Os editoriais do Estadão são cada vez mais contundentes, mas ainda não chegaram naquele ponto de não retorno, depois de 13 de março de 1964, quando vários grandes jornais do país publicaram manchetes e editoriais proclamando o “BASTA” contra Goulart, ou seja, sinalizando para o golpe militar com amplo apoio dos principais governadores, que “seguiram” as consignas do “Movimento das Mulheres pela Família e pela Liberdade” (ou seja, contra o “comunismo”).
Estamos longe disso, e não temos nem governadores, nem militares golpistas. A sociedade assiste inerme, com o Congresso desarticulado, aos golpes que o degenerado aplica todos os dias contra a ética na governança e contra vários princípios e valores civilizatórios.
O que temos, por enquanto é uma sociedade dividida — mas os reais apoiadores do capitão são em número reduzido, sendo a maioria dos que ainda o toleram apenas indiferentes ao bem público — e a continuidade do desmantelamento das instituições pelo “demolidor da República”.
Aparentemente, a sociedade, o Congresso, as elites civis, militares e econômicas vão continuar assistindo a esse espetáculo grotesco de desgovernança, sem tomar nenhuma atitude ativa contra o capitão que DESTRÓI os fundamentos da República, esperando que em 2022 algum outro salvador providencial esteja em condições de enfrentar e derrotar o capitão para eventualmente tirar o país da atual rota de desastre. Alguns até se aproveitam da fraqueza do homem, e alegam não pretender violar a “normalidade democrática” (como se ela já não estivesse sendo conspurcada todos os dias).
Outras sociedades já passaram por esse tipo de situação: algumas juntaram forças para se salvar, outras se suicidaram lentamente...
Paulo Roberto de Almeida
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O demolidor da República e seus cúmplices
Editorial | O Estado de S. Paulo (17/12/2020)
Na sua empreitada para arruinar a República, Bolsonaro conta com comerciantes da Ceagesp, policiais, militares e o Centrão
Desde sua posse, mas especialmente em meio à pandemia de covid-19, o presidente Jair Bolsonaro não se comportou em nenhum momento como se soubesse o que fazer com o poder que os eleitores lamentavelmente lhe conferiram em 2018. Bolsonaro não preside a República; depreda-a – e nisso é coadjuvado não somente pelos fanáticos camisas pardas bolsonaristas, mas por muitos brasileiros comuns que, por ignorância do que vem a ser uma República, respaldam a vandalização da Presidência e, por extensão, da própria democracia.
Já não é mais possível saber qual dos atentados de Bolsonaro foi o mais grave nos dois anos de seu tenebroso governo, mas a terça-feira passada é forte candidata a entrar para a história como o dia em que o presidente declarou guerra a seus governados. Jamais houve nada parecido com isso em tempos democráticos.
Bolsonaro deu declarações em que explicitamente desencorajou seus compatriotas de tomar a vacina contra a covid-19, fazendo terrorismo acerca de eventuais efeitos colaterais. No dia anterior, Bolsonaro havia informado que, diante das ressalvas dos laboratórios, exigirá de quem queira tomar a vacina a assinatura de um “termo de responsabilidade”. Ele mesmo anunciou que não tomará a vacina, “e ponto final”.
Desde o início da pandemia, a única preocupação de Bolsonaro é livrar-se de qualquer responsabilidade, seja sobre as mortes, seja sobre os problemas econômicos. Mas atribuir aos próprios cidadãos uma responsabilidade que é inteiramente do Estado constitui desfaçatez inaudita até para este governo. Para ser aplicada, qualquer vacina precisa ser autorizada pelos órgãos sanitários competentes, que nesse ato reconhecem sua responsabilidade. Assim, não há nenhuma base jurídica para exigir dos cidadãos um termo de consentimento diante dos supostos riscos.
Mas Bolsonaro nunca esteve preocupado com bases jurídicas ou quaisquer outros pormenores republicanos. Perdeu-se a conta de quantas medidas provisórias, decretos e projetos de lei produzidos por ordem de Bolsonaro foram ignorados, suspensos ou rejeitados pelo Congresso e pelo Supremo Tribunal Federal por não atenderem aos requisitos mínimos de legalidade e interesse público.
O desdém de Bolsonaro pela República que lhe coube presidir é tamanho que, para ele, nem mesmo sua assinatura vale o papel em que foi escrita. Seu nome chancela o Decreto 10.045, de 4 de outubro de 2019, que determina a inclusão da Ceagesp no Programa Nacional de Desestatização. Contudo, esse mesmo signatário, em tom de comício, subiu num palanque na Ceagesp, na terça-feira passada, para garantir que “nenhum rato” privatizará a companhia. Referia-se, obviamente, ao governador paulista e principal desafeto, João Doria.
Tampouco o princípio republicano da impessoalidade resistiu à ofensiva bolsonarista para aparelhar o Estado com apaniguados a serviço do presidente e de seus filhos. A Procuradoria-Geral da República, a Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência são hoje comandadas por leais servidores de Bolsonaro, que parecem empenhados em tranquilizar o chefe e sua prole enrolada na Justiça.
Assim, na sua empreitada para arruinar a República, Bolsonaro conta com vários outros cúmplices – como os comerciantes que se aglomeraram sem máscara e urraram de excitação com o discurso virulento de Bolsonaro na Ceagesp, os policiais e os militares que o tratam como “mito” em eventos País afora e os políticos do Centrão que lhe dão guarida parlamentar em troca de acesso ao butim do Estado.
Confortável, Bolsonaro abandonou de vez a fantasia reformista que inventou para se eleger e anunciou que retomará sua agenda deletéria, a começar pela nova tentativa de ampliar a excludente de ilicitude para policiais, um projeto já rejeitado pela Câmara por constituir evidente licença para matar.
Defender que policiais fiquem fora do alcance da lei para que possam matar à vontade, bem como sabotar os esforços para vacinar a população contra a covid-19, são atitudes típicas de um presidente que, hostil aos princípios republicanos, trata todos os cidadãos da República – com exceção dos que levam seu sobrenome – como inimigos em potencial.
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