Recuperação do Itamaraty pós-Bolsonaro será maior desafio para Mauro Vieira, dizem especialistas
Outras missões que novo chanceler terá incluem a crise venezuelana, as tensões sino-americanas e a reconstrução de laços na América Latina
Por Ana Rosa Alves e André Duchiade
O Globo, 09/12/2022
O experiente embaixador Mauro Vieira, que voltará para o comando do Ministério de Relações Exteriores a partir de 1º de janeiro, terá como desafio imediato a recuperação de um Itamaraty que perdeu espaço e protagonismo e foi descaracterizado durante os quatro anos em que o presidente Jair Bolsonaro esteve no Palácio do Planalto. Para analistas ouvidos pelo GLOBO, outros pontos-chave incluirão uma saída negociada para a crise venezuelana, navegar pelas tensões sino-americanas e a reconstrução de laços na América Latina e em organismos multilaterais.
A nomeação de Vieira, que já havia ocupado a pasta durante o segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, foi confirmada pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva nesta sexta-feira. Para o embaixador aposentado Roberto Abdenur, que chefiou a embaixada em Washington durante a primeira passagem de Lula pelo Planalto, a principal missão do novo chanceler é "reconstruir a política externa demolida no governo Bolsonaro, particularmente durante a passagem de Ernesto Araújo pelo Itamaraty":
— Integro um grupo de embaixadores que se reúne para pensar nos rumos da política externa brasileira. Ele se divide em dois grupos. Alguns acreditam que o Brasil só poderá se recuperar muito em longo prazo. Outros, me incluindo, entendem que o país pode dar a volta por cima muito rapidamente — afirmou ele, dizendo que o Brasil "perdeu completamente a respeitabilidade e a confiança" durante o atual governo e viveu o maior isolamento internacional de sua História.
Ex-embaixador do Brasil em Londres (1994-1999) e em Washington (1999-2004), Rubens Barbosa concorda que o desafio central será "restabelecer o papel do Itamaraty como principal formulador e executor" da política externa brasileira. Segundo o presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), que classificou Vieira como um dos diplomatas mais bem-sucedidos de sua geração, o novo chanceler terá a "responsabilidade histórica" de manter o Itamaraty acima de interesses ideológicos e partidários" após os últimos quatro anos.
Atualmente embaixador do Brasil na Croácia, o sucessor de Carlos França já ocupou alguns dos principais postos no exterior, como a embaixada na Argentina, em Washington e a representação do Brasil nas Nações Unidas, em Nova York. O vasto currículo do "discreto" Vieira, disse Dawisson Belém Lopes, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), faz com que tenha as credenciais necessárias para pôr ordem:
— O Lula não precisa efetivamente de um chanceler que vá carregar grande simbolismo porque a bandeira é o próprio Lula — disse ele. — Mauro Vieira será um chanceler da porta para dentro, será útil na organização do ministério, da burocracia do Itamaraty, muito desgastado depois dos quatro anos de Bolsonaro e que já vinha em um processo difícil antes — completou, afirmando crer que a missão principal será "reerguer o ministério e elevar o moral da tropa" diplomática.
Multilaterismo e meio ambiente
Para o internacionalista da UFMG, a missão central será "reestabelecer o perfil universalista do Brasil nos foros globais" após Bolsonaro "estreitar o horizonte diplomático" ao se relacionar com um leque menor de países e eleger aliados ideologicamente próximos. A professora de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), Monica Herz, aponta para desafios parecidos:
— Uma reinserção do Brasil no sistema multilateral e na América Latina, uma recolocação do Brasil no debate sobre a disputa sistêmica entre a China e os Estados Unidos. O país esteve completamente marginalizado nesses processos de negociação, discussão, construção de normas, nestes últimos quatro anos — disse ela, afirmando ver como tarefa fundamental "reativar a energia criativa dentro do Itamaraty” após “quatro anos de adormecimento”.
A questão climática também volta a ser prioritária para a política externa brasileira a partir do ano que vem, após quatro desastrosos anos para a política ambiental brasileira. Os primeiros indícios vieram com a ida do presidente eleito à COP27, a conferência ambiental da ONU que aconteceu em novembro na cidade egípcia de Sharm el-Sheikh, e com o concorrido pronunciamento que ele fez por lá.
— Vieira terá que implementar a decisão do presidente eleito de pôr o meio ambiente e a mudança do clima no centro da política externa. Se ele for bem-sucedido nisso, ele muda a política externa do Itamaraty, que sempre teve comércio exterior, desenvolvimento, investimento como pautas principais — disse Barbosa, que conhece o novo chanceler há quatro décadas.
América Latina e EUA
Os especialistas chamaram atenção para os desafios na esfera regional, também escanteada nos últimos quatro anos — temas que vão da crise no Haiti à redemocratização da Venezuela, passando pelo fortalecimento de organismos multilaterais, a criação de novas alianças e a reconstrução dos laços com a Argentina. Para Herz, o retorno brasileiro é chave pois é "muito difícil avançar mecanismos de cooperação na região sem a presença brasileira fazendo coordenação".
Com relação à situação venezuelana, a especialista disse já ver sinais de mudança com o alívio das sanções americanas ao petróleo venezuelano, aproximação que aumentou após a guerra na Ucrânia. Com o aumento do preço do combustível, o produto da Venezuela, dona da maior reserva de petróleo do mundo, tornou-se atraente para Washington.
— Precisamos negociar a participação da Venezuela para uma participação nos fóruns multilaterais e um regime mais democrático — disse ela. — É uma via de duas mãos: por um lado, podemos contribuir para a redemocratização venezuelana e sua reinserção regional e, se isso acontece, fortalecemos os projetos regionais. Precisamos lembrar que a decadência da Unasul e dos projetos regionais estão claramente associados à impossibilidade dos países acordarem sobre a Venezuela.
Outra questão-chave, disseram os especialistas, será uma equidistância nas tensões sino-americanas, algo que abre oportunidades para o país recuperar sua credibilidade no exterior. Nas relações bilaterais com Washington, afirmou Belém Lopes, há "uma janela de oportunidade" e boa vontade neste momento, menos de uma semana após a visita do conselheiro de Segurança Nacional de Biden, Jake Sullivan, ao Brasil:
— O Lula era o candidato preferível para Casa Branca diante da extrema direita de Bolsonaro. Apesar de já ter sido visto com desconfiança, não fez nenhuma loucura, não é aventureiro e governou o Brasil de maneira centrista anteriormente — disse ele. — Mas também por razões internas americanas. Seria muito ruim para o Biden que a maior economia latino-americana fosse governada por um líder que gosta de se vender como o Trump dos trópicos.