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domingo, 25 de abril de 2021

Negacionismo Fiscal - Gustavo Franco

 

03:18:11 | 25/04/2021 | Economia | O Estado de S. Paulo |

Negacionismo Fiscal

Gustavo H.B. Franco


A palavra está na moda, infelizmente.

Ouve-se negacionismo a todo momento, até demais.

Aconteceu recentemente com outras palavras emproadas como protagonismo, narrativa, ressignificar, empoderar, resiliência, disruptivo, assertivo. Há muitas assim, pegajosas e que subitamente parecem brotar de todas as bocas e não se consegue duas frases sem nelas tropeçar.

São palavras que funcionam como um adereço extravagante, como um cinto ou bolsa que possui uma grife de meio metro, pintada de dourado, e que transforma os usuários em uma propaganda ambulante, e os define pelo seu pertencimento a uma tribo.

Use uma dessas palavras, e as pessoas vão se lembrar de você as pronunciando, sem se dar conta sobre o que você estava falando.

Dentre essas palavras de grife, as que comandam mais respeitabilidade são as que terminam com "ismo", um sufixo geralmente utilizado para designar filosofias, teorias, movimentos artísticos. Quem usa "protagonismo" vira entendido em relações internacionais, e quem fala de "narrativa" se mostra um "insider" em estudos culturais contemporâneos.

Tudo isso não obstante, a ideia de negacionismo descreve com precisão a postura típica de líderes populistas diante de técnicos e experts, incluindo os da medicina convencional, eis que esse tipo de político não admite qualquer mediação em seu relacionamento com o "povo". Para eles, não existe ciência, só narrativa.

O negacionismo é primo-irmão da pseudociência, e por isso mesmo, tal como se passa com os líderes populistas, é muito mais popular do que se pensa. Quem não gosta de uma solução mágica e de uma cura milagrosa? Em geral, as pessoas não acreditam em superstições, mas se divertem em praticá-las, sobretudo se são inofensivas.

Como horóscopo de jornal. Vai que funciona.

Nessa parte do mundo em especial, tendo em vista nosso desapego ao real, à hegemonia da intuição e à desconfiança para com o racional, conforme a descrição de Mario Vargas Llosa, a popularidade da medicina alternativa é gigante. E, se é assim com a medicina, imagine com a economia.

O negacionismo tomou a economia há muitos anos, e apenas agora, com a pandemia e com os absurdos gerados pelo negacionismo médico, é que se percebe a exata estrutura conceitual do charlatanismo. É claro que há negacionismo em todas as outras áreas do conhecimento, talvez mais na economia que em qualquer outra.

Quanto perdemos com a busca de soluções mágicas para problemas econômicos? Um caso em evidência, nessa semana que passou, é a encrenca do Orçamento.

Os detalhes técnicos são menos importantes que atentar para o modo como os representantes do povo fazem as escolhas sociais. São os parlamentares eleitos que devem escolher entre o Bolsa Família e o Bolsa Empresário, ou entre a habitação popular e o submarino nuclear (ou as fragatas da Marinha), ou entre os auxílios emergenciais e as emendas parlamentares paroquiais.

Entretanto, no Brasil, por estranho que pareça, o Parlamento não gosta de escolhas, pois sempre há perdedores.

A melhor escapatória, e de longe a mais comum, consiste em questionar a necessidade de escolher, negandose a reconhecer a existência de qualquer limitação aos recursos existentes.

Só assim é possível ficar com o almoço e com o dinheiro. Muitos parlamentares preferem duvidar da escassez, para não competir entre si ou confrontar seus coleguinhas.

Parece sempre mais cômodo antagonizar o pessoal da área econômica.

Ou mesmo a própria ideia de responsabilidade fiscal. Ou negar a existência de "restrições orçamentárias".

Ou dizer que o ministro esconde o dinheiro.

Não será sempre necessário, conveniente e fotogênico duvidar da escassez e, heroicamente, explorar a possibilidade de realizar todos os sonhos, a despeito das (im)possibilidades? Vai que funciona.

Esse é o negacionismo fiscal, uma doença antiga, fácil de se contrair em Brasília, pois começa com a compulsão em não desagradar ninguém, prossegue com nosso espírito aventureiro (o gosto pela solução mágica) e parece ganhar nova vitalidade com a pandemia.

*

EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMENTOS

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Esperando Godot: o nunca existente neoliberalismo brasileiro (2007) - Paulo Roberto de Almeida

 Esperando Godot: o nunca existente neoliberalismo brasileiro

 

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.org)

Paper preparado para o I Congresso da ABRI

(Brasilia, 25-27 de julho de 2007)

 

Sumário: 

1. Introdução: as razões e o significado de um debate 

2. Parâmetros conceituais do suposto neoliberalismo: o “consenso de Washington”

3. O contexto histórico-econômico do “neoliberalismo” no Brasil

4. O núcleo duro do neoliberalismo no Brasil e seu desempenho histórico

5. Questões de sustentabilidade interna e externa do neoliberalismo no Brasil

5. Questões de sustentabilidade interna e externa do neoliberalismo no Brasil

7. Uma avaliação preliminar da era “não neoliberal” no Brasil

8. Conclusões: o “iliberalismo” essencial da formação social brasileira

 

 

1. Introdução: as razões e o significado de um debate

A bibliografia especializada na história econômica do Brasil contemporâneo e, mais especificamente, no estudo dos padrões de desenvolvimento econômico observados ao longo do último meio século, costuma praticar uma espécie de bipolaridade conceitual entre, de um lado, um modelo dito “autônomo” ou “desenvolvimentista” – que teria sido aquele praticado, grosso modo, por Getúlio Vargas e por governos do regime militar – e, de outro, um modelo dito “associado” ou “dependente” – alegadamente defendido por lideranças contrárias ao “nacional-trabalhismo” do primeiro e ao estatismo dos segundos –, modelo que teria sido encarnado pelos governos Collor e FHC. O primeiro encontra, ao que se diz, defensores intelectuais nas correntes identificadas com o chamado estruturalismo e a heterodoxia econômica – pretensamente de extração keynesiana –, ao passo que o segundo modelo teria adeptos na ortodoxia econômica e no liberalismo de tipo econômico, mas também político. Basicamente, segundo as “explicações” históricas oferecidas, os primeiros promoveriam o desenvolvimento nacional por meio de políticas ativas patrocinadas pelo Estado, ao passo que os segundos prefeririam ver o Brasil guiado unicamente pelas chamadas “forças do mercado”.

Segundo a literatura de cunho interpretativo, essas orientações divergentes em matéria de política econômica teriam se sucedido e alternado em diversas épocas desde o final da segunda guerra mundial, ao sabor da correlação de forças entre correntes opostas: “intervencionistas”, de um lado, “liberais”, de outro. A dicotomia filosófica conformaria uma espécie de “zig-zag econômico” entre uma postura basicamente “independente” (também identificada com o “nacionalismo econômico”) e uma outra essencialmente “interdependente” (por suposição inversa comprometida com uma orientação mais aberta em relação ao capital estrangeiro). Em que pese o simplismo dessa visão, ela parece ainda encontrar ainda adeptos nos dias que correm, como revelado no debate público (pobre, [e verdade) em torno das principais escolhas de políticas econômicas (macro e setoriais). 

A incompreensão mútua entre ambas as correntes, aliada a certas caracterizações apressadas, derivou muitas vezes para o equacionamento simplista do “intervencionismo estatal” com o “desenvolvimento nacional”, de um lado, e para uma identificação igualmente mistificadora entre o “liberalismo” e o “crescimento dependente”, por definição “alinhado” e “desnacionalizador”, de outro. Para ficar apenas nos casos mais evidentes, assim como os dois governos de Getúlio Vargas e o de João Goulart teriam encarnado todas as virtudes do “nacional-desenvolvimentismo”, os governos de Dutra, de Collor e de FHC concentrariam, por excelência, os vícios do modelo “associado”. Mas estes são apenas os casos mais paradigmáticos do maniqueísmo virtual praticado por certa historiografia em relação aos caminhos do desenvolvimento nacional.

Existem casos de “fronteira”. Vejamos os mais evidentes dentre eles. Tendo sido precocemente jogado num incômodo ostracismo pelo nacionalismo ideológico de alguns estudiosos não exatamente isentos do ponto de vista político, o Governo JK poderia ser visto, de alguma forma, como uma espécie de “patinho feio” da história econômica brasileira, primeiro por ter sido considerado um exemplo de governo desnacionalizador, para ser depois reabilitado no altar desenvolvimentista do período contemporâneo. Os governos José Sarney e Itamar Franco poderiam lhe fazer companhia, pelo caráter híbrido – isto é, intervencionista-liberalizante – das políticas econômicas conduzidas de forma errática em suas respectivas administrações, da mesma forma como alguns governos militares, hoje cultuados como “planejadores”, como teria sido o caso do governo ultra-estatizante de Ernesto Geisel. 

A pergunta que cabe legitimamente ser colocada, ao início deste ensaio de revisão histórica, é se esse tipo de avaliação essencialmente dicotômica no campo econômico – consubstanciada, por exemplo, nos vocábulos “desenvolvimentista” ou “liberal” com que muitos pesquisadores acadêmicos rotulam esses governos – permanecerá fazendo parte do nosso universo historiográfico. O próprio conceito de “liberalismo” continuará, por sua vez, a ter a conotação essencialmente pejorativa que assumiu para gerações inteiras de brasileiros engajados na luta pelo desenvolvimento nacional? Seria a busca de “interdependência econômica” uma espécie de “pecado original” de economistas e líderes políticos considerados excessivamente associados ao modelo capitalista de mercado?

Escapa às pretensões do presente trabalho a tentativa de resgatar a reputação e a credibilidade política do liberalismo econômico, sobretudo num país ainda seriamente marcado por julgamentos ideologicamente comprometidos por décadas de lutas entre “varguistas” e “anti-varguistas”, entre “autônomos” e “associados”, entre “nacionalistas” e “entreguistas”, entre “independentes” e “interdependentes”. Tampouco se pretende reconstituir por inteiro uma história econômica e política já adequadamente coberta por estudiosos de grande calibre acadêmico e de credenciais insuspeitas.

O presente ensaio histórico persegue um objetivo mais modesto, ainda que mais desafiador: explorar não apenas a teoria, mas essencialmente a prática do que se poderia caracterizar como “política econômica do liberalismo”, tal como posta em prática durante a fase recente da trajetória econômica brasileira, aquela identificada por muitas lideranças políticas da atualidade como tendo sido “neoliberal”. Sua principal virtude talvez possa ser encontrada na tentativa de operar uma consulta às evidências materiais desta época e de proceder a uma releitura das interpretações efetuadas de maneira tendenciosa com vistas a redimensionar o que foi por muitos chamado de “neoliberalismo econômico”.

Algumas premissas iniciais e uma hipótese de trabalho precisam ser formuladas desde já, de molde a deixar clara a postura do autor em relação às acusações lançadas contra a política do “liberalismo econômico”, tal como praticado desde o início dos anos 1990 no Brasil. Isso se justifica pelo fato de que, nas ciências humanas, a discussão de qualquer temática – que não possui, muitas vezes, a materialidade e a possibilidade de testes ou experiências concretas, que constituem a marca das chamadas ciências “exatas” – exige, previamente, um entendimento quanto aos conceitos empregados e em relação às hipóteses de trabalho. No caso deste ensaio, os conceitos centrais, obviamente, são os de “liberalismo” e de “dirigismo”, na experiência histórica do desenvolvimento econômico brasileiro, e a principal hipótese de trabalho é a de que o Brasil é, claramente, um caso exacerbado de intervencionismo estatal durante toda a trajetória histórica desse processo, em contraposição ao que teria ocorrido, hipoteticamente, no caso de uma expansão mais equilibrada da iniciativa privada e das forças de mercado no sistema econômico brasileiro. É essa hipótese de trabalho que explica, aliás, a escolha do título do trabalho, uma vez que, como ocorre na peça de Samuel Beckett, o personagem principal jamais aparece em cena ou dá ele sinais de que existe, efetivamente.

Caberia deixar claro que nunca houve essa entidade fantasmagórica que muitos representantes de correntes acadêmicas – e, no seu seguimento, os jornalistas e militantes políticos – chamam de “neoliberalismo”, assim como não existem, no cenário político brasileiro, personagens que poderiam ser chamados de “neoliberais”, pela simples razão que nunca houve, no Brasil, algo que se pareça, de perto ou de longe, com o liberalismo econômico. Trata-se de uma designação que, nos últimos quinze anos aproximadamente, converteu-se em uma espécie de superlativo conceitual, quando não um epíteto ofensivo, equivalente a uma condenação sumária ao “gulag dos entreguistas”.

O conceito “neoliberal” esclarece pouco e confunde muito. Para que tivéssemos tido neoliberalismo, teria sido preciso que tivesse existido algum liberalismo concreto, de alguma forma afastado ou travado em suas manifestações práticas por formas veladas ou abertas de estatismo ou de dirigismo centralista, que depois tivessem sido, estes últimos, varridos por alguma “onda neoliberal” dominante nos círculos dirigentes e nas academias das últimas duas décadas. Não é o que constatamos pela leitura dos debates ocorridos nesta fase, nem o que se verifica por um exame detido da realidade econômica do país. 

Dito isto, vejamos como pode ser organizado este debate intelectual (unilateral, é verdade) em torno das idéias “neoliberais” no Brasil. Numa primeira seção, trataremos de resumir o que os “acusadores” entendem serem políticas “neoliberais”, que costumam ser confundidas, ainda que erroneamente, com as prescrições do chamado “consenso de Washington” (CW). Em seguida, com base em perguntas formuladas em torno dessas “acusações”, trataremos dos aspectos enfocados nas prescrições, confrontando sua suposta aplicação com a prática efetiva do Brasil em cada uma dessas vertentes, para constatar em que medida a política econômica do país seguiu, de fato, os cânones do “neoliberalismo”. Ainda que algumas simplificações sejam inevitáveis, acreditamos que a contribuição aqui efetuada possa esclarecer a natureza do desenvolvimento brasileiro no período recente e, sobretudo, evidenciar o quanto ainda o Brasil encontra-se afastado de “neoliberalismo” (ou do liberalismo, tout court). Nesse processo, alguma repetição de argumentos do autor, expressos em trabalhos anteriores, é igualmente inevitável.

 

(...)

Ler a íntegra neste link: 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Pastore: acabou a ilusão de um Bolsonaro liberal (entrevista)

Acabou a ilusão do liberalismo de Bolsonaro', diz Affonso Celso Pastore

Economia - Estadão, 25/02/2021

Para economista, demissão de Roberto Castello Branco da Petrobrás mostra que o presidente ‘não tem nenhum compromisso com a democracia’

 https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,acabou-a-ilusao-do-liberalismo-de-bolsonaro-diz-affonso-celso-pastore,70003626018                                                                                                                                                                                                                                      

A decisão do presidente Jair Bolsonaro de demitir Roberto Castello Branco do comando da Petrobrás “acabou com a ilusão de que o suposto liberalismo econômico do governo levaria à retomada do crescimento”. A conclusão é do economista e consultor Affonso Celso Pastore*, e vem com uma ironia: “Fixar preço de petróleo não é como fixar o preço do misto-quente”. 

O presidente, diz ele, mostrou que “não tem nenhum compromisso com a democracia, com o Brasil e com a melhoria das condições de vida da população. Visa, apenas, a votos para a sua reeleição em 2022”. Com um olhar veterano – 81 anos, tendo passado, entre outros, pelo comando do Banco Central e da Secretaria da Fazenda paulista –, o professor e doutor em Economia pela USP adverte para duas prioridades que o País tem hoje: vacinar, vacinar, vacinar e buscar com urgência o equilíbrio fiscal. 

No entanto, nesta entrevista para o programa Cenários, parceria do Estadão com o Banco Safra, o que temos hoje é “uma política fiscal completamente aleatória e errada” – e o resultado disso é que os dólares de que o Brasil tanto precisa, em investimentos, “estão indo para outros países emergentes”. A seguir, os principais trechos da conversa. 

Como o sr. avalia a decisão de Bolsonaro de demitir o presidente da Petrobrás?

Com a demissão de Roberto Castello Branco da Petrobrás acabou-se a ilusão de um suposto “liberalismo econômico” do governo Bolsonaro que levaria à retomada do crescimento. Fixar o preço do petróleo não é como fixar o preço de um misto-quente. Ao repassar para os preços domésticos as variações do preço internacional do petróleo, a Petrobrás elevava os lucros e atraía capitais externos, o que ajudava a recuperar a economia. Se o governo ainda tivesse uma pálida sombra do liberalismo que propagava durante a campanha eleitoral, teria de deixar a empresa livre para fixar os preços no mercado interno, respondendo às variações internacionais. 

E que impacto essa mudança trará para a política e a economia do País?

Bolsonaro não é liberal, e sim um populista, semelhante a Viktor Orbán, na Hungria, (Recep) Erdogan, da Turquia, (Vladimir) Putin, na Rússia, com propensão a ser um ditador, como (Nicolás) Maduro, na Venezuela. Não tem nenhum compromisso com a democracia, com a melhoria das condições de vida da população. Visa, apenas, à sua reeleição em 2022 e proteger-se contra o impeachment. 

Como ex-presidente do Banco Central, nos anos 80, de que forma avalia a nova norma que cria um BC realmente independente? 

Essa independência agora aprovada é no sentido de que seus diretores têm mandato fixo e não coincidente com o do presidente da República. Há um outro conceito de independência – que aqui já existe –, estabelecido muitos anos atrás pelo (economista) Stanley Fisher e que enfatiza a independência no uso dos instrumentos. O que isso quer dizer? Que para um BC poder cuidar da política monetária, tem de ter liberdade total para mexer na taxa de juros. Quando o Arminio Fraga presidiu o banco (1999 a 2003), e entramos no regime de metas de inflação, o governo deu informalmente essa liberdade ao BC. Mas o presidente do banco continuava passível de demissão pelo presidente da República.

E para que isso serve, na prática?

Isso significa que o BC pode fazer a política monetária, que é condição essencial para que o País cresça. O controle da inflação é fundamental. A propósito, quero lembrar que o Roberto Campos criou – no governo Castelo Branco – o BC independente, em que seu presidente teria mandato fixo e não coincidente com o do presidente da República. Mas aí colocou o Dênio Nogueira na sua presidência e usou todos os argumentos possíveis para convencer o sucessor de Castelo, o general Costa e Silva, a manter o Dênio. Não conseguiu. Como ele conta no seu livro A Lanterna na Popa, o sucessor lhe perguntou por que deveria manter o Dênio e o BC independente. “Porque ele é o guardião da moeda”, disse Campos. Eu presumo que Costa e Silva tenha batido no peito e dito: “O guardião da moeda sou eu!”. E a independência do BC foi jogada às urtigas e a diretoria toda demitida. Queriam, sim, interferir na política monetária. 

Houve alguma época em que o Brasil praticou de fato o equilíbrio fiscal?

Houve, e começou em 2002. Quando ocorreu o Plano Real, o BC emitia moeda para financiar déficits – e a dívida pública já era muito alta. O FHC e o Pedro Malan, ministro da Fazenda, compreenderam isso e decidiram criar aquele regime do “tripé da política econômica”. Metas de inflação e metas de superávit primário de modo a estabilizar ou reduzir a relação dívida/PIB. Eles cumpriram isso, mas não para o controle dos gastos. 

E aí vieram os aumentos de impostos

Sim, aumento de impostos. E isso tem um custo econômico, pois, a cada imposto ou alíquota que você cria, prejudica a eficiência econômica e reduz o crescimento. Aquele regime de metas durou até 2014. Aí a Dilma decidiu sair do regime de superávit primário, gastou e gerou déficits. Resultado: o Brasil, já promovido a grau de investimento, perdeu essa classificação em 2015. 

É possível fazer hoje uma projeção do crescimento da economia mundial?

Você não tem uma resposta para isso. Você nunca viveu antes uma pandemia. O que sabemos, e é muito pouco, é que a pandemia atua do lado da oferta e do lado da procura. Da oferta, botou todo mundo em casa, impediu fábricas de funcionar, mexeu na demanda e na oferta. Nos modelos econômicos, esse fenômeno não é conhecido por ninguém. 

Tem algum caminho para que o País possa voltar a crescer?

Para isso precisamos de duas coisas. Uma, a vacinação eficaz, rápida, pra que se possa voltar ao mais próximo possível de uma vida normal. A segunda coisa: precisamos de estímulos econômicos. Mas estamos falhando na vacinação e, com o desequilíbrio fiscal que temos, não podemos pensar num pacote fiscal como o dos Estados Unidos. Eles chegaram a US$ 1,9 trilhão, 10% do PIB. Podem fazer isso porque não têm o problema da sustentabilidade da dívida.

Mas que medidas deveriam ser tomadas no curto prazo?

Vacinar, vacinar. Mas o presidente e o ministro da Saúde foram negligentes, negacionistas nessa questão da vacina. A segunda coisa a fazer é tomar cuidado com a política fiscal. E mais: é impossível, com desemprego alto e a distribuição de renda assimétrica que temos, não ter uma ajuda emergencial para as pessoas atingidas.

Qual a possibilidade de uma CPMF digital? O governo brasileiro jamais conseguiu, na sua história, cortar custos. 

Fizemos a reforma da Previdência. Ela cortou. E precisamos de uma reforma administrativa. Ela também corta. Quanto à uma nova CPMF, a única vantagem é que é fácil de recolher. Mas é injusta, impopular. O que precisamos é de um consenso político. Para isso, no entanto, se precisa de uma liderança política. Coisa que o nosso presidente, infelizmente, não tem.

Não tem, de fato.

Ele perde as estribeiras, xinga as pessoas, diz que é preciso ser macho para enfrentar a pandemia... As coisas não se resolvem com essas bravatas. Resolvem-se com planejamento, articulação política, diagnóstico. É como o médico. Médico não sai dando remédio ao paciente a torto e a direito, primeiro faz um diagnóstico da doença. E só depois começa a executar. 

Existe alguma brecha, algo que possa trazer um alento ao País? O excesso de liquidez, o capital procurando algum lugar para aterrissar...

Eu preparei um trabalho pegando 20 países emergentes, o Brasil entre eles. Há uma arrogância de gente afirmando que essa liquidez só pode vir para um lugar, o Brasil... Ela foi provocada pelos Estados Unidos, que em maio de 2020 baixaram os juros a zero e compraram US$ 2,5 trilhões em títulos públicos. Pois eu acompanhei a taxa de câmbio do Brasil e a desses emergentes, que – com exceção de Turquia e África do Sul – seguiram o dólar. Aí, o dólar enfraqueceu, eles se fortaleceram. O real só se depreciou de lá para cá. E tem capital que está saindo daqui. Para onde? Para outros países emergentes.

E o que isso significa?

Estamos vivendo com um real fraco, hoje em torno de R$ 5,40 (por dólar). Isso reflete a percepção de risco da nossa economia. E qual é a origem desse risco? É o fato de termos uma política fiscal completamente aleatória e errada. Se consertarmos, não tenho dúvida de que esses capitais vão voltar, comprando ações, imóveis. O que exige coordenação política e liderança – mas estamos bem longe disso. 

Em suma, temos um quadro com o mundo se recuperando aos poucos e o Brasil ficando para trás?

Há alguns dias o FMI publicou umas projeções de crescimento. Na China, o PIB caiu só por um trimestre e agora eles crescem. Ainda na Ásia, você olha para Japão, Coreia do Sul, Austrália, Nova Zelândia, aquela área ganhou de 10 a 0 dos Estados Unidos. Neste ano, veio o Joe Biden, com uma visão a favor de um apoio fiscal, ‘tá’ fazendo um impulso enorme. A Europa, liderada pela Angela Merkel, aprovou um pacote de investimentos para aumentar a produtividade dos menos desenvolvidos, como Polônia, Espanha, Itália. A América Latina está atrasada em relação ao resto do planeta, e o Brasil junto com ela. 

O que o sr. considera relevante aí pela frente, para dizer aos mercados financeiros e para o governo?

Em um livro que estou acabando de ler, Radical Uncertainty, os autores, Mervyn King (ex-BC americano) e John Kay, tratam da incerteza. A pandemia, tipicamente, foi uma incerteza radical. Os empresários aceitam o desafio da incerteza. Mas eles têm de sair da casca e começar a gritar no plano político.

Não estão começando a fazer isso?

Vejo hoje uma retração como nunca vi antes. O sujeito escreve um artigo dizendo “olha, não chacoalha muito, um dia o Bolsonaro vai embora...” O empresariado tem de se posicionar, olhar para o futuro do País. Não só o dele, o da empresa. Acho que é preciso um pouco mais de proatividade no campo político para que a gente construa um País melhor. A superação do desafio não vem sozinha.


*DIRETOR DO DEPTO. DE ECONOMIA DA USP, FOI PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL (1983-85) E SECRETÁRIO DA FAZENDA DE SP (1979-83). É SÓCIO-FUNDADOR DA A.C.PASTORE & ASSOCIADOS.


quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

O "buraco negro" fiscal do Brasil em 2021 (ou já está ocorrendo) - Os números, por Ricardo Bergamini

 Ricardo Bergamini é um crítico IMPLACÁVEL da má condução da política econômica no Brasil, e eu me permito sublinhar tanto implacável quanto má política econômica, pois é disso que se trata.

Praticamente todas as crises brasileiras, mesmo aquelas causadas por indução externa (petróleo, dívida externa, estrangulamento cambial) foram causadas por má condução da política econômica, mesmo quando têm essa causa externa mais profunda, pois uma boa condução de seus principais vetores – fiscal, monetário, cambial, setoriais – não teria deixado os problemas se acumularem até o estrangulamento final.

A frase de Keynes é muito espirituosa, mas não serve de ajuda, pois o longo prazo um dia chega, e em algum momento seremos alcançados por ele. Aliás, Keynes é responsável por muitos dos problemas de MÁ CONDUÇÃO da política econômica, pois vivia insistindo em esticar a corda do emissionismo, do endividamento público, da inflação, do estímulo ao consumo, supostamente para incitar os "espíritos animais" dos capitalistas. Ele adorava frases de efeito, mas tem erros muito graves.

No caso do Brasil, não tenho nenhuma hesitação em já apontar que estamos caminhando para, se já não estamos num "buraco negro" fiscal, que está se formando agora, e que deverá nos tragar em 2021, se o Congresso não colocar em ordem as contas públicas. Digo o Congresso, pois já não confio na capacidade do Executivo de operar os ajustes necessários. 

Mas, como parlamentar adora gastar, não tenho muita confiança em que o dever de casa seja feito. Daí a minha antecipação: estamos indo para um buraco negro.

Paulo Roberto de Almeida


"No longo prazo estamos todos mortos" (John Maynard Keynes).

Prezados Senhores

No acumulado em doze meses até dezembro de 2018, registrou-se déficit fiscal  primário de R$ 108,3 bilhões (1,57% do PIB), No acumulado em doze meses até  outubro de 2020 registrou-se déficit fiscal primário da ordem de R$ 661,8 bilhões (9,13% do PIB). Aumento real em relação ao PIB de 481,53%, comparativamente ao acumulado em doze meses até dezembro de 2018. 

No acumulado em doze meses até dezembro de 2018, os juros nominais alcançaram R$ 379,2 bilhões (5,52% do PIB). No acumulado em doze meses até outubro de 2020 os juros nominais alcançaram R$ 349,2 bilhões (4,82% do PIB). Redução real em relação ao PIB de 12,68%, comparativamente ao acumulado em doze meses até dezembro de 2018.

No acumulado em doze meses até dezembro de 2018, o déficit fiscal nominal
alcançou R$ 487,5 bilhões (7,09% do PIB). No acumulado em doze meses até outubro de 2020 o déficit fiscal nominal alcançou R$ 1.011,0 bilhões (13,95% do PIB). Aumento real em relação ao PIB de 96,75%, comparativamente ao
acumulado em doze meses até dezembro de 2018.

Estatísticas Fiscais - Fonte BCB
Base: Outubro de 2020

1. Resultados fiscais

O setor público consolidado registrou superávit primário de R$ 3,0 bilhões em outubro. No Governo Central houve déficit de R$ 3,2 bilhões, e nos governos regionais e nas empresas estatais, superávits, na ordem, de R$ 5,2 bilhões e de R$ 998,0 milhões. No ano, até outubro, o déficit primário acumulado do setor público consolidado atingiu R$ 633,0 bilhões, ante déficit de R$ 33,0 bilhões no mesmo período de 2019. No acumulado em doze meses, o déficit primário atingiu R$ 661,8 bilhões (9,13% do PIB).

Os juros nominais do setor público consolidado, apropriados por competência, somaram R$ 33,9 bilhões em outubro, comparativamente a R$ 20,3 bilhões no mesmo mês de 2019, elevação influenciada pela evolução desfavorável do resultado das operações de swap cambial (perda de R$ 7,0 bilhões em outubro de 2020, ante ganho de R$ 7,7 bilhões em outubro de 2019). Nos últimos doze meses, os juros nominais atingiram R$ 349,2 bilhões (4,82% do PIB), comparativamente a R$ 366,5 bilhões (5,10% do PIB) no acumulado até outubro do ano anterior.

O resultado nominal do setor público consolidado, que inclui o resultado
primário e os juros nominais apropriados, foi deficitário em R$ 30,9 bilhões
em outubro. No acumulado em doze meses, o déficit nominal alcançou R$
1.011,0 bilhões (13,95% do PIB), elevando-se 0,22 p.p. do PIB em relação ao
déficit acumulado até setembro.

2. Dívida Líquida do Setor Público (DLSP) e Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG)

A DLSP alcançou R$ 4.435,6 bilhões (61,2% do PIB) em outubro, reduzindo-se de 0,2 p.p. do PIB em relação ao mês anterior. Esse resultado refletiu, sobretudo, os impactos da desvalorização cambial de 2,3% (redução de 0,5 p.p.), do efeito da variação do PIB nominal (redução de 0,2 p.p.) e dos juros nominais apropriados (aumento de 0,5 p.p.). No ano, a relação DLSP/PIB elevou-se 5,5 p.p., evolução decorrente, em especial, do déficit primário acumulado (aumento de 8,7 p.p.), dos juros nominais apropriados (aumento de 4,0 p.p.), do efeito da desvalorização cambial acumulada de 43,2% (redução de 6,5 p.p.), e do ajuste da paridade da cesta de moedas da dívida externa líquida (redução de 0,7 p.p.).

A DBGG - que compreende Governo Federal, INSS e governos estaduais e municipais - alcançou R$ 6.574,7 bilhões em outubro, equivalente a 90,7% do PIB, aumento de 0,2 p.p. do PIB em relação ao mês anterior. Essa evolução decorreu principalmente da incorporação de juros nominais (aumento de 0,5 p.p.), do efeito da desvalorização cambial (aumento de 0,2 p.p.), e do efeito da variação do PIB nominal (redução de 0,4 p.p.). No ano, o aumento de 15,0 p.p. na relação DBGG/PIB resultou, em especial, das emissões líquidas de dívida (aumento de 9,0 p.p.), da incorporação de juros nominais
(aumento de 3,8 p.p.), e da desvalorização cambial acumulada (aumento de 2,1 p.p.).

Arquivos oficiais do governo estão disponíveis aos leitores.
Ricardo Bergamini

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Lambança fiscal - Claudio Adilson Gonçalez (OESP)

O desgoverno Bolsonaro nunca teve planos para nada, só para sua própria reeleição e para a defesa dos crimes em família. Este economista apresenta algumas ideias sensatas para a tal Renda Brasil que é uma obsessão eleitoreira do presidente, mas que apresenta alto sentido social.

Paulo Roberto de Almeida

Lambança fiscal

    CLAUDIO ADILSON GONÇALEZ

    O Estado de S. Paulo05/10/2020

    A lambança criada pelo governo em relação ao financiamento do programa apelidado de Renda Cidadã, que provocou grande nervosismo no mercado financeiro, não é um fato isolado. A política econômica, aparentemente submissa aos desejos eleitoreiros do presidente, tem sido marcada por completa falta de rumo e de planejamento. Sobram discursos ideológicos, supostamente liberais, e faltam iniciativas bem estruturadas para promover o crescimento econômico, com estabilidade fiscal.

    Desde o início do governo, Paulo Guedes e sua equipe, em parte composta por técnicos de excelente formação, mas com pouca experiência em políticas públicas, tentam reinventar a roda. Anunciam medidas mirabolantes, antes de estarem devidamente estudadas e formuladas. Atropelam projetos já em curso no Legislativo, alguns em fase adiantada de debates. Esses foram os casos da chamada PEC emergencial, agora fundida com a do pacto federativo, e da reforma tributária. Impera a falta de planejamento. As maluquices propostas para financiar o Renda Cidadã (que, como Paulo Guedes, continuarei chamando de Renda Brasil) evidenciam tal improvisação.

    Deixando de lado o objetivo eleitoreiro que move quase todas as ações de Bolsonaro, era evidente, desde o primeiro semestre, que o auxílio emergencial não poderia ser retirado, em 2021, sem a ampliação do Bolsa Família, seja lá como o programa fosse batizado. Mas o governo deixou para a última hora a questão do financiamento da nova despesa, o que resultou na descabida proposta de postergar o pagamento dos precatórios e de avançar nos recursos do Fundeb.

    Tecnicamente, a solução é simples, embora não o seja politicamente, pois demanda boa formulação e eficiente e tempestiva negociação com o Congresso. O caminho é cortar gastos obrigatórios, com a combinação de medidas emergenciais duras, mas temporárias, com reformas estruturais duradouras.

    Entre as medidas emergenciais, destacam-se a redução da jornada de trabalho com respectivo corte de vencimentos de servidores públicos e a desindexação, por dois anos, das despesas obrigatórias. Propostas nessa linha já foram encaminhadas ao Legislativo, mas a articulação política para aprová-las tem sido precária, até porque elas não contam com a simpatia do presidente da República.

    A maior focalização das ações assistenciais, com a incorporação, no Bolsa Família, do abono salarial e do seguro-defeso, que apresentam problemas de gestão e mostram pouca eficácia no combate à pobreza, poderia se constituir em fonte adicional para o financiamento do Renda Brasil, mas foi vetada pelo presidente.

    No âmbito estrutural, o grande destaque é para a reforma administrativa, que alcance os atuais servidores, preservando, obviamente, os direitos adquiridos. Incluem-se aqui o congelamento dos salários por dois anos (para valer, não como tem sido até agora), a redução ou o fim das promoções automáticas, a queda do salário inicial de carreira, a extinção dos penduricalhos que permitem salários acima do teto, o fim das férias acima de 30 dias e menor taxa de reposição.

    Tais medidas possibilitariam cortes de gastos muito superiores aos necessários para bancar o Renda Brasil.

    Segundo a Carta de Conjuntura do Ipea do terceiro trimestre de 2020, que trabalhou com um conjunto semelhante de propostas, considerando União, Estados e municípios, a economia poderia superar R$ 800 bilhões em dez anos. O impacto fiscal seria superior ao da reforma da Previdência, aproximando-se do tal trilhão tão sonhado por Paulo Guedes.

    Por fim, o maior abalo na confiança dos agentes econômicos foi provocado pela tentativa de adoção de subterfúgios para burlar o teto de gastos, pondo em dúvida a disposição do governo de honrar seus passivos. Tal lambança é perigosa, porque pode elevar ainda mais o custo de rolagem da dívida pública e, com isso, frear a retomada do crescimento econômico.

    ECONOMISTA, DIRETOR-PRESIDENTE DA MCM CONSULTORES, FOI CONSULTOR DO BANCO MUNDIAL, SUBSECRETÁRIO DO TESOURO NACIONAL E CHEFE DA ASSESSORIA ECONÔMICA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA.

    quarta-feira, 25 de março de 2020

    Consequências econômicas do coronavirus - Armando Castelar Pinheiro (CB)

    02:02:41 | 25/03/2020 | Economia | Correio Braziliense | 

    Medidas econômicas de combate à crise

      ARMANDO CASTELAR
      Coordenador de economia aplicada do IBREFGV e professor do IE/UFRG
      O Covid-19 chegou ao Brasil com cerca de quatro semanas de defasagem em relação à Europa e aos EUA, mas com a mesma força. Nas duas últimas semanas, o número de casos diagnosticados aumentou à taxa de 34,6% ao dia, acumulando 1924 casos até a segunda-feira, sem dar sinais de arrefecimento. O quadro é preocupante: se não conseguirmos desacelerar o processo, ainda em abril teremos mais de 1 milhão de brasileiros contaminados, com o sistema de saúde abarrotado de pacientes graves e as mortes sendo contadas aos milhares.
      A quarentena se mostrou até aqui a forma mais eficaz de impedir a disseminação do vírus, mas ela tem consequências econômicas pesadas, que se somam às que resultam da decisão voluntária de evitar certos locais, como restaurantes, cinemas e shopping centers. Não foi à toa que os governos mundo afora hesitaram em instituí-la, o que em geral acabou resultando em avanço maior da epidemia do que de outra forma teria sido necessário.
      O tamanho do choque sobre a economia será não trivial: em vez da expansão que se esperava até um mês atrás, agora se espera forte contração do PIB no segundo trimestre deste ano. O governo estima que o PIB de 2020 ficará no mesmo patamar de 2019, mas hoje em dia um cenário de queda me parece mais plausível. Isso vai ajudar a derrubar ainda mais a inflação e a reduzir o deficit externo do país, mas, em compensação, as receitas tributárias vão cair muito e o desemprego subirá bastante.
      O perfil da recessão esperada para este ano será diferente do de outras que tivemos nas últimas décadas: ela afetará bem mais o setor de serviços, como confirmam dados divulgados esta semana para Austrália, Japão e Europa. A contração de serviços derrubará o emprego, em especial de trabalhadores menos qualificados. O drama social que vai daí advir poderá ser bem grave.
      Esse quadro, na minha visão, acaba com a pequena chance que ainda havia para a aprovação de reformas antes do recesso parlamentar de julho e das eleições municipais de outubro. Os desafios colocados para a política econômica agora são outros e não triviais.
      A curto prazo, o governo precisa criar uma rede de segurança para proteger as empresas e famílias que forem mais afetadas, ficando sem receitas e rendimentos, e que não tenham como se sustentar com suas reservas. É o caso, em especial, das micro, pequenas e médias empresas e dos trabalhadores de baixa renda, em particular os informais, que não contam com a proteção de programas como o seguro desemprego. A própria viabilidade da quarentena vai depender, na prática, da criação dessa rede de proteção social, pois sem ela muita gente pode decidir simplesmente sair às ruas do mesmo jeito para garantir o sustento de algum jeito.
      Ainda a curto prazo, o governo precisa garantir o bom funcionamento dos mercados, em especial do financeiro, já que a tendência natural neste momento é todos protegerem seu caixa. Isso em geral significa problemas para bancos e fundos de investimento e pode levar a que certos mercados não funcionem bem, como o de dólar e de títulos de dívida corporativa, por exemplo.
      Por fim, o governo precisa adotar medidas de estímulo para compensar o efeito depressivo das quarentenas, voluntárias e obrigatórias. Nesse caso, há uma discussão relevante do momento certo de dar os estímulos. Fazer isso em momento de grande retração de consumidores e empresas pode dar pouco resultado.
      Por seu lado, a pressão por pacotes maiores, em especial de gastos públicos, vai aumentar conforme a crise na saúde pública avança. É o que se viu nos EUA e na Alemanha, por exemplo: o volume de gastos previstos foi se multiplicando ao longo da semana, conforme os políticos reagiam à pressão dos eleitores.
      O governo também terá um grande desafio para decidir quando e como começar a reverter a quarentena e normalizar o funcionamento das empresas. O governo federal terá incentivo para fazer isso cedo, pois o desempenho da economia influencia mais na popularidade presidencial do que a de outros políticos. Os governadores e prefeitos, por seu lado, estarão mais preocupados com a pressão que a epidemia coloca sobre os serviços de saúde.
      Por fim, penso que o mundo e o Brasil não vão voltar simplesmente a ser como eram, como se uma onda tivesse passado por cima e depois partido. Haverá um esgarçamento do tecido social e novos atores devem ganhar destaque, com novas propostas de como devemos avançar nos anos à frente.

      domingo, 10 de fevereiro de 2019

      Objetivos estrategicos e prioridades taticas do Brasil - Paulo Roberto de Almeida

      Meu trabalho mais recente, ainda parcial e preparatório a um texto mais elaborado sobre o conjunto abrangente (desculpem a tautologia) de análise e debate sobre as principais políticas públicas.

      3409. “Objetivos estratégicos e prioridades táticas do Brasil”, Brasília, 9 fevereiro 2019, 8 p. Elaboração resumida do que penso ser uma agenda de reformas para o Brasil. Disponibilizado na plataforma Academia.edu, com convite geral para debate (10/02/2019; link: https://www.academia.edu/s/47b20d0de8/objetivos-estrategicos-e-prioridades-taticas-do-brasil-2019).

          


      Paulo Roberto de Almeida
      [Objetivo: estabelecer metas e meios; finalidade: propostas de trabalho]


      1. Características gerais da presente fase de transição no Brasil
      O Brasil atravessa atualmente uma fase de transição política e um processo de ajuste econômico, absolutamente necessário depois da mais grave recessão de toda a sua história. Aquilo que pode ser denominado como a “Grande Destruição lulopetista” da economia teve tal dimensão – em termos de perda de crescimento, de desemprego, de desestruturação de amplos setores das atividades produtivas, a começar pelos setores orçamentário e fiscal, nos três planos da federação – que as correções a serem necessariamente introduzidas vão ocupar o executivo e o legislativo por longos meses, provavelmente anos, prevendo-se que as deformações mais graves possam apenas ser parcialmente corrigidas ao longo do mandato governamental de 2019-2022. Cabe então colocar as bases de um futuro processo de crescimento sustentado, com transformações estruturais e distribuição social de seus benefícios, ou seja, a essência do que se chama desenvolvimento inclusivo. Este é o objetivo principal deste ensaio sintético.
      O processo de transição política teve início em maio de 2016, quando se pôs termo um ciclo de três mandatos e meio de um regime politicamente populista e economicamente caótico, o lulopetismo. Após a fase intermediária de dois anos e meio liderada pelo vice-presidente da antiga coalizão governista (mas amputada das forças de esquerda), que presidiu às eleições presidenciais de outubro de 2018, essa transição política deve continuar ao longo de todo o governo que teve início em janeiro de 2019, a partir do novo mandato presidencial de quatro anos, com o titular definido no segundo turno das eleições de outubro de 2018. Essa conformação política não está isenta de crises adaptativas e de turbulências nos planos do Executivo e do Legislativo, uma vez que se trata de nova coalizão de forças, declaradamente de direita, mas integrando outros componentes em três importantes polos de poder: o econômico (agora liberal), o da justiça (egressa em grande medida dos quadros da Operação Lava Jato) e, sobretudo, o militar, com características próprias em relação a experiências precedentes de atuação de militares no sistema político. Este último componente é o mais próximo que se possa pensar de uma atuação corporativa (não estruturada e não formalizada) das FFAA, no seguimento de exemplos históricos precedentes de intervenção militar na política.
      O segundo processo, o de ajuste econômico, deve continuar a ser feito ao longo de todo o presente mandato dos dois poderes definidores das políticas públicas (macro e setoriais), o Executivo e o Legislativo, pois comporta um conjunto completo, complexo e difícil, de reformas estruturais e de medidas setoriais, indispensáveis para a retomada de um novo ciclo de crescimento sustentado, num ambiente econômico supostamente mais favorável a uma maior inserção internacional do Brasil. Um dos meios a essa integração do Brasil a padrões mais elevados de qualidade em suas políticas econômicas é o de sua plena adesão plena à OCDE, que no entanto deve ser considerada apenas um meio, não um fim em si mesmo, para tal objetivo. O ajuste econômico é absolutamente essencial para que o Brasil possa conduzir o conjunto de outras reformas nos planos institucional e de integração internacional, sem o qual a base fiscal de sustentação do governo poderia entrar em colapso.
      O diagnóstico da situação é, resumidamente, o seguinte: o Brasil está em meio a um processo de recuperação da mais grave recessão de toda a sua história econômica, causada pela inépcia colossal, e a corrupção gigantesca da organização criminosa que assaltou o país em 2003, que provocou uma extrema deterioração de todas as instâncias de governança, cujo partido hegemônico foi alijado do poder em 2016. A organização criminosa não teria chegado aos extremos da destruição a que se chegou se não contasse com a complacência e a conivência de uma classe corrupta de políticos aproveitadores, que se beneficiou e que também ampliou o sistema de roubo oficial instaurado na cúpula do poder pela clique de meliantes políticos e de sindicalistas corruptos.
      Os desafios nesse terreno são extremamente relevantes, uma vez que o déficit orçamentário precisa ser sanado, para que se possa reorganizar essa base fiscal, que se constitui no mais relevante problema de curto prazo do país. Secundariamente, o país também tem um problema de médio prazo, que é dos investimentos (em infraestrutura e demais serviços coletivos a cargo do Estado), e que pode ser sanado com novos regimes de concessão, de privatização e de abertura aos capitais estrangeiros. Finalmente, há o enorme problema da produtividade medíocre da economia brasileira, que é de longo prazo, mas que deve ser enfrentado desde já, para permitir a retomada do crescimento em bases sustentadas, com a devida transformação tecnológica da base econômica.
      Especificamente no terreno político, o Brasil precisa passar por reformas institucionais dados os problemas acumulados em sua legislação eleitoral e partidária, assim como para atender às demandas da sociedade por maior transparência e maior responsabilização – accountability – no trabalho do Estado e em relação à atuação e comportamento dos agentes públicos, não apenas os executivos e representantes parlamentares, mas também em instâncias do Judiciário. Continuam, de toda forma, as pressões para a própria reforma do Estado e do sistema previdenciário, o principal responsável pelo desequilíbrio estrutural das contas públicas, depois de anos e anos do peso maior representado pelo serviço da dívida, ou seja, os juros e encargos associados.
      As mudanças estruturais podem, e devem alcançar, da mesma forma, a interface externa do Brasil, tanto em sua política externa, quanto em sua diplomacia. A política externa não é o foco central do processo de ajuste, constituindo apenas um elemento acessório nas medidas de ajuste, mas ela pode ser um coadjuvante importante, sobretudo no que se refere aos processos de abertura econômica e de liberalização comercial, que contribuem para a competitividade e ganhos de produtividade do Brasil.
      Esse conjunto de medidas e de novas políticas requer uma visão clara quanto aos objetivos estratégicos do Brasil, para uma definição dos obstáculos (sobretudo internos) à consecução desses objetivos, das formas pelas quais eles serão superados, assim como no tocante às prioridades (urgências, medidas de curto e médio prazo) que precisarão ser implementadas no curso dos governos seguintes ao do mandato corrente (pois se estima que a meta principal seja, na verdade, um processo contínuo de reformas, não apenas objetivos táticos de curto prazo, que precisam ser implementados até 2022).
      Este documento pretende abordar, ainda que de forma perfunctória, cada um desses problemas segundo propostas de ordem geral, para o início de uma discussão a ser levada a efeito desde já. Relaciono, a seguir, os componentes desse processo, que requerem desenvolvimentos mais amplos, a serem oferecidos em textos suplementares.

      2. Objetivos estratégicos do Brasil: uma visão sintética das tarefas à frente
      Apresento as grandes linhas de um plano de governo deliberadamente limitado a um conjunto estritamente definido de objetivos em três campos – desenvolvimento, segurança e integração externa – que compreendem tanto políticas macroeconômicas quanto as setoriais.
      1) Desenvolvimento social como prioridade máxima
      Cinco linhas de ação:
      1.1. Estabilidade macroeconômica (políticas macro e setoriais);
      1.2. Competição microeconômica (fim da cartelização);
      1.3. Boa governança (reforma das instituições nos três poderes);
      1.4. Alta qualidade do capital humano (revolução educacional);
      1.5. Abertura ampla a comércio e investimentos internacionais.

      2) Segurança pública
      Preocupação prioritária da cidadania, como das empresas privadas:
      2.1. Integração dos serviços de segurança nos três níveis da federação;
      2.2. Reforma dos códigos processuais e do sistema penitenciário;
      2.3. Reequipamento das forças de segurança; treinamento.

      3) Política externa e integração internacional
      Revisão dos conceitos básicos da política externa, no sentido da abertura:
      3.1. Abertura comercial unilateral, concomitante à reforma tributária;
      3.2. Revisão do processo de integração com perspectiva de inserção externa;
      3.3. Análise das “alianças estratégicas” em sentido puramente pragmático.

      Pode-se agora oferecer breves considerações sobre cada uma dessas tarefas.

      3. As grandes linhas de um processo de reformas estruturais no Brasil
      Sem intenção de debater exaustivamente o conteúdo, os métodos e as diversas etapas desse amplo e complexo processo de reformas, apresento a seguir minhas breves considerações sobre cada um dos “capítulos” do empreendimento.

      3.1. Desenvolvimento social como prioridade máxima
      O objetivo é o de alcançar um processo sustentado de crescimento do PIB, com transformações estruturais do sistema produtivo (aumento da produtividade e inovação), com efeitos sociais positivos vinculados a esse processo, notadamente via qualificação do capital humano.
      Esse processo passa por:
      3.1.1. Estabilidade macroeconômica (políticas macro e setoriais)
      A estabilidade macroeconômica deve ser preservada com equilíbrio das contas públicas, inflação baixa, flutuação cambial, juros de mercado, reforma tributária, com o objetivo de reduzir a carga fiscal total, mesmo progressivamente. Quaisquer que sejam as políticas macro – fiscal, monetária e cambial – e as setoriais – agrícola, industrial, tecnológica, etc. – a serem implementadas pelo governo, o que cabe ser feito, em caráter emergencial e prioritário, é um combate duríssimo à corrupção associada ao peso descomunal do Estado na economia. No plano fiscal e orçamentário, a sociedade e o sistema produtivo não aceitam mais elevação de impostos e da carga fiscal em geral, o que recomenda uma redução radical dos gastos do Estado e também do seu tamanho e peso na economia; a médio e longo prazo deve-se caminhar para uma diminuição sensível da carga tributária total. Isso passa, entre outros, pela eliminação de empresas e agências públicas inúteis e ineficientes, bem como pela extinção da extração de recursos para fins não produtivos (como, por exemplo, as contribuições sindicais, tanto as entidades patronais, como as de trabalhadores).

      3.1.2. Competição microeconômica (fim da cartelização)
      O Brasil é um país notoriamente dominado por monopólios e carteis setoriais. Cabe definir novas modalidades de prestação de serviços coletivos relevantes, como saneamento básico, educação, saúde, que possam ser oferecidos mais pela via dos mercados do que pela intermediação de entidades públicas, sempre sujeitas a desvios e ineficiências, ademais de se prestarem à criação e preservação de feudos políticos que alimentam o rentismo de elites predatórias e parasitárias. Deve-se implementar a concorrência plena no plano microeconômico, com a eliminação de carteis e monopólios, a privatização das empresas públicas, a abertura dos setores financeiro e de comunicações, a eliminação de controles intrusivos e das limitações às liberdades econômicas, com diminuição da burocracia em todos os níveis.
      Não é preciso constituir grandes comissões de estudo para empreender a tarefa, pois tudo está identificado, mapeado, diagnosticado. Basta aplicar sistematicamente o roteiro traçado nos relatórios anuais do Banco Mundial, “Fazendo Negócios”, para se ter o roteiro das reformas a serem empreendidas em todos os níveis.

      3.1.3. Boa governança (reforma das instituições nos três poderes)
      Uma governança de qualidade, nas diferentes instâncias do Estado, deve começar por importantes reformas no Judiciário (revisão dos códigos processuais; eliminação completa da Justiça do Trabalho, com atribuição de suas competências a varas especializadas e o recurso amplo à soluções arbitrais, com o objetivo mais geral de diminuir o peso do Estado). Uma reforma administrativa geral no Estado brasileiro é tarefa complexa demais para ser descrita neste momento, mas constitui igualmente tarefa básica no sentido da diminuição geral do peso do Estado na vida social.
      O Legislativo é fonte notória de distorções, não apenas orçamentárias – pois custa muito mais caro do que congêneres em outros países – mas também em sua administração e funcionamento, com um inchaço inaceitável em todos os níveis em que ele existe na federação. O debate sobre a redução dos legislativos, a diminuição de seus custos, a redução da dispersão e fragmentação partidária e a correção das deformações eleitorais e de representação proporcional, deve começar de imediato, com vistas a um sistema distrital adequado às peculiaridades geográficas e demográficas do país.

      3.1.4. Alta qualidade do capital humano (revolução educacional)
      Não se trata apenas de reformas nos currículos de ensino, nos dois primeiros níveis, mas de empreender uma verdadeira revolução educacional, a partir do básico e do ensino técnico-profissional, centrada sobre a formação de professores (e talvez a criação de novas carreiras não comprometidas com a isonomia mediocrizante). No terceiro ciclo, deve-se conceder completa autonomia às instituições de ensino superior, tanto públicas quanto privadas, mas com a reforma dos regimes de contratação no caso das primeiras, e atribuição de dotações oficiais limitadas, deixando-se o restante à área de captação livre de recursos junto aos mercados. Os dirigentes dessas instituições devem ser administradores desvinculados das tarefas didáticas habituais (entregues a decanos de suas áreas), aptos a gerir essas instituições de modo empresarial.

      3.1.5. Abertura ampla a comércio e investimentos internacionais
      Uma política econômica externa compatível com as necessidades do país deve ser caracterizada por abertura econômica ampla e liberalização comercial (unilateral, se for o caso), com adesão a padrões mais elevados no plano regulatório e mais liberal no setor das compras governamentais, com supressão de reservas de mercados, regras de conteúdo local ou preferências de compras nacionais com preço adicional autorizado.

      3.2. Segurança pública
      Trata-se da preocupação prioritária, primordial da cidadania, bem como das empresas privadas, que enfrentam enormes custos de transação, em função dos riscos associados à delinquência crescente, ao aumento geral da criminalidade no país. Cabe, portanto, uma prioridade efetiva à segurança pública, que afeta seriamente o patrimônio e a vida dos mais pobres, a renda da classe média e os lucros dos empresários, o que tem motivado muitos profissionais de qualidade a deixar o país, fechando empresas e elevando o desemprego. Essa área se desdobra em três vetores principais.
      3.2.1. Integração dos serviços de segurança nos três níveis da federação
      A recomendação é tão óbvia que não exige elaboração explicativa, cabendo apenas lamentar que não tenha ocorrido plenamente até o momento presente.

      3.2.2. Reforma dos códigos processuais e do sistema penitenciário
      A tarefa está contemplada nos planos setoriais do presente governo (2019).

      3.2.3. Reequipamento das forças de segurança; treinamento
      Requer um plano integrado de capacitação dos recursos humanos nessa área, com a adoção de padrões tecnológicos mais sofisticados na segurança pública, bem como um monitoramento constante dos progressos no setor.

      3.3. Política externa e integração internacional
      Consoante a nova visão de plena inserção do Brasil na globalização, cabe empreender uma revisão dos conceitos básicos da política externa, no sentido da abertura econômica e da interdependência global. A soberania sequer necessita ser objeto de retórica, pois ela se exerce, simplesmente. A diplomacia do Brasil sempre foi universalista, focada no interesse nacional e no direito internacional. O multilateralismo é uma de suas bases inquestionáveis, assim como a ausência de quaisquer limitações de ordem ideológica ou partidária na definição dos grandes objetivos na frente externa. Sem adentrar nas grandes definições conceituais da agenda internacional do Brasil, cabe na presente conjuntura convertê-la em importante coadjuvante do processo de reformas econômicas e comerciais, o que implica novas determinações em três frentes.

      3.3.1. Abertura comercial unilateral, concomitante à reforma tributária
      Não existe espaço, no horizonte previsível, para grandes negociações no plano multilateral, sugerindo-se eventuais acordos bilaterais, que passam necessariamente por um novo perfil da política comercial do Brasil, com ou sem revisão do Mercosul. A exposição do setor produtivo à concorrência internacional – benéfica em si, para os próprios produtores e consumidores – requer a redução da carga tributária no plano interno, e uma reforma não pode ser feita sem a outra, sob risco de desmantelar ainda mais as empresas do setor manufatureiro. Sugere-se considerar uma reforma tarifária baseada no conceito de tarifa única, ou reduzida a apenas duas alíquotas, com vistas a reduzir o volume de barganhas setoriais entre os diferentes ramos da indústria.

      3.3.2. Revisão do processo de integração com perspectiva de inserção externa
      O Mercosul – ademais de eventuais arranjos que possam ser feitos em paralelo ao seu processo de revisão – não é culpado pelo fechamento comercial do Brasil, ou por suas disfunções acumuladas ao longo dos anos, exclusivamente por distorções criadas no período do lulopetismo e por descumprimentos das obrigações institucionais por parte de seus dois maiores países membros. Se e quando esses dois países resolverem cumprir os requerimentos estabelecidos no tratado original, ele voltará a ser uma base para a integração mundial das economias dos países membros. Caberia, portanto, efetuar um exame profundo das opções estratégicas do Brasil em matéria de política comercial, para decidir, a partir daí, se cabe reformar o Mercosul, ou caminhar no sentido da independência total nesse terreno. Uma agenda aberta, portanto.

      3.3.3. Análise das “alianças estratégicas” em sentido puramente pragmático
      A política externa do lulopetismo conduziu o Brasil a uma série de coalizões político-diplomáticas definidas a partir de uma visão partidária deformada das relações internacionais do país, uma vez que baseada na miopia de um “Sul Global” que não existe, a não ser nas concepções ideológicas de seus promotores. O tema também implica uma revisão profunda das grandes escolhas estratégicas do Brasil na arena mundial, e requer uma exposição específica que não cabe nos limites deste texto.
      O autor já ofereceu amplos comentários a esse respeito em dois livros dedicados a essa área: Nunca Antes na Diplomacia...: a política externa brasileira em tempos não convencionais (Curitiba: Appris, 2014), e Contra a Corrente: ensaios contrarianistas sobre as relações internacionais do Brasil, 2014-2018 (Curitiba: Appris, 2019).

      Este texto é necessariamente sintético, para não prejudicar uma leitura rápida nos diferentes níveis de debate em torno dos objetivos estratégicos (ajuste econômico, reformas políticas e setoriais, melhoria na segurança pública e maior integração à economia mundial) e das prioridades táticas associadas a cada uma dessas áreas abrangentes de políticas públicas: a sustentabilidade fiscal das políticas macro e setoriais, a correção dos enormes desafios em matéria de segurança e uma revisão importante no modo de inserção internacional do Brasil. Um debate responsável e bem informado nessas três áreas requer uma visão clara das prioridades governamentais ao longo dos próximos anos, e uma coordenação rigorosa das ações em nível decisório.
        
      Paulo Roberto de Almeida
      Brasília, 9 de fevereiro de 2019