5. Extensão Acadêmica: No espírito de contribuir para o fortalecimento da cooperação entre os países da América do Sul e, de forma mais ampla, para a redução das tensões e da pacificação, os militares brasileiros poderiam servir como facilitadores do discurso regional sobre desmatamento e mudanças climáticas. A comunidade acadêmica (militar e civil), o setor privado e as organizações sem fins lucrativos podem enriquecer esse debate e contribuir para a formulação de soluções para que tenham legitimidade aos olhos da sociedade em geral. Na frente internacional, organizações como o International Military Council on Climate and Security (IMCCS) – uma rede de líderes militares de alto escalão em todo o mundo que conduzem políticas de apoio a ações sobre as implicações de segurança de um clima em mudança (o Grupo de Peritos do qual está publicando este relatório) – deveriam ser engajadas e aproveitadas para aumentar o conhecimento institucional militar brasileiro sobre os impactos das mudanças climáticas na segurança.135 

A fim de avaliar e abordar totalmente esses riscos, as instituições regionais de segurança, incluindo instituições acadêmicas de defesa, devem incorporar temas de segurança climática em suas pesquisas. Este trabalho deve examinar os impactos das mudanças climáticas em: 

As mudanças no domínio marítimo e nas considerações de segurança marítima; 

Integridade territorial e disputas de fronteira que afetam a região em geral, e o Brasil especificamente;

Estratégia militar e questões relacionadas com o planejamento, treinamento e equipamentos, com foco em como os conjuntos de missão irão evoluir, bem como os impactos climáticos nas instalações; 

Análise contínua da força e potencial enfraquecimento das instituições e normas internacionais;

Questões de ciência e tecnologia (C&T), incluindo as desvantagens potenciais de defesa usando tecnologias civis, por ex. aqueles para contra-desmatamento. Esta poderia ser uma área frutífera de colaboração com o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, dada a importância da cooperação em C&T entre militares parceiros para lidar com os riscos à segurança climática. 

 

As recomendações acima não são apenas pontos de partida para que os militares brasileiros contribuam para mitigar as consequências das mudanças climáticas para a segurança, mas também são iniciativas que aumentarão ainda mais a reputação dos militares brasileiros como guardiões responsáveis do bem-estar da nação e líderes globais de pensamento e ação. O Brasil tem uma oportunidade histórica de liderar pelo exemplo; reunir não apenas o Brasil, mas também liderar uma região em transição para criar um futuro mais seguro e resiliente ao clima.

Os impactos das mudanças climáticas podem emergir como um grande impulsionador da instabilidade no século XXI, se as respostas para minimizar esses riscos não forem proporcionais à ameaça.136 Ao minar os meios de subsistência, impulsionar rupturas econômicas significativas, sobrecarregar as capacidades do Estado e desafiar o contrato social entre governos e cidadãos, a mudança climática terá consequências sociais, políticas e de segurança, bem como impactos ambientais. Por essas razões, as mudanças climáticas são entendidas como um “multiplicador de ameaças” para a instabilidade.137 

As dimensões de segurança das mudanças climáticas vão além daquelas relacionadas às mudanças nos padrões climáticos. A adaptação e mitigação das mudanças climáticas também trará mudanças nos mercados de energia e na distribuição de recursos, por exemplo, aumentando o valor estratégico de minerais como o lítio, ou exigindo decisões sobre quais setores se beneficiam mais de projetos hidrelétricos. Essas consequências mais amplas de um clima em mudança podem alterar a dinâmica de poder e dar origem a novas queixas, o que pode exigir capacidade institucional adicional para antecipar e administrar pacificamente. No Brasil, as interações da mudança climática com a missão militar, até agora, foram entendidas principalmente em relação à assistência humanitária e resposta a desastres. Como este relatório ilustra, ampliar a abertura para considerar outras consequências dos impactos do clima e integrar o clima na política e no planejamento de defesa pode apoiar avaliações de risco mais abrangentes e respostas intersetoriais às ameaças à segurança climática. 

A referência da Política Nacional de Defesa e Estratégia Nacional de Defesa de 2020 às graves consequências ambientais, sociais, econômicas e políticas das mudanças climáticas é um passo positivo que deve ser construído para que um quadro abrangente de segurança climática possa ser estabelecido. Todos os ramos das Forças Armadas deveriam avaliar como as mudanças climáticas afetarão suas respectivas instituições e como esses impactos podem ser melhor tratados.138 Dado o papel central que a defesa desempenha na resposta a desastres, há uma base sólida para desenvolver capacidades adicionais para se adaptar a um futuro com mudanças climáticas e às crescentes demandas nesta área. Dentro do governo, é responsabilidade da instituição de defesa avaliar o futuro cenário de segurança nacional e internacional, não apenas para informar suas próprias capacidades de planejamento. Essa função fornece uma oportunidade de liderança para a defesa incorporar as mudanças climáticas a um planejamento governamental mais amplo, como uma ameaça à segurança de alta probabilidade e alto impacto que requer uma resposta robusta do desenvolvimento e de outros setores. 

Por último, sem mitigação urgente e sustentada dos gases de efeito estufa, política de apoio e planejamento de todos os setores do governo, incluindo o setor de defesa, as mudanças climáticas terão consequências terríveis para o Brasil. No entanto, com a previsão disponível hoje, há tempo para tomar medidas preventivas para que os piores cenários não ocorram e para garantir que a segurança pública seja mantida em toda a região. 

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