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sábado, 5 de dezembro de 2020

Por uma nova política externa - Philip Yang (Valor)

Por uma nova política externa 

Na consolidação do “século asiático”, precisamos indagar qual direção deve ser dada à nossa diplomacia

Philip Yang 

Valor Econômico, 04/12/2020

 “O que é o mais difícil de tudo? Ver com seus olhos o que seus olhos colocam diante de você.” 

(Goethe)

 Introdução: a necessária mudança de rumos 

Grandes transformações da ordem mundial requerem grandes ajustes de política externa. Foi assim nas primeiras décadas do século XX. 

Deverá ser assim também nas primeiras décadas do século XXI. Com o deslocamento do eixo de poder da Europa para os EUA, o Brasil de Rodrigues Alves (1902-1906) mudava a orientação de sua diplomacia, construindo uma aproximação a Washington. Hoje, neste momento em que assistimos à emergência e consolidação do “século asiático”, precisamos (i) indagar qual direção deve ser dada à diplomacia brasileira e (ii) buscar entender — à luz do declínio econômico relativo do Ocidente — qual tipo de inserção internacional desejamos construir para o país. 

Enfatizo o verbo construir, pois o desenho de novas políticas demanda um ato volitivo, que nos arranque das forças inerciais, das rotinas do cotidiano, de determinismos vários, das tradições e molduras analíticas que inadvertidamente tomam conta de nossas visões de mundo. 

No início do século XX, a aproximação com os EUA derivou de ação voluntária e proativa de nossa chancelaria (1). Tivéssemos adotado postura burocrática, presa ao hábito ou à tradição, a guinada não teria ocorrido. O governo americano não tinha grande entusiasmo por qualquer vinculação especial com o Brasil, e o condutor do estreitamento de laços com os Estados Unidos pelo lado brasileiro, o Barão do Rio Branco (1845-1912), precisou romper com sua visão de mundo tradicional de inclinação europeísta para de fato forjar uma política afinada com os novos tempos e condizente com nossos interesses nacionais permanentes (2). Ou seja, o deslocamento de foco externo do Brasil, da Europa para os EUA, foi algo construído. 

Recorro a esse evento ocorrido há mais de cem anos, dado que a profundidade das transformações que ocorrem hoje no mundo — políticas, geoeconômicas e tecnológicas — demandam mudanças de rumo e força de decisão na área externa que não encontram paralelo no nosso passado recente. Na passagem do século XIX para o século XX, assistíamos, no plano externo, à emergência de uma nova potência hegemônica e, internamente, conduzíamos tardiamente o país para um novo paradigma produtivo, industrial e assalariado. A política externa de Rio Branco visionariamente refletia o conjunto de anseios e demandas que derivavam dessa dupla transição — de poder internacional e no modo de produção. 

Hoje, um século depois, uma dupla transição, de natureza semelhante, se desenrola a olhos vistos. A China — nova expoente da Quarta Revolução Industrial — emergiu e se consolida como nova superpotência global, numa nova economia que tem as tecnologias digitais nos campos de automação, controle e informação como pilares estruturantes. Nós, no Brasil, de novo tardiamente, buscamos conduzir o país para esse paradigma produtivo da Indústria 4.0. 

Terá o Brasil, nas últimas décadas, desenvolvido política externa condizente com essa nova realidade internacional e tecnológica? Em outras palavras, terá a diplomacia brasileira desenvolvido ação externa que, a exemplo do que aconteceu no começo do século passado, promoveu a inserção internacional do país em sintonia com as evoluções no campo político e tecnológico? 

Certamente não. 

Antecedentes e diagnóstico do que fizemos: uma política externa “insuficiente”

 Começo de frente para trás, da administração atual para as anteriores. Vivemos hoje uma postura política externa que sistematicamente agride a China. Qual seria a lógica de interesse nacional de ofender a superpotência política, geoeconômica e tecnológica emergente, que, ademais disso, é nosso principal parceiro comercial? Tal postura constitui contrassenso óbvio e erro primário de estratégia, além de grotesco em sua forma. O primarismo fica mais evidente quando se registra que a atual política ostensivamente antichinesa é feita de modo personalista, como forma de demonstração de lealdade pessoal (e de subordinação) ao presidente americano, que, como acabamos de ver, não foi reconduzido à Casa Branca. 

Nos governos anteriores — Temer, Dilma, Lula, FHC, Itamar, Collor e Sarney — que mais ou menos coincidem com as décadas de início e florescimento do notável crescimento da China derivado das reformas econômicas da era Deng —, nossa diplomacia atuou de forma correta no relacionamento com o país asiático, dentro dos valores e princípios que norteavam a política externa brasileira. Como pano de fundo para debate, podemos dizer que o diálogo do Brasil com a China e com a Ásia nesse arco temporal que vai de Sarney a Temer foi construtivo, mas insuficiente. Sim, insuficiente no sentido de que não antecipou o deslocamento de poder para a Ásia, de tal forma a gerar ações relevantes, estratégicas e concretas. Também insuficiente no sentido de que o diálogo não alterou substancial e estruturalmente, pela via diplomática bilateral, o curso natural de nossa realidade econômica, social e de desenvolvimento tecnológico. 

Se concordamos com essa tese da insuficiência, cabe indagar qual seria então, no plano da diplomacia geográfica, uma política externa suficiente e adequada para o contexto atual. Critério mais óbvio: a melhor política externa é aquela que alavanca o processo de desenvolvimento econômico e social dos países envolvidos, a partir de processos de trocas que sejam complementares, mutuamente benéficas e sustentáveis no tempo. Qual seria então essa política? 

Hipóteses 

No abstrato, as alternativas não são muitas. No contexto da rivalidade sino-americana que se aprofunda, caberia em primeiro lugar uma escolha simplista “por um dos lados” no contexto de uma suposta nova bipolaridade. Para os que enxergam uma geometria de poder menos bipolar e mais tripolar, a Europa como pilar de poder mundial — fortalecida pelo processo de integração da União Europeia e detentora de economia com grau superior de complementaridade ao Brasil em relação aos EUA — constitui opção de prioridade relacional. 

Aos que entendem o agrupamento Brics como alternativa de coligação viável, uma política calcada no fortalecimento do bloco emerge também como vetor de peso importante. Variante dessa perspectiva seria uma aposta em parceria mais estruturante que priorize fortemente a Índia, país visto por muitos como “a próxima China”, em termos de tamanho de mercado, desempenho econômico e inovação tecnológica. A Rússia, reerguida depois do colapso de 1991, permanece como ator relevante, no plano militar, energético e tecnológico, domínio em que o país se reinventou como potência (3). 

Aos autonomistas, restariam alternativas voltadas para conjunto de políticas que privilegiassem as relações no Sul global ou, ainda, iniciativas de corte sub-regional na América do Sul. E, claro, aos mais indecisos, aqueles adeptos do “somos amigos de todos”, teríamos mesclas difusas desses vetores, que se misturariam com todos os temas importantes da agenda multilateral que, por razão de espaço, serão deixados de lado neste texto: meio ambiente, comércio internacional, não proliferação e desarmamento etc. 

Ao refletirmos mais concretamente, nossas escolhas devem estar condicionadas à realidade interna brasileira — nossas aflições, angústias, limitações, premências e necessidades coletivas cronicamente não atendidas. Do lado positivo, o que temos a oferecer, competitivamente no plano material, como realidade presente e promessa de futuro. 

Num patamar de ainda maior realismo, temos de lembrar do velho ditado: “it takes two to tango”. De nada nos adianta idealizar novas associações e geometrias de poder se, numa parceria imaginada, não pudermos contar com a conjunção de duas vontades. Portanto, encontrar parceiros que nos enxerguem como nação e Estado de valor é condição essencial para qualquer diplomacia estruturante. 

Critérios para uma nova política 

No momento histórico em que nos encontramos, um ponto de partida inevitável para pensarmos nossa ação externa é o risco da irrelevância. Esse Brasil que apresenta há quatro décadas curva de produtividade do trabalho basicamente horizontal, taxas anêmicas de crescimento, baixa contribuição aos processos de inovação, desempenho educacional medíocre, reduzida poupança interna e incapacidade sistêmica de conceber e executar grandes projetos de infraestrutura tende inexoravelmente à insignificância e marginalização sistêmica. 

Diante de um contexto calamitoso como esse, não temos outro remédio que não seja tomar o fator tempo como variável fundamental para as nossas decisões diplomáticas. Em outras palavras, o sentido de urgência deve ser elemento central na construção de nossa política externa. Claro que há um enorme dever de casa no plano doméstico a ser realizado, mas não podemos deixar de perguntar qual política externa que — em prazos mais curtos — pode nos ajudar a sair desse pântano em que nos metemos (4).

 Um segundo fator que deve ser levado em consideração é o estágio tecnológico em que o Brasil se encontra, no contexto da transição de paradigma produtivo pela qual o mundo atravessa. Os núcleos dinâmicos da economia mundial caminham irremissivelmente para um quadro de ubiquidade digital, caracterizado pela constituição de novos ecossistemas nos quais a arquitetura de redes de alta velocidade, robótica, big data, internet das coisas e inteligência artificial dominam as infraestruturas urbanas, o ambiente de trabalho e de convívio social. A realização tardia desse ambiente digital nos condena a atraso ainda maior. Portanto, nossas escolhas devem buscar parcerias que nos alavanquem para um “leapfrog” em direção à Indústria 4.0. 

Entre outros tantos aspectos que merecem ser suscitados, limito-me a sublinhar por fim um terceiro fator importante que deriva da necessidade brasileira urgente por investimentos, notadamente nos segmentos de infraestrutura geral e urbana, das novas indústrias e de energia limpa, que configuram o ambiente virtual e a logística física da nova economia. Como mencionado antes, o Brasil apresenta taxas internas de poupança baixas e declinantes, o que compromete nossa capacidade de inversão, limita o potencial de crescimento e nos coloca numa posição de demanda por investimentos estrangeiros diretos (5). Assim, no esforço de inserção internacional, a capacidade de investimento de potenciais parceiros — notadamente em segmentos de infraestrutura digital e física multimodal, pilares da nova economia — deve ser avaliada como requisito central. 

Cenários plausíveis 

Entre os diferentes cenários delineados acima, destaco dois. Talvez sejam esses que se afiguram mais plausíveis e apresentam maior interesse para nós. Talvez seja possível, nesses dois cenários, que tenhamos chances de buscar, pela via da negociação, com boa dose de pragmatismo e à luz das lições da história, a melhor alternativa de inserção do Brasil no mundo. Talvez seja num desses dois cenários que a configuração de poder mundial possibilite uma inserção internacional do Brasil que efetivamente nos conduza para o ambiente da nova economia. 

Claro, trata-se de exercício de inegável simplificação de realidades complexas. As relações internacionais não se situam no campo das ciências naturais, domínio em que podemos realizar experimentos controlados. Trato aqui de trazer para primeiro plano esses dois caminhos possíveis, deixando em plano secundário diversos outros cenários e variáveis que deliberadamente permanecerão na sombra, para que possamos examinar, explorar e, quem sabe, induzir hipótese específica de inserção do Brasil na ordem internacional que se consolida. 

A opção convencional 

O primeiro cenário conta com o peso da história e a força do determinismo geográfico. Nele, buscaríamos uma aliança com os EUA, em contexto marcado pelo regionalismo crescente e/ou pelo acirramento do confronto sino-americano. Nesse cenário cada vez mais enrijecido pela polarização, os contendores principais admitiriam, tal como na Guerra Fria, que potências médias e secundárias se alinhassem exclusivamente a uma ou outra superpotência. Em tal cenário, caso radicalizado, seríamos instados a participar de bloco regional de natureza política e econômica e a aderir a regimes regulatórios que, de um lado, serviriam para integrar as duas economias (e outras da região) e, de outro, dificultariam e discriminariam, de forma mais ou menos velada, direta ou indireta, o relacionamento econômico/tecnológico/comercial com o polo oposto de poder principal. 

Se adotássemos esse caminho, aceitaríamos tacitamente (decerto de forma mais pragmática e inteligente do que se faz na presente administração) o ressurgimento das duas faces da Doutrina Monroe — hegemônico/ofensiva e paternalista/defensiva —, implícita no seu bordão definidor, “A América para os americanos”. Em certa medida, esse caminho poderia configurar uma resposta das Américas à recente iniciativa do Regional Comprehensive Economic Partnership — a RCEP, que reúne 15 países da Ásia. Num eventual cenário em que a presença americana no regionalismo do Pacífico se enfraqueça, dada a retirada dos EUA da Parceria Transpacífica (TPP), a integração interamericana pode ganhar relevância. 

Vale aqui sublinhar que uma tal opção pró-EUA não guardaria qualquer semelhança com a política próTrump hoje em vigor e agora transformada em cadáver insepulto. Se quisermos manter uma relação forte e produtiva com os EUA, teremos imperativamente, de construir elevado diálogo com a China. A necessidade de competir com os chineses será a única maneira de fazer com que os EUA estendam concessões reais ao Brasil. Se queimamos nossas pontes com a China, como quer o chamado “bolsotrumpismo”, Washington nos tomaria por certos, “for granted”, sem atribuir valor ao nosso peso específico. 

Pesaria em favor dessa escolha (até onde tivermos a capacidade e a possibilidade de escolher nossos caminhos): (i) visões de mundo nos dois países que, apesar de diferentes, são derivadas de uma mesma matriz ocidental judaico-cristã grego-romana, (ii) proximidade geográfica relativa, (iii) parentesco dos idiomas que falamos, ambos de origem indo-europeia e baseados na escrita em alfabeto romano, (iv) volume de comércio substancial, (v) histórico significativo de trocas no plano das sociedades, (vi) “establishment” estadunidense no campo estratégico-militar-tecnológico que enxerga no Brasil, embora de forma não unânime, algum valor geoestratégico no ordenamento mundial, mesmo que secundário, (vii) o valor dos EUA como polo de inovação tecnológico e de produção de conhecimento.

 Em contrário a essas vantagens presumidas, contrapõem-se (a) a baixa taxa de poupança interna que historicamente prevalece nos EUA, o que em tese impossibilita o fluxo de investimento na escala que necessitamos, (b) pauta exportadora frontalmente concorrente, (c) remotas possibilidades de abertura comercial nos EUA que pudesse nos beneficiar, (d) a baixa prioridade tradicionalmente atribuída ao Brasil como parceiro estratégico ou, talvez em outros termos, o papel calibradamente limitado que os americanos conferem ao Brasil (6). 

Outro caminho 

A alternativa seria a construção de parceria estratégica com a China, em patamar de relacionamento diferenciado e sem precedentes. Em desfavor desse cenário, incidiriam fatores críticos como (A) o desconhecimento recíproco que prevalece nas duas sociedades, agravado pela distância históricocultural, linguística, geográfica e político-jurídico-normativa que nos separa; (B) a ausência no Brasil de massa crítica sobre a China no mundo empresarial, acadêmico e na sociedade em geral; (C) a inexistência nos quadros diplomáticos do Itamaraty de um corpo estável e especializado em Ásia em geral e em China em particular, com formação específica em língua, cultura e economia política. A propósito, como indicador desse panorama, basta lembrar que a cada ano cerca de 20 mil estudantes brasileiros ingressam em instituições de ensino dos EUA, enquanto que o fluxo anual estudantil brasileiro na China não passa de dois dígitos (7). 

Entre os fatores favoráveis a parceria com a China vale citar (1) a capacidade política chinesa de mobilização de agentes econômicos na direção de políticas estratégicas (dentro e fora do país), (2) o poder governamental chinês de direcionar investimento externo em setores de infraestrutura, (3) a consolidação da China como polo de inovação e de provimento de soluções tecnológicas de interesse estratégico para o Brasil, (4) taxas elevadas de poupança, (5) a grande e crescente demanda chinesa por produtos de nossa pauta exportadora, notadamente produtos agropecuários, (6) o interesse da China no setor energético brasileiro, (7) a condição de país que mais investe em sustentabilidade, energias renováveis, que incluiu em sua constituição o desafio de se tornar “uma civilização ecológica”. 

Uma nova diplomacia triangular? 

A partir das variáveis acima listadas, e entre tantas outras que o leitor certamente poderá acrescentar, podemos especular livremente sobre qual cenário melhor nos atende. No entanto, de nada nos valerá esse esforço especulativo se não nos lembrarmos que parcela decisiva dessa escolha não se encontra nas nossas mãos. Voltando para o argumento do início do texto, nossa escolha precisa ser construída. Parte considerável das vantagens que podemos auferir em um ou outro cenário deriva do valor que cada um dos potenciais parceiros atribui ao Brasil. E o valor com o qual desejamos ser vistos depende também da capacidade interna de articular nossas vantagens materiais como elementos de negociação com cada um dos interlocutores.

 Não nos adianta deter grande mercado consumidor e riquezas dispersas nos diversos setores da economia se essas vantagens não constituírem uma pauta de negociação articulada pelas forças da sociedade, de mercado e do governo. E tal habilidade não é algo dado; trata-se de ação que depende de uma construção, de uma vontade coletiva que precisa ser ordenada. Nesse sentido, vale lembrar, a negociação diplomática não se limita a negociações no front externo; ela implica, necessariamente, a arregimentação e coordenação de forças internas. A chancelaria brasileira precisa, portanto, se esse for o nosso desígnio, fortalecer competência nesse domínio. 

Na década de 1970, no contexto da confrontação Leste-Oeste, EUA-URSS, Washington vislumbrou o valor estratégico que a China poderia desempenhar no equilíbrio de poder daquela velha ordem bipolar. Iniciava-se ali, sob as lideranças de Mao Tsé-tung (1893-1976) e Richard Nixon (1913-1994), a chamada diplomacia triangular. Pequim distanciava-se de Moscou e alterava assim a geometria de poder da era bipolar, abrindo as portas para cooperação com os Estados Unidos que trouxe consequências profundas para o desenvolvimento econômico da China. 

Tal recuo no tempo nos é útil como referência histórica, dado que a aliança sino-americana, no contexto da antiga rivalidade bipolar EUA x URSS, desencadeia a profunda, complexa e sofisticada interdependência econômico-financeira e comercial bilateral hoje em vigor. Nessa janela de oportunidade, derivada das tensões da Guerra Fria, a China encontra as portas para o seu ingresso na Terceira Revolução Industrial e abre o caminho da prosperidade econômica que conhecemos. 

Tomando esse evento histórico e decisivo, no qual um país continental como a China — que se encontrava em situação de ruína, fome e depauperamento — resgata, em poucas décadas, o seu lugar no Olimpo das grandes potências, cabe nos perguntarmos se, ante o acirramento da confrontação sinoamericana, teríamos também, no jogo de nova diplomacia triangular, condições de possibilidade para construir parceria internacional que alavanque nosso processo de desenvolvimento, acelerando a transição do Brasil para o ambiente da Indústria 4.0. 

Como sabemos, a fórmula do extraordinário caminho da China envolveu cinco ingredientes principais. Relaciono-os abaixo como marco de referência para a construção de possível “entente” com o mesmo nível de alcance e profundidade.

 Primeiro: um conjunto de decisões estratégicas de alto nível. No caso da reaproximação EUA-China, as iniciativas foram corroboradas pelos encontros secretos entre Henry Kissinger e Zhou Enlai (1898-1976), seguidos pelas conversações Nixon-Mao no início dos anos 1970 e a adoção, na sequência, da política de portas abertas por Deng Xiaoping (1904-1997) em 1978 (8). 

À luz dessas decisões de alto nível, o segundo ingrediente da trajetória chinesa é representado pela capacidade notável da China de assegurar ambiente propício para a realização de investimentos maciços e de atividades de transferência tecnológica dos EUA, demais países do Ocidente e do Japão (9). 

Terceiro: a existência na China de fatores competitivos que eram interessantes para os EUA — enorme força de trabalho e imenso mercado consumidor. 

Em mesmo nível de importância dos anteriores, o quarto ingrediente é dado pelo incentivo sistêmico aos EUA para a reaproximação com a China, que apontava para um reequilíbrio de forças em favor de Washington no contexto da rivalidade da Guerra Fria. Dado o seu peso específico, a China passava a ser vista pelos EUA como “the Chinese card”, ator capaz de alterar fundamentalmente a geometria do poder mundial. 

E, finalmente, constitui o quinto ingrediente a consciência, junto à elite dirigente da RPC, de que a aproximação aos EUA não deveria implicar qualquer forma de exclusivismo ou de subordinação política, consciência essa que conferiu à China ampla liberdade de ação junto a diversos outros países. 

Em termos muito simplificados, esses foram os elementos do salto da China para a Terceira Revolução Industrial, processo que veio como enorme benefício mútuo para a China e os EUA — e também para o sistema internacional. 

Conclusão 

Seria plausível imaginar que o Brasil poderia tornar-se vértice de uma nova diplomacia triangular no contexto da confrontação sino-americana em curso? Poderíamos ser alçados à condição de “carta brasileira”, como ator fundamental no tabuleiro da confrontação China-EUA? Hipótese central deste texto, esta será talvez a nossa única chance de construirmos uma “grand strategy” na cena internacional que nos apoie estruturalmente no plano doméstico, em escala de transformação semelhante à que a China experimentou nas últimas quatro décadas. Mas a construção de parceria dessa envergadura envolvendo o Brasil — que fosse capaz a um só tempo de nos ajustar de forma altiva à geometria de poder mundial e alavancar a transição tecnológica de país com nossa dimensão territorial e populacional — encontra dois obstáculos. 

Em primeiro lugar, tomando de empréstimo uma clássica expressão “schopenhaueriana”, não há no Brasil, uma “vontade e representação” coletiva de um mundo que desejamos alcançar. Falta-nos, por razões que não cabem neste texto, uma visão e um desígnio, um destino manifesto. Carecemos não só de uma política externa, mas também de condições internas — no Estado e na sociedade — que constituiriam o substrato para sua implementação no âmbito internacional. Ambas precisam ainda ser construídas. Os componentes materiais para a construção estão presentes: somos uma superpotência agrícola, superpotência ambiental, superpotência energética e um mercado consumidor de 220 milhões de pessoas, 87% das quais habitantes de espaços urbanos, campos abertos para a experimentação e a construção da ubiquidade digital da nova economia. Falta-nos, talvez, “simplesmente”, a determinação coletiva, política, uma visão estratégica de fazer desse patrimônio um ativo interno que nos articule com força na ordem internacional. 

Em segundo lugar, neste cenário bipolar, nem os EUA nem a China, até o momento, enxergam qualquer valor estratégico que o Brasil possa apresentar como parceiro sério e confiável, com potencial de alavancagem de interesses geopolíticos e geoeconômicos. Certamente por nossa própria culpa, pela falta de compromisso coletivo transformador, pela mesquinhez e pela ausência de massa crítica e iluminada em nossa elite, pelo baixo nível educacional da população em geral, fomos incapazes de articular ativos que, na ausência de uma vontade coletiva, atendem exclusivamente interesses particularistas situados à margem da sociedade e dos governos. 

Caminhando para o fim, volto a sublinhar que esses dois cenários são aqui tomados como principais, tanto por uma questão metodológica quanto pela inconfessável angústia do autor, que de alguma forma busca enxergar na complexa dinâmica internacional alguma clareza que nos abrisse a oportunidade, em horizonte temporal mais próximo, de enfrentar, com o apoio da diplomacia, as tantas mazelas sociais que nos cercam e o nosso subdesempenho econômico. Evidentemente, as tais hipóteses não são excludentes de outros arranjos que a dinâmica internacional venha nos propiciar em prazos eventualmente mais longos. 

A cautela sempre dirá que, mesmo diante de reflexões que nos apontem para cenários mais circunscritos, a ação diplomática deve sempre se pautar por política externa de arquitetura aberta, pragmática e ecumênica, tendo como fundamento os interesses nacionais permanentes. Por exemplo, a Índia já é hoje a terceira maior economia do mundo pelo critério de paridade de compra e certamente poderia ser objeto de parceria estratégica para o Brasil, conforme indicado anteriormente, em função da promessa que representa no plano do desenvolvimento econômico e tecnológico, além de seu imenso e crescente mercado consumidor. O Japão, país com que manteve relação migratória importante e que no passado foi relevante financiador de projetos de infraestrutura brasileiro, poderia resgatar com vigor o seu interesse pelo país. Da mesma forma, não podemos esquecer Euclides da Cunha (1866-1909), para quem a geografia pré-configura a história. Nesse quadro, não poderemos abrir mão das nossas possibilidades de articulação de arranjo político na América do Sul e na África Ocidental, regiões que perfazem uma população de mais de 1 bilhão de pessoas. 

Mas ao mesmo tempo não podemos descurar da hipótese de que, em função do nosso peso específico e das atratividades nos domínios acima citados (agropecuária, bioeconomia, energético e infraestrutura urbana), possamos construir uma alta estratégia, com dinâmica favorável aos nossos interesses, a partir de nova diplomacia triangular derivada, desta feita, da rivalidade entre China e EUA. 

O que fazer? Que expectativa realista podemos ter? No plano externo, cabe a nós, sistematicamente, sondar e provocar pelos canais institucionais, em Washington e em Pequim, as condições de possibilidade para a construção da parceria que melhor nos atenda no desafio de encontrar com urgência, a partir de salto tecnológico, o nosso caminho de prosperidade e equidade. Com habilidade, devemos seguir uma coreografia inteligente, navegando entre as duas potências, sem jamais nos aproximarmos ou distanciarmos excessivamente de um e de outro potencial parceiro, ao menos num primeiro momento, até que uma fórmula mais profunda de enlaçamento e intercâmbio reais sejam vislumbrados (10). 

Entre as possibilidades indicadas, minha preferência analítica pessoal transpira nos parágrafos acima. Mas os contornos de parcerias de tal estatura não podem ser derivados apenas de uma vontade analítico-especulativa. Dependem, sobretudo, de trabalho e articulação político-diplomática que, tristemente, estão ausentes em nosso horizonte. Se nenhuma delas for viável agora, que ao menos sejamos capazes de, internamente, construir as condições de contorno para um futuro melhor. Como nos lembra Rubens Ricupero, referência sempre central do pensamento brasileiro, não há exemplo histórico de país que tenha se desenvolvido apenas ou principalmente por meio da política externa. Esta, por mais brilhante que seja, é sempre necessariamente ancilar. O impulso decisivo tem sempre de vir de dentro. 


Philip Yang é fundador do Instituto Urbem e Senior Fellow do Cebri - Centro Brasileiro de Relações Internacionais 

P.S. No contexto pós-Trump, marcado pela exacerbada animosidade entre Biden e Bolsonaro, podemos assistir a uma inflexão dada pelas indicações de aproximação pessoal do atual presidente brasileiro ao presidente Putin. Tal movimento apresenta potencial de provocar importantes implicações na nossa política externa e introduzir complexidade ainda maior. Cabe lembrar que o atual sistema russo não é nem socialista nem capitalista, apresenta visão militarista e forte presença do Estado, tanto ao gosto do dirigente brasileiro. Nesse cenário, a Índia, sob o populismo nacionalista e conservador de Modi, também entraria como saída para minimizar o isolamento do Brasil, que hoje se confronta de maneira veemente tanto com os EUA quanto com a China. Não teríamos mais os Brics, mas sim o RIB, criando uma nova costela nas relações internacionais. 

1. À época, a chancelaria brasileira encontrava-se em período formativo como órgão de Estado. A mudança de orientação da política externa foi concebida e implementada pelo Barão do Rio Branco, com apoio de Joaquim Nabuco (1849-1910) e Rui Barbosa (1849-1923). 

2. Vale resgatar a contribuição de Joaquim Nabuco para a mudança do centro de gravidade da política externa brasileira no texto de Leslie Bethell, intitulado “Nabuco e o Brasil entre Europa, EUA e América Latina” (Novos Estudos - Cebrap nº 88 São Paulo Dec. 2010) 

3. Tal tendência precisa sempre ser examinada à luz das perspectivas de crescimento econômico do país, que não se mostram exatamente alvissareiras, dado o seu elevado grau de dependência ao petróleo. 

4. O sentido de urgência se agrava quando lembramos que a janela do nosso bônus demográfico se fecha. Não há registro na história de casos de desenvolvimento econômico após o término dessa transição. 

5. Claro que eventual flexibilização do teto de gastos para aumento de investimento e a utilização de ferramentas de política monetária como os mecanismos de “quantitative easing” poderiam reduzir dependência a investimentos externos, mas dada a escala da demanda infraestrutural brasileira parece certo afirmar que a entrada de investimentos estrangeiros será sempre fator importante para a retomada do crescimento. 

6. A esse respeito vale a leitura do livro “The Americanization of Brazil: A Study of U.S. Cold War Diplomacy in the Third World, 1945-1954”, de Gerald K. Haines. 

7. Temos fundações privadas dedicadas ao envio de estudantes brasileiros a instituições de ensino nos EUA e à Europa, mas nenhuma homóloga voltada para universidades da China ou Cingapura, por exemplo. 

8. O arco da aproximação sino-americana se inicia com a chamada Diplomacia do Ping Pong, em abril de 1971 e culmina com o reconhecimento formal da RPC pelos EUA em 1979. 

9. O livro “Unlikely Partners – Chinese Reformers, Western Economists, and the Making of Global China”, de Julian Gewirtz, retrata a construção do pensamento econômico chinês e a formação doutrinária do “socialismo de mercado”. 

10. Os mecanismos da diplomacia pendular não são desconhecidos da tradição diplomática brasileira. Durante o período Vargas, o Brasil foi cortejado pelos aliados e pela potências do Eixo e soube extrair dessa concorrência o financiamento para a construção da Companhia Siderúrgica Nacional. 

Esse artigo foi publicado originalmente em: https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/12/04/philipyang-por-uma-nova-politica-externa.ghtml

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